Samantha Fuller quer manter vivo o legado do pai
Neusa Barbosa, Cineweb (SP)
Única filha do respeitado cineasta norte-americano, Samuel Fuller (1912-1997), diretor de filmes como Beijo amargo (64) e Agonia e glória (80), Samantha Fuller estreou na direção dirigindo um documentário em homenagem ao pai, A Fuller life, cujo segundo festival de exibição no mundo foi a Mostra de São Paulo, antes mesmo dos EUA – que só verão o filme em março de 2014, no Festival South by Southwest.
Em entrevista exclusiva, em São Paulo, a diretora contou como realizou a produção, a partir da autobiografia do pai, A third face – ainda não traduzida para o português -, e de uma grande quantidade de materiais guardados por ele – inclusive horas de filmes inéditos, realizados por ele na juventude e no período em que lutou na II Guerra Mundial. E também adiantou que pretende ver esse material utilizado em algum documentário futuro e que alimenta o sonho de filmar um dos muitos roteiros deixados por Fuller.
Qual foi sua motivação para realizar A Fuller life?
Meu pai me teve aos 63 anos. Foi um pai muito dedicado, me levava à escola, fazia sanduíches. Sendo pai tão tarde na vida, sabia que não estaria por perto por tanto tempo. Tive sorte de tê-lo até os 22 anos. Ele sempre me dizia: “Quando eu tiver 100 anos, vamos dar uma grande festa”. Ele não costumava celebrar muito os aniversários, pedia que não fizéssemos festas. O pretexto era esperar o centenário. Então, ele morreu aos 85. E quando se completaram os 99 anos de seu nascimento, comecei a pensar: “É o ano que vem! Que posso fazer para comemorar?”. O era melhor do que fazer um filme? Foi assim que surgiu a ideia do documentário. Foi quando minha mãe disse: “Você se dá conta de onde está se metendo?”. Ela tinha razão.
No filme, vemos que Fuller guardava muitos papéis, roteiros e filmes. Como foi o mergulho dentro deste material?
Fui sua única filha. Era muito nostálgico entrar em seu escritório. Por outro lado, era minha sala de brinquedos. Era um jeito de passar tempo com ele. Deixei tudo exatamente como ele deixou. O charuto no cinzeiro, o papel na máquina de escrever…. Não toquei em nada. Tudo que fiz foi tirar as teias de aranha de vez em quando e garantir que não houvessem ratos para destruir seus papéis porque o escritório fica numa garagem. Me aconteceu muito de pegar um papel, ou um livro, e quando me dava conta cinco horas tinham se passado. Eu me sentia dentro do cérebro do meu pai. Tudo tão interessante, todos os objetos com qualidade para serem itens de museu. São autênticos.
O arquivo é aberto?
Sim. Estudantes e pesquisadores que nos contatam têm acesso.
Mas você pensa em colocá-lo num outro lugar?
Ainda não. Não estou pronta para isso. Sinto que, se esvaziar aquele quarto, então, realmente ele terá partido. Egoisticamente, mantenho tudo como está. Abrimos sim, para estudantes e pesquisadores. Eu até gosto de ter companhia, às vezes me sinto meio solitária. Abrimos livros juntos, é bom. No ano passado, comecei a ler todos os roteiros que ele deixou.
Há muitos?
Muitos. Ele era um escritor muito prolífico, estava sempre trabalhando. Você sempre ouvia aquele barulho da máquina de escrever. Nós viajamos o mundo juntos, ele me levava a festivais de cinema, sets. Ele sempre carregava um bloco de anotações. Não parava de escrever, anotar ideias, diálogos. Foi um pouco assustador mergulhar no mundo dele. Ele sempre me dizia: “Viva a sua vida”. Mas, de algum modo, depois que ele morreu, dei-me conta de que minha vida, de algum modo é a vida dele. Ele faz parte de quem sou. Sou a filha de um escritor, de um cineasta. Como posso não ter interesse nisto?
Você pensar em filmar alguns destes roteiros ou convidar outros diretores para fazê-lo?
Na verdade, antes de morrer ele estava em contato com (Martin) Scorsese para filmar uma nova versão de The night has a thousand eyes, mas isso acabou com a morte dele. Eu mesma gostaria de tentar, na verdade, se alguém me apoiasse. Aprendi como fazer um filme por meio deste documentário. Tive uma equipe fantástica, voluntária. Foi um trabalho de amor. Aprendi uma série de técnicas. Foi legal aprender a fazer um filme fazendo um filme sobre ele. E também quando ele escrevia os roteiros, em boa parte deles escrevia para dirigi-los ele mesmo. Então já anotava onde faria um close up, um plano médio, tudo. Estaria na verdade incorporando sua direção.
