Descobertas da Mostra Internacional de São Paulo

Este texto reúne comentários dos críticos da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema sobre alguns filmes “descobertos” durante a Mostra Internacional de Cinema de 2011. O objetivo é jogar luzes em cima de filmes cujas sessões não foram hit de público.

Boa leitura!

Che, Um Homem Novo – Por Ernersto Barros

Che, Um Homem Novo (Che, Un Hombre Nuevo) é um capítulo da história do Século 20 passado a limpo. Pela primeira vez, fatos obscuros da vida do médico, poeta e comandante da Revolução Cubana são revelados publicamente. Filmes e documentos do acervo particular da família dele, do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos e do Exército Boliviano, liberados pelo presidente Evo Morales, compõem um retrato de Che que vai muito além de frases e fotografias icônicas.

Tristán Bauer, conhecido pelo longa Iluminados Pelo Fogo (Iluminados por el fuego, 2005), precisou de 12 anos para concluir o documentário. Com o auxílio da pesquisadora Carolina Scaglione, o cineasta faz uma reconstrução completa da vida de Che, com trechos de filmes raríssimos da infância, adolescência e de todas as fases da vida adulta, até o seu assassinato na selva boliviana, aos 39 anos, em outubro de 1967. Com exceção de uma sequência que reconstitui o caminho da coluna comandada por Che em direção ao centro da ilha, de algumas imagens comparativas de paisagens e de documentos, tudo o mais é fruto de filmagens da época.

Che não se intimidava diante das câmeras. Na verdade, se comportava como um pop star que pregava a revolução em toda a parte e em particular na América Latina. Além de expor o carisma excepcional de Che, o documentário consegue penetrar com intimidade na sua formação intelectual. Graças aos diários que manteve durante toda a vida, inclusive sem parar de escrever entre os tiroteios da guerrilha, ficamos sabendo até dos livros que ele leu desde os 16 anos. E também da sua paixão pela fotografia e sua terrível luta contra a asma, uma doença que lhe atormentou a vida inteira. Para dizer o mínimo, Che, Um Homem Novo é um filme obrigatório.

Cut – por Orlando Margarido

Cut é um título pequeno para dar conta da ambição de cinema que propõe, e diga-se logo, cumpre com raro empenho. Mas também significativo, pois a partir de seu dúbio sentido pode-se denotar os universos explorados pelo filme. Como corte de uma filmagem atende ao perfil do protagonista Shuji (Hidetoshi Nishijima), cinéfilo e jovem realizador japonês frustrado por não conseguir tocar seus projetos e preocupado com o destino da arte que escolheu. O outro corte será menos evocativo. Refere-se às feridas no rosto e no corpo do personagem quando este assume uma dívida do irmão assassinado junto a Yakuza. Shuji aceita apanhar para, no limite do sacrifício físico, restituir à máfia o dinheiro emprestado com o qual, afinal, realizou seus filmes.

Nessa equação aparentemente insólita entre o amor pelo cinema e questões subjetivas como honra e moral, o diretor iraniano Amir Naderi não procede a uma violência glamurizada e estetizante de certa cinematografia oriental de ação. Prefere o tom realista, mais contundente e desconfortável por certo. Se por vezes exacerba é para reforçar o contraste com o que há de singelo e poético de quem vive cercado de fotos de cineastas e cartazes de clássicos, contexto que Shuji também utiliza para reunir jovens em sessões noturnas de filmes mudos. A desesperada tentativa do protagonista de acusar o fim de uma dimensão artística do cinema, megafone em punho pelas ruas de Tóquio, se reflete na imolação a que se dispõe, e vice-versa.

Como a intensificar essa correspondência, Naderi lança mão de um recurso que leva o espectador a talvez uma terceira dimensão do drama, aquela que torna a plateia da sala escura conivente com a paixão do personagem quando este esboça a lista de seus filmes preferidos. Assinala, assim, o objetivo maior do abnegado Shuji e do seu próprio filme. Cut está na repescagem da Mostra.

Desapego – por Tony Tramell

Desapego (Detachment), de Tony Kaye, é um filme forte e contundente. Desde as primeiras imagens ele captura a atenção do público com um estilo que remete a um documentário com depoimentos de professores que contam suas histórias de vida. Essa introdução é o ponto de partida para fundir com a trajetória do protagonista Henry Barthes (Adrien Brody), um brilhante professor substituto de passado conturbado.

Tony Kaye que já havia dirigido A Outra História Americana, sobre a supremacia branca, aponta o dedo para uma das grandes feridas dos Estados Unidos: a educação. O sistema educacional com seus principais problemas é retratado no filme. Alunos desinteressados, professores desestimulados e despreparados para a realidade do cotidiano, a hipocrisia de programas de ensino governamentais, o descaso dos pais com a educação, tudo se encontra no roteiro de Carl Lund.

