Descobertas da Mostra Internacional de São Paulo

Marighella – Por Maria do Rosário Caetano

Marighella, o filme de Isa Grinspum Ferraz, exibido no Festival do Rio, na Mostra SP e programado para o Fest Aruanda (João Pessoa, de 9 a 14 de dezembro) é a prova concreta de que se pode realizar um grande documentário biográfico mesmo sem dispor de fotos e imagens abundantes do retratado.

Isa, sobrinha do guerrilheiro baiano (1911-1969), cujo centenário ora se comemora, construiu do tio vigoroso perfil. E o fez com memórias de infância e uso criativo e abundante do cinema (brasileiro em especial).

Ela somou imagens de filmes de Godard (Cine Tract 23), Agnes Varda (Panteras Negras), Cris Marker (On Vos Parle de Brésil), Gianni Minà (Che 40 Anos), Frank Capra (Por que Lutamos a Batalha da Rússia) e recorreu a trechos do épico Batalha de Argel, de Gilo Pontecorvo, que marcou profundamente o imaginário cinéfilo-politizado dos anos 60. Mas a parte mais substantiva do filme soma trechos de uma dezena de filmes brasileiros. O mais belo deles (e só poderia ser assim, num filme de mirada feminina) traz Dina Sfat, magnífica e imantada de rara energia, como a guerrilheira Cy, do Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. Nada mais adequado para evocar a loucura criativa e a euforia política daqueles doidos anos.

Marighella foi um radical de esquerda. Abraçou a luta armada. Morreu fuzilado na Alameda Casa Branca, em SP. Tinha apenas 58 anos. Baiano, filho de pai anarquista italiano e mãe descendente de escravos, ele cresceu numa Bahia efervescente. O filme leva isto em conta. Tem humor. Dá ao escritor Antônio Risério o direito de evocar a baianidade  daquele mulato marxista, que nunca ostentou cara fechada. Ao contrário, o filme mostrará tinha xurupitó.

Uma peça do teatro de revista (linha Carlos Machado) da época, chamada. É do Xurupitó descrevia os que eram possuidores de tal característica. E nos leva a crer que os baianos são os maiores detentores do tal xurupitó. Poeta, amante do cinema, leitor voraz, o baiano não tinha nada a ver com a imagem de sisudos comunistas. Era, como bem lembra Risério, um comunista à moda baiana. O filme, além das memórias de Isa e das imagens de filmes, compõe-se com depoimentos de grande riqueza, que somam o filho Carlos Augusto Marighella (xerox do pai), a viúva Clara Charf (comovente, jamais piegas), que amou um “não-judeu, preto e comunista” (para desespero total do pai judeu), o escritor Antonio Candido, os ex-guerrilheiros Takao Nakano e Antonio Carlos Fom, entre muitos outros. Sem esquecer as mulheres. Sim, havia mulheres na guerrilha e Isa faz justiça à presença delas ouvindo, além de Clara Charf, a terapeuta Eliane Toscano e a jornalista Rose Nogueira.

Filmes e mais filmes –  Contar a história de Che Guevara em um filme é saber selecionar centenas de horas de imagens do guerrilheiro latino-americano. Da infância até sua trágica morte na Bolívia, em outubro de 1967, sua imagem foi fartamente captada (em fotos e filmes). Já de Marighella restaram umas dez fotos e nenhuma imagem em movimento.

O que fez a cineasta-sobrinha? Releu o cinema brasileiro que  conhece muito bem, em busca de novos sentidos. Se tinha que falar de tortura, recorria a O Caso dos Irmãos Naves,  de Sérgio Person (no filme, fala-se de tortura a presos comuns, mas, em Marighella, as imagens ganham também a significação da tortura a presos políticos).  Na busca de climas de época, a cineasta cita Barravento, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe (os três de Glauber), O Grito da Terra  e  Manhã Cinzenta (ambos de Olney São Paulo),Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, Estudantes – Condição ou Revolta, de Peter Overbeck (fotógrafo de O Bandido da Luz Vermelha), etc, etc. Os trechos de filmes, somados às lembranças e aos depoimentos,  constituem  tecido orgânico, que nos envolve (a ponto de não sentirmos os 100 minutos de narrativa).

Atingido na matinê  –  O cinema, aliás, inscreveu-se como cicatriz no corpo do guerrilheiro. Em 1964, ele se refugiou na matinê* de um cinema carioca, para fugir de militares que o perseguiam. Não teve jeito. Foi localizado e baleado dentro da sala. Tudo foi documentado por um fotógrafo do Correio da Manhã, que também estava no cinema. Uma foto, presente no documentário, nos mostra a cicatriz deixada pela bala.

O filme de Isa fica, porém, nos devendo uso mais dramático deste cinematográfico trecho da vida de Marighella. E ficamos desejosos de saber qual era o filme exibido naquele dia 4 de maio de 1964, naquela agitada matinê (saberemos, decerto, na biografia definitiva que Mário Magalhães, consultor do filme, finaliza neste momento).

Outro momento revelador e impactante (e que ganha imensa força na narrativa) registra a audácia de um técnico da Rádio Nacional em 15 de agosto de 1969. Ele trabalhava num programa policial de imensa audiência, que a emissora irradiava às nove horas da manhã.  Pois foi no meio deste programa policial de –  vale repetir – altíssima audiência, que o técnico inseriu discurso-convocação de Carlos Marighella ao povo brasileiro para que se aliasse às forças que combatiam a ditadura militar. Quanta ousadia!! Havia uma coragem nos militantes daquele tempo que deixa a gente, nos consumistas e mornos dias que correm, sem fôlego.

Dois astros black contribuem com seus talentos para amplificar as qualidades do  filme: o baiano Lázaro Ramos lê os versos do poeta-guerrilheiro (em crônica semanal em O Globo, José Miguel Wisnik detectou qualidade literária em decassílabos sáficos do jovem Marighella, escritos em 1939 e dedicados à Liberdade). Mano Brown fecha a narrativa com um rap que já mereceu 100 mil acessos no youtube. Um rap arrebatador, de arrepiar.

(*)De acordo com Mário Magalhães, autor da biografia de Marighella, o  filme exibido na matinê em que Marighella foi baleado em maio de 1964: Na entrada da galeria onde fica o Eskye-Tijuca, exibe-se o anúncio da comédia ‘Rififi no Safári’, com Bob Hope e Anita Ekberg: “Um explorador de araque na África com a mais sensacional das louras”. O livro de Magalhães deve sair no próximo ano, pela Cia das Letras.

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