Há alguns roteiros cujos diálogos são tão poderosos que a história se torna eterna. Não sinto que os temas dele tenham se tornado datados. São ouro, merecem sair da gaveta. E, depois deste filme, acho que encontrei um novo destino.
O que fez com as latas de filme encontradas por você, contendo imagens inéditas?
Mandei transferi-los para suporte de alta definição. Agora tenho quatro horas num drive.
É todo material que ele filmou durante a II Guerra?
Desconfiava de que era material filmado na guerra, mas tive que conferir o que havia ali. Estava tudo numa caixa, debaixo da escrivaninha, sem etiqueta Não podia acreditar. Ele nunca fez nada com aquilo porque estava sempre ocupado com os outros filmes. Ele só tinha revelado o material dos campos de concentração porque queria mostrar tudo aquilo ao mundo. No antigo campo de concentração de Falkenau, na República Tcheca, há uma placa com o nome dele porque ele filmou aquele lugar. Os filmes que ele não compartilhou com o mundo, na minha opinião, são os melhores, são os que o mostram fumando charuto, falando com as pessoas. Nunca vi meu pai tão jovem. Somente em fotos. Ao vê-lo falando, caminhando, assim ao vivo, com seus maneirismos, realmente me identifiquei.
A vida dele é uma grande história, ele teve vivências extraordinárias.
Com certeza. A vida dele é dividida nos anos como jornalista, depois no exército, na infantaria, e no cinema. Então, intitulei meu filme como A fuller life, porquê disse a mim mesma: “Quem teria uma vida dessas?”. Ele teve três carreiras e uma conduziu à outra. E são muito diferentes. Restou a carga como veterano de guerra. Ele sobreviveu a muita coisa e viu muita coisa também. Ele matou na guerra e teve de conviver com isso. Tinha várias memórias da guerra e usou isto em vários filmes como Agonia e glória. Mas ele também sentiu que, depois de sobreviver à guerra, podia conquistar o mundo. Hollywood? Besteira…(risos).
E a biografia, A third face, foi traduzida em outras línguas?
Somente em francês. Em português ainda não. Traduções são caras e é um livro bem grande, cerca de 600 páginas. Na verdade, por isso pensei em basear o filme no livro. Para manter seu nome vivo e levar a pessoas a conhecer o livro. Quero manter seu legado vivo porque a falta que sinto dele parece que cresce a cada ano.
O ativismo do cinema chileno nas entrelinhas de Las analfabetas
Rodrigo Zavala, Cineweb (SP)
O diretor Moysés Sepúlveda pretende chamar para si um dos principais problemas para o cinema chileno deslanchar em seu país: a formação de público. Apesar de prolífico e acumulando prêmios em festivais internacionais (Gloria, de Sebastián Lelio, recebeu este ano o Prêmio do Júri no Festival de Berlim, por exemplo), parece que o espectador chileno ainda vê com reservas a produção nacional.
Segundo Sepúlveda, depois do período de ditadura, em que dois ou três filmes eram lançados por ano, houve um boom de escolas de cinema nos anos de 1990. Esse excedente de profissionais criou a massa crítica necessária para o grande aumento das estreias que se verifica hoje – algo em torno de 25 filmes anuais.
Enquanto as produções se multiplicam, no entanto, a audiência dos filmes nacionais estacionou: “O número de espectadores chilenos é o mesmo há cerca de 15 anos, quando um filme poderia chegar a ter 500 mil. Hoje, o No (de Pablo Larraín, indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano), por exemplo, não chega à metade desse público. Há filmes premiados em festivais internacionais que não levam mil pessoas ao cinema”.
Há algumas explicações para isso, na concepção de Sepúlveda. A primeira é o próprio preconceito do chileno, que vê as produções nacionais como um gênero em si mesmo. Isto é, não importa se for drama, comédia ou terror, todos os filmes nacionais seriam iguais e ruins.
Por outro lado, o diretor analisa duramente o trabalho de alguns de seus colegas: “Os realizadores querem reinventar a linguagem cinematográfica, porém não conseguem inventar um subgênero. Todos parecem querer fazer drama, comédia, experimental e político ao mesmo tempo. Um cinema que não é voltado às pessoas, mas aos próprios colegas”, critica, excluindo dessa crítica Andrés Wood (Machuca, La buena vida), Pablo Larraín (No, Tony Manero), Sebastián Silva (La Nana), entre outros.