As únicas forças que parecem afetar o universo de Henry são seu pai, internado numa instituição médica, e a prostituta adolescente Erica (a novata Samy Gayle numa interpretação promissora). A figura paterna faz parte do conturbado passado familiar que é frequentemente mostrado numa edição fragmentada, representando a tortura psicológica do protagonista. Imagens que remetem ao super-8, com uma fotografia sépida, ilustram bem esses momentos, que fazem parte de um quebra-cabeça mental.

Desapego retrata o vazio, as falhas humanas, as escolhas e o futuro que criamos para as futuras gerações. Longe do tipo de cinema que Hollywood costuma retratar, seja Ao Mestre Com Carinho ou Mentes Perigosas, o filme tem sua identidade própria – que pode até ser indigesta para alguns –, mas o clima de cinéma vérite conseguido por Tony Kaye é impactante.

Jeanne – por Heitor Augusto

Estreante na direção, Shahram Varza realizou um filme exigente, radical tanto em sua narrativa (uma câmera fixa no rosto de uma mulher) quanto em seu posicionamento político (pró-Palestina). Recusa-se a entregar mastigado o contexto político, exigindo que seu público caminhe na direção do filme.

Uma mulher, que demonstra traços de uma beleza pregressa, mira a câmera. Está sentada em silêncio. Uma voz em off nos traz o que ela pensa, o que aconteceu, como foi parar naquela prisão. Os interrogatórios, as torturas psicológicas as falsas afirmações. “Eles não entendem”, diz ela.

“Eles”, no caso, são seus algozes que parecem não compreender porque ela resistiu. O silêncio e a imobilidade criam um incômodo latente: é clara a consciência do realizador de que a experiência do cinema também passa pela dor. A vida daquela mulher, que representa muitas outras jovens Joanas, nos assusta. Uma das razões tal incômodo está nos longos planos, doloridos. E assim tinham de ser, pois é o filme tentando nos fazer não apenas entender, mas sentir o mesmo sofrimento da personagem.

Jeanne é um filme pequeno, mas muito corajoso e exigente. Sem medo de assumir seu posicionamento político pró-Palestina, porém exigindo que o espectador vá em sua direção para extrair dele sua força. Nem mesmo sua política é dada de bandeja.

A Maleta Mexicana – por Neusa Barbosa

Raras vezes um documentário acerta tanto, e tem tanta sorte – matéria indispensável ao documentarista –, ao revelar seu tema. No caso, a redescoberta de um inacreditavelmente valioso acervo de fotos sobre a Guerra Civil Espanhola, perdidos por 70 anos. Numa narrativa ágil, intercala-se o tema com as próprias biografias dos fotógrafos (os jovens pioneiros do fotojornalismo de guerra, Robert Capa, Gerda Taro e David Seymour) e o clima instável da própria Guerra Civil, fazendo uma habilidosa liga entre informação e emoção.

Tudo isto é o que consegue a diretora inglesa radicada no México Trisha Ziff em A Maleta Mexicana (The Mexican Suitcase). Envolvida de perto desde o começo no projeto de recuperação das preciosas fotos – fruto de um grande acaso – pelo Instituto Internacional de Fotografia, ao qual estava ligado Cornell Capa, irmão de Robert, Trisha consegue montar este esplêndido caleidoscópio emotivo e político, ouvindo depoimentos preciosos – como o da enfermeira que atendeu Gerda Taro em seu leito de morte, precocemente, aos 26 anos.

Acreditando no poder tanto da imagem quanto da palavra, a documentarista encadeia as diversas vozes que reproduzem o clima dos acontecimentos dramáticos da Espanha radicalmente dividida dos anos 1936-1939 – uma ferida que periodicamente se reabre, deixando entrever que as batalhas daqueles dias talvez ainda não tenham cessado de todo no espírito do povo espanhol, se é que um dia poderão de fato resolver-se.

Todo este mundo fotográfico foi preservado pela ação de um herói bem menos famoso do que Robert Capa, seu incansável laboratorista Cziki Weis, que organizou cuidadosamente os negativos, guardando-os em caixas com anotações minuciosas de locais e datas que permitem agora reconstituir o que as lentes de Capa, Gerda e Seymour imortalizaram. Um verdadeiro túnel do tempo reencontrado e, pela mágica do cinema, voltando à vida durante a projeção. O filme está na repescagem da Mostra, vale todo esforço para não perder.

As Neves do Kilimanjaro – por Neusa Barbosa

Partindo de um poema de Victor Hugo, Les Pauvres Gens, o diretor francês Robert Guédiguian (A Cidade Está Tranquila) renova a abordagem em seu recorrente universo temático, recorrendo ao seu elenco habitual, nesta história sobre a generosidade em que se examinam também questões como culpa e responsabilidade.

