*Pablo Villaça
Em meio a festivais que programam dezenas de títulos em sessões que atravessam todo o dia, o CinePE é um evento atípico: mesmo exibindo longas e curtas, seus organizadores apostam numa seleção enxuta que é apresentada ao público apenas à noite. No lugar da correria habitual, há tempo para registrar e absorver cada obra, permitindo que a criação de cada realizador seja apreciada sem que um outro trabalho surja rapidamente para ocupar seu espaço na mente do espectador.
Esta é uma proposta bem-vinda especialmente quando os esforços dos curadores (os membros da Abraccine Edu Fernandes e Nayara Renaud) resultam em obras diversas e instigantes. Em 2022, a mostra Competitiva de longas trouxe seis títulos: duas ficções, três documentários e um projeto híbrido que abarcaram temas pessoais, investigações artísticas e chamados políticos. Em “Vermelho Monet”, o diretor cearense Halder Gomes se distanciou do tom puramente cômico de seu “Cine Holliúdy” em busca de uma discussão sobre a criação e a exploração da Arte; a cubana-brasileira Margarida Hernández explorou o olhar estrangeiro sobre o Brasil através de dois fotógrafos italianos em “Um Outro Francisco”; o trio Paulo Silva Junior, Gabriel Oliveira e Diego Zanotti buscou a alma de Diadorim em “Gerais da Pedra”; o carioca Pedro Sodré se uniu à produtora cultural indígena Bia Pankararu no poderoso “Rama Pankararu”; e o paranaense Gil Baroni substituiu a leveza dinâmica de “Alice Júnior” pela atmosfera densa de “Casa Izabel” enquanto seu conterrâneo Guto Pasko mergulhou numa investigação/terapia familiar em “Aldeia Natal”.

A diversidade temática, estética e de linguagem destes seis longas é nosso lembrete recorrente de como a cinematografia brasileira é rica, refletindo nas telas suas culturas e preocupações regionais de um modo tão eclético que um estrangeiro não familiarizado com o português poderia ser perdoado caso julgasse ter visto produções de países distintos.
Tomemos, como exemplo, “Casa Izabel” e “Rama Pankararu”: enquanto o primeiro se passa durante o período da ditadura militar, conta com design de produção e fotografia marcadamente estilizadas e constrói sua narrativa através do choque entre personagens vividos por atores investidos em composições com toques de teatralidade, o segundo busca uma linguagem naturalista que flerta com o documental e se concentra em uma figura forte cujo ativismo é tão fascinante quanto sua franqueza sexual. Sim, ambos discutem a intolerância e a violência resultante desta, mas de maneiras contrastantes, mas igualmente eficazes.
Em “Casa Izabel”, Baroni e o roteirista Luiz Bertazzo criam um microcosmos de contradições que espelha o Brasil com inteligência: se por um lado a liberdade sexual das personagens existe graças a um “santuário” que lhes oferece um respiro temporário, por outro há a convivência com a paranoia e a brutalidade de um regime autoritário que insiste em se intrometer em suas vidas mesmo à distância. Ao mesmo tempo, além de funcionar em uma antiga casa-grande pertencente a uma figura que descende de uma família escravocrata, há uma hipocrisia inconteste na relação que esta crossdresser (vivida por Luís Melo) forja com seus empregados, tratando-os com um desrespeito que alguém ciente do mal provocado pela toxicidade da sociedade deveria reconhecer e evitar. Com isso, o filme revela uma complexidade admirável e comprova a versatilidade de seu diretor.

Aliás, versatilidade também é um atributo de Bia Pankararu, técnica em enfermagem, ativista, comunicadora, produtora cultural, roteirista e, em “Rama Pankararu”, atriz estreante que recebeu merecidamente o prêmio de atuação no CinePE. Vivendo uma personagem que traz muito de si ao lado de componentes ficcionalizados, Bia é uma mãe solteira, LGBTQ+, que aceita ajudar a jornalista Paula (Tássia Leite) a produzir uma matéria sobre ataques incendiários (reais) ocorridos no território Pankararu na noite – e isso é tão revelador quanto esperado – da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018. Claro que de um ponto de vista histórico-político, as raízes desta violência são bem mais antigas (quando indagada sobre quando os ataques começaram, Bia responde: “Mil e quinhentos”), envolvendo também a tentativa de destruição da própria cultura indígena por parte de colonizadores e seus descendentes nos dias de hoje – e justamente por isso é tão fascinante testemunhar uma discussão entre as duas mulheres sobre o papel feminino nas tradições Pankararu, quando Paula tenta apontar um possível sexismo na divisão de tarefas e é rechaçada por Bia, que imediatamente tem o impulso de proteger a integridade de suas tradições. Trata-se de uma obra rica, estimulante e corajosa que merece alcançar o público não apenas por sua excelência, mas também por sua importância.
Dois atributos que podem ser atribuídos ao próprio CinePE.
*Pablo Villaça fez parte do Júri Abraccine.