Por fim, e é nesse ponto que o seu Las analfabetas (ao lado) toca. É a formação de público que tem muito a ver com a educação dada em seu país. Para Sepúlveda, não há ligação das produções audiovisuais com o ensino, um abismo que busca superar.
“O cinema chileno deveria deixar de ter medo das massas. Creio que acontece no mundo inteiro: de um lado está a experimentação e de outro o cinema frívolo. Eu sou um dos que enxergam o caminho do meio, o cinema como Cavalo de Tróia, dar uma opinião em voz alta sobre determinado tema. Um cinema que dialogue com realizadores e com o público”.
Em seu filme, que concorre na Competição Novos Diretores na Mostra de São Paulo e se baseia numa peça, apresenta o encontro entre Ximena (a excelente Paulina Garcia, que recebeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Berlim este ano, por Gloria) e Jackeline (Valentina Muhr). A primeira é analfabeta aos 50 anos, fato que escondeu toda a sua vida, enquanto a segunda é uma professora recém-formada e está desempregada.
O conflito aparentemente é simples, potencializado por uma carta deixada pelo pai de Ximena há três décadas, que ela foi incapaz de ler ou saber o que significa. Mas é a relação entre as duas que dá força a esta produção. No calor do aprendizado, a professora é incapaz de sair de uma lógica sequencial de ensino, enquanto sua aluna, intuitiva e emocional, evolui para um processo mais orgânico.
“O filme faz críticas estruturais à educação no Chile, que é um dos temas que me interessam desenvolver mais. Afinal, somos vítimas de nosso contexto, da educação que segrega, do isolamento, do analfabetismo funcional. Estamos falando de pessoas que foram à escola e não aprenderam”, afirma.
Sepúlveda critica duramente o presidente Sebastián Piñera, a partir desse ponto de vista. “O Chile se diferencia do resto do mundo por ter um ensino dirigido ao mercado, em que o presidente Piñera vai a público dizer que a educação não é um direito, mas um bem de consumo”, lembra.
Mariano Blanco aposta na espontaneidade em Los tentados
Nayara Reynaud, Cineweb (SP)
Premiado em seu país com o documentário Somos nosotros, o argentino Mariano Blanco veio ao Brasil mostrar seu segundo longa, Los tentados, na 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Seu novo trabalho, mais ficcional do que o anterior, ainda guarda características documentais ao apostar na casualidade das situações. O diretor fala da espontaneidade do filme, protagonizado por seus amigos Lule e Rama, que vivem um casal tentando se adaptar às regras do relacionamento, além de comentar as dificuldades de filmar sem roteiro.
Como foi desenvolvido o roteiro de Los tentados?
Não há um trabalho de roteiro fixo ou ficcional. Há uma espécie de escaleta com certas situações essenciais no filme e situações menores.
Mas ele foi inspirado em alguma história dos atores?
Não deles. Os dois [Lucía Romero e Ramiro Sciallo] não são atores profissionais, interpretam personagens. Um pouco sim ou pouco não. Mas o filme não tem a ver com eles dois especificamente e sim com fatos que eu conheço, de alguém que mantém esse tipo de relação. Não está atrelada à história deles, não como personagens, nem como pessoas. São amigos meus e eu não sabia que já tinham ficado, quando estavam bêbados em uma festa. Eu estava inspirado em algumas experiências pessoais e de amigos.
Então, como foi o processo de trabalho deles [Lule e Rama] com a atuação e a equipe?
O longa foi filmado a 400 quilômetros de Buenos Aires, em Mar Del Plata, uma cidade costeira. Vivemos todos em uma casa muito grande, com muitos quartos, durante 25 dias. É a casa do filme. Eu escolhi o casal protagonista três dias antes de começar a filmar o longa. Liguei e perguntei se queriam. Só perguntaram “Quando?”. “Em dois dias” e eles disseram “Como dois dias?!”.
Nossa, eles são seus amigos mesmo, né?
São mesmo. Os dois aceitaram e fomos filmar. Estávamos em uma equipe bastante reduzida, erámos entre 12 e 15 pessoas, o que para eles era bastante como equipe técnica. Os primeiros dias foram um pouco de adaptação. Depois se encaminhou a produção mesmo. Há certa tonalidade de atuação: há cenas que não exigem tanto, não é preciso falar muito, recordar coisas, ideias. Digo isso porque eles não sabiam o que teriam que fazer até o momento antes de filmar, então ficava muito espontâneo.