O casal central é Michel (Jean-Pierre Darroussin) e Marie-Claire (Ariane Ascaride), pequena classe média trabalhadora de Marselha, terra do diretor. Michel é sindicalista de uma empresa portuária. Com a crise econômica, ele acaba perdendo seu emprego, o que o lança numa aposentadoria precoce, com tudo o que isso implica.

Casada há muitos anos com Michel, Marie-Claire trabalha como cuidadora domiciliar de idosos. Em torno dessa mulher luminosa, gravitam o marido, os filhos e os netos. Ela tem uma atitude positiva diante de tudo, mesmo do desemprego do marido – que, por ser sindicalista, poderia ter optado por não colocar seu nome numa urna da qual sorteou-se o grupo de demitidos. ‘’É duro ser casada com um herói”, é tudo que a esposa tem a dizer.

Na habilidosa maneira em que o roteiro, assinado por Guédiguian e Jean-Louis Milesi, constrói estas relações, nunca se foge à questão da responsabilidade pelas próprias escolhas, ao mesmo tempo que elabora caminhos para que o casal encontre um modo generoso de lidar com as próprias perdas, sem deixar de olhar, inusitadamente, as coisas pelo ângulo dos outros. É aí que o filme fabrica sua própria ideia de bondade possível, evitando a pieguice com uma ternura totalmente verossímil, encarnada por este magnífico conjunto de atores, a luminosa Ariane Ascaride à frente.

Respirar – por Paulo Henrique Silva

Vencedor do troféu Bandeira Paulista de melhor filme, o austríaco Respirar (Atmen) se junta ao russo Elena e ao turco Era uma Vez na Anatólia numa característica comum: os finais destas três produções ficam em aberto, com a situação dos protagonistas não mudando muito em relação ao início da história, podendo piorar ou melhor. Apostam mais no estado dos personagens num determinado instante de suas vidas do que na evolução da ação.

As reflexões e mudanças se processam fundamentalmente na mente do espectador, diante de um olhar mais amplo sobre o contexto sócio-politico ou sobre um futuro que somente quem está do outro lado da tela é capaz de antecipar. Outra coincidência é que a morte não é um fim, tornando-se quase um recomeço. Ao trabalhar numa funerária de Viena, o garoto de Respirar, Roman, renascerá para o mundo.

A maneria como detalha o ritual de preparação para os enterros nos faz lembrar do japonês A Partida, ainda que de forma menos poética, em que a rejeição inicial de Roman pelo trabalho dará vez à compreensão de seu lugar, buscando fazer o caminho de volta para casa após ir para o reformatório devido à morte de um colega. Apesar deste entendimento, o final não é sinônimo de felicidade completa, apontando apenas para o cumprimento de uma etapa.

Sábado Inocente – por Paulo Henrique Silva

Câmera constantemente na mão e a impressão de um relato “ao vivo”, registrados por amadores presentes aos acontecimentos, são caraterísticas de uma nova onda de filmes de suspense e terror, como Cloverfield – O Monstro e Super 8. E também ajuda a definir um dos melhores filmes exibidos da 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Sábado Inocente (V Subbotu), produção russa vencedora do Prêmio Especial da Crítica.

Assinado por Alexander Mindadze, diretor de 62 anos que ainda está em seu segundo longa-metragem (justificativa: ele foi roteirista de 11 trabalhos de Vadim Abdrashitov durante três décadas), Sábado Inocente não tem um personagem carregando uma filmadora durante toda a trama, como se tudo que víssemos fosse através de seu olhar. Porém, estão presentes as imagens tremidas e os planos-sequência, também usados para passar a ideia de captação no calor do momento.

A grande diferença é que estes artifícios colaboram para criar um efeito inverso aos filmes hollywoodianos. No lugar de oferecer uma vontade no espectador de querer saber mais sobre os motivos de um determinado fato estranho, o russo abandona a mórbida curiosidade e cria em nós uma ânsia contrária, desejando que o protagonista saia imediatamente de Chernobyl, cidade da hoje Ucrânia palco de um desastre nuclear em 1986. Mindadze trabalha sua narrativa em cima deste desespero do público.

O clima festivo nas horas impróprias, tão comum na filmografia russa, como recurso de humor negro, só sai de cena durante os créditos finais, quando o filme lembra que o governo soviético demorou 36 horas para comunicar aos moradores de Chernobyl sobre a explosão. Assim se explica os toques surrealistas de antes, em que a grande potência já se esfacelava apesar de não assumir. É a forma como Mindadze conduz a sua trama – a tragédia esta (literalmente) no ar, mas os personagens resistem a aceitá-la.

O reator em chamas, assustadoramente visto de longe pelos personagens, se transforma no grande símbolo da decadência do país. Impactante e muito ilustrativa do que se tornou a União Soviética em seguida, é uma das sequências mais belas de Sábado Inocente.

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