Você falou de Mar Del Plata. Seu primeiro filme também é ambientado na cidade. Você nasceu lá?
Não. Mas é uma cidade litorânea muito famosa, tem um porto bem grande. Eu estava acostumado a passar o verão, as férias lá. Durante os anos da adolescência, ia uma vez por ano a Mar Del Plata. Tenho uma proximidade muito grande com a cidade e um desejo de filmá-la.
A ideia inicial sempre foi fazer um filme de observação deste casal? Porque não há muitos pontos de virada no roteiro…
Não é um filme de roteiro fixo. Isso me permite fazer uma coisa que gosto muito. Às vezes, filmo situações que me interessam e que não conduzem a um caminho específico. É a acumulação de situações que me permite fazer filmes muito livres, com todo tempo há a possibilidade de casualidades. É lindo filmar o que nunca foi pensado, imaginado.
A dinâmica entre o casal (mesmo brincadeiras bobas) é própria de alguém tentando viver a rotina adulta. Como apresentar esse tipo de amadurecimento dentro de um filme?
É algo que não sei está muito bem explicado no filme. Eles parecem estar vivendo nessa casa bem precariamente como se não fosse deles ou se tivessem acabado de mudar-se para lá. E, com isso, estão se adaptando, cumprindo as regras. Algumas próprias do matrimônio: a decisão de quem vai lavar os pratos, por exemplo. Isso para mim é algo interessante porque são pessoas que estão tentando fazer algo e não conseguem.
O processo de mistura entre documentário e ficção ainda o desafia?
Muitíssimo. Foi muito difícil filmar este longa (Los tentados). Sim, porque tínhamos um filme que não tinha roteiro. Tive de aprender sobre o filme, buscando coisas que me agradam, me interessam. O filme não resultou da maneira que pensei. À medida que se vai filmando, montando, se vai dando conta de quais coisas funcionam e quais não. Por isso, o processo de criação foi difícil porque muitas vezes não se encontra soluções. Se contasse com um roteiro seria mais fácil, teria um respaldo. Não ter um roteiro é um pouco caótico. Filmamos durante vinte dias. Passaram-se quatro meses e voltamos a gravar mais seis, sete dias. E depois filmamos mais três, quatro dias soltos. Então, foi um processo muito grande e que não me permitia descansar. Tinha que ficar pensando em como montar o filme todo o tempo.
Foi uma produção totalmente independente?
Sim, só com o apoio da Universidade [del Cine, em Buenos Aires] onde estudei, só com o apoio de câmera, equipe e produção. O resto é tudo independente. Não tive colaboração de nenhum fundo estrangeiro. Tenho plena liberdade de fazer o filme que quero, provando coisas, investigando.
Então, o orçamento foi baixíssimo?
Uns 50 mil pesos, que são, assim, como R$ 22 mil.
Existe alguma previsão de distribuição de Los tentados no Brasil?
Na Argentina, a estreia deve ser em março de 2014. No Brasil, não tem perspectiva não. Seria interessante distribuir no país, mas até agora não tenho nada definido.
A luz homogênea de Edward Hopper
Willian Silveira, Papo de Cinema (RS)
Se Edward Hopper (1882 – 1967) não houvesse existido, os Estados Unidos o teriam inventado. Um dos grandes nomes da arte americana no século 20, Hopper veio de uma família de classe média para retratar com perfeição, tanto nas cenas urbanas quanto rurais, a modernidade do país e de seus homens. Concebidas em um registro realista, os quadros do pintor conjugam o espírito de uma convicção americana – mescla de resignação e solidão – com o resultado da luz desdobrada pelos espaços – de quartos até casas de campo. Dono de uma profundidade projetada, não aparente, foi expoente de uma visão de mundo que se convencionou chamar por American Life.
Hopper stories surgiu pela iniciativa do produtor Didier Jacob. Jacob levou o projeto para o canal Arte France, que aceitou produzi-lo. Com algo em torno de 60 minutos, o filme é composto por oito curtas. Os diretores, todos europeus, partiram da obra de Hopper que mais os instigava.
Além de homenagear o trabalho do artista, o filme tem uma proposta bastante interessante. Hopper é um mestre da sugestão. Por característica, as obras do americano vão na contramão das pinturas tradicionais, voltadas a registrar acontecimentos ou personalidades importantes, compostas com magnanimidade e por inúmeros personagens, como em As Meninas (1656), de Velázques, recorte inusitado da aristocracia, ou o estandarte da Revolução Francesa, A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Delacroix. A vida americana que interessou a Hopper era menos pomposa, mas não menos profunda. Por isso, a constante da sua arte esteve na simplicidade e pontualidade da captura, como no caso dos sujeitos no bar, em Nighthawks (1962), ou a mulher sob a luz da manhã, em Morning Sun (1952).
O desafio que se constituiu em Hopper stories era completar, como o título sugere, esses momentos do cotidiano. Reconstituir o todo de uma história que fizesse sentido ser explicada por um momento – justamente os dos quadros escolhidos. A interessante escolha de diretores europeus dá uma dimensão de como o espírito da modernidade, impregnado nas obras originais, se espraiou de forma homogênea por todo o mundo.
Com exceção de dois curtas – o existencialista Moutain, de Martin de Turah, e a animação Rupture, de Valérie Pirson – o conjunto consegue uma quase milagrosa homogeneidade. A falha, porém, não está no que foi realizado, que demonstra sincronia entre as obras de Hopper entre si e entre estas e os diretores, mas na junção dos filmes. Foi péssima a decisão de não apresentá-los em sequência – como em geral costuma-se fazer nesses casos -, mas interpor os créditos e a desnecessária vinheta da Arte France entre cada curta. O detalhe, que pode ser facilmente corrigido pela produção de Jacob, não ofusca o mérito do projeto e o bom resultado alcançado.
Uma seleção de filmes
João Nunes (SP) – Publicado no blog http://portal.rac.com.br/correio/blog/?blog_id=28
Selecionei quatro filmes entre os meus preferidos da 37ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. E confesso sem pudores que os dois mexicanos aqui citados foram escolhidos, também (portanto, não só), por um valor insondável: o afeto, um sentimento particular de cada um de nós.
Lições de Harmonia (Emir Baigazin), co-produção entre Cazaquistão, Alemanha e França, é um filme complexo na feitura e no tema que trata. Há um rigor formal que muitos consideraram excessivo; porém, ele está absolutamente conforme com o personagem central, um adolescente inteligente, frio e calculista. Na primeira cena (incômoda) o vemos sacrificando uma ovelha e, depois, tirando-lhe a pele e as vísceras e a dividindo em pedaços. É o trabalho dele, mas ali começa a ser evidenciada parte da personalidade do protagonista.
Esse garoto calado, observador, com inseguranças próprias da idade, mas, ao mesmo tempo, seguro do que almeja (a sagacidade lhe permite tal segurança) terá de fazer uns exames na escola e passará por teste que lhe definirá a vida. Fosse adulto, nem se importaria com o tipo de pressão e isolamento que os colegas de escola lhe impõem. Mas ele está definindo o que quer e o que busca da vida e a avaliação dos colegas tem peso descomunal.
Aslan sabe que só os fortes sobrevivem. Se evidenciar fraqueza, estará morto. Assim, estabelece um plano arriscado e duro para se manter vivo. Curioso que torçamos para que ele enfrente mesmo seus opositores, ainda que esteja sozinho e sem apoio.
Normalmente, aos heróis é dado o poder de sofrer, não perder a linha e triunfar usando armas morais e legais. Aslan chuta para longe esse conceito de herói e vai à luta utilizando todas as armas possíveis. Ele tem um plano. E não sorri nunca e não sabe o que significa brincar como um adolescente comum, pois o que o atormenta se tornou mais forte.
A força de Lições de Harmonia começa no título irônico, pois é da desarmonia que trata. Não há drama sem conflito; e é no caos de uma idade tão complexa quanto a do adolescente que se estabelece o drama. E o cenário cinza, gelado, aquela neve que nunca acaba e o frio são contrapontos do alto teor de tensão do filme.
La Jaula de Oro: Entrevistei o diretor Diego Quemada-Díez, claramente influenciado pelo discurso político engajado do britânico Ken Loach, de quem foi assistente em Terra e Liberdade (1995). Mas ele está consciente de que estamos no cinema e não em palanques ou passeatas.
Assim, o recorrente tema da fronteira entre México e Estados Unidos não trazem palavras de ordem contra a severidade (ou selvageria) do capitalismo nem de como esse sistema econômico premia com o necessário dinheiro, mas devora. Nada disso.
Ele apenas retrata o sonho dos adolescentes guatemaltecos Juan (Brandon López), o índio Chauk (Rodolfo Dominguez) e a garota Sara (Karen Martinez) travestida de homem. E lá vão eles de trem atravessar o México rumo a Los Angeles.
Na viagem épica cruzarão com todos os tipos de obstáculos, arrancarão deles o pouco que tinham, mas tentarão seguir adiante. Normalmente nos cansamos quando o herói sofre demais, mas em La Jaula de Oro a determinação, especialmente do protagonista Juan, é tamanha que ele se especializa em dar a volta por cima. Diego me contou que não queria uma vítima, mas alguém que supera tudo em nome do que almeja.
A ideia do trem como transporte (precário) rumo a um ponto bem definido é brilhante. O filme avança na medida do desejo dos personagens. E nós vamos juntos. Não é um road movie aleatório; os meninos sabem o que buscam. E há o frescor da juventude incerta tentando estabelecer o que anseia da vida: o pior nos Estados Unidos será melhor do que a miséria onde vivem.
Child’s Pose/Instinto Materno: Urso de Ouro no Festival de Berlim/2013, Child’s Pose, de Calin Peter Netzer, mostra o quanto o cinema romeno vive boa fase. O filme é de uma crueza absoluta no que trata e na forma como o faz. Na forma, o diretor usa câmera não mão quase o tempo todo. Poderia ser chamado de maneirista, exibicionista, o que seja. Não. É a linguagem adequada de que ele se utiliza para narrar a história. A câmera acompanha sem cortes a tensão dos personagens. Não há planos e contra-planos nos diálogos; a câmera se movimenta em planos-sequência como se fosse cúmplice do que ouve (e o espectador também) dos personagens não dando tempo ao ator de racionalizar a interpretação (talvez isso ocorresse, se houvesse cortes).
Não por acaso, o que se diz ganha ainda mais consistência. O encontro da sogra com a nora e as confidências que trocam cria alguns dos diálogos mais brutais e íntimos no cinema recente. A intimidade exposta sem rodeios e com uma franqueza e sinceridade faz parecer banal e artificial qualquer outro diálogo.
E há uma mãe tão dominadora, ditatorial e calculista capaz de nos meter medo – e, no entanto, tão próxima do que vemos comumente. E um filho igualmente intolerante e duro com a mãe, que parece não existir e existe; somos capazes de detectá-lo facilmente nas nossas relações cotidianas.
E há o drama propriamente dito. O filho atropela e mata um garoto de 14 anos. A mãe rica e bem relacionada tentará tudo, inclusive suborno, para livrar o filho da cadeia. Os pais pobres do menino ficam num desamparo só. Alguma coisa precisa abrandar a dor de ambos os lados. Tudo isso, sem trilha ou adornos e efeitos. Tudo cru, como é a vida, afinal.
Las Horas Muertas: Infelizmente não consegui entrevistar Aaron Fernandez, o diretor desta surpresa mexicana. Queria muito saber a gênese de uma história tão simples e encantadora. Um achado.
Um tio de Sebastián, de 17 anos, o chama para cuidar temporariamente do motel do qual é proprietário. Ele está doente e viaja a fim de realizar exames médicos. O menino aceita para colaborar, mas não tem intenção de fazer da tarefa um ofício.
Mas tudo muda. Ele se descobre empreendedor, assim como aprende a negociar – o modo como faz para vender os cocos da propriedade para um garoto de 12 anos mistura originalidade na concepção com beleza, além de um toque de pureza – e, claro, depara com o sexo; afinal, a razão do trabalho dele.
Tudo acontece praticamente no motel, com breves passagens pela praia onde ele se localiza, em frente do estabelecimento, onde o garoto de 12 anos vende coco, e num barzinho. As horas mortas são vivenciadas ali mesmo no motel à espera de clientes.
Com um roteiro milimetricamente desenhado, nada fora do lugar, personagens bem definidos com poucas pinceladas e a história sendo contada a partir de pequenas ações e poucos diálogos o filme me conquistou. Vendo-o, parece fácil escrever um bom roteiro ou fazer cinema. Porém, ele atesta uma vez mais o quão difícil é encontrar originalidade na simplicidade.
De fato, o roteiro de Las Horas Muertas é simples, mas sofisticado, assim como a depuração exigida para contar essa história (só na aparência) pouco atraente. Ocorre que naquele cotidiano onde quase nada acontece se processam transformações das quais o personagem nem se dá conta: ele está deixando de ser garoto para se transformar num homem. E sem nenhuma concessão ao clichê tão comum a esse tipo de história.
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