Aqui, reunidos três balanços da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2011, diversos nos seus pontos de análise, como uma tentativa de ampliação do que pode ser constatado in loco por quem a acompanha com atenção mesclada, entre o dever de ofício e o óbvio prazer que ela proporciona.
Evento precisa, agora, se liberar do excesso de personalismo – Cássio Starling Carlos (Folha de São Paulo – 05/11/2011)
A Mostra completou 35 anos como quem fica órfão depois de adulto. O desaparecimento, às vésperas da abertura desta edição, de Leon Cakoff, fundador e eixo do evento, provocou um abalo emocional.
Ao longo de sua sólida existência, o evento cumpriu funções de informação, divulgação, resistência civil e cultural, enfrentou períodos de vacas magras e desfrutou abundâncias.
E manteve-se fiel a dois princípios sobrepostos: refletir os afetos estéticos de seu diretor e representar a diversidade cultural, reunindo de títulos hiperaguardados a obscuridades de cinematografias de A a Z.
A definição de “novo” ou “desconhecido”, no entanto, modificou-se a cada minuto desde 1977, ano da primeira edição. O progresso tecnológico, por exemplo, alterou a distribuição e os modos de fruição e alargou os canais de informação. Assim, evaporaram os traços de interesse comum entre o que estimula a jovem cinefilia do século 21 e as estéticas caras aos públicos que fomentaram a infância e a adolescência do evento paulistano.
Impedir, por outro lado, o espectador paulistano de ter acesso a filmes destacados em competições prestigiosas para afirmar ineditismos em relação ao Festival do Rio é um “critério” que só fortalece a seleção do evento carioca e inflaciona a ponte aérea.
Ao longo dos anos, outras mostras de todos os portes aprumaram, impuseram focos segundo conceitos sólidos trazidos por curadores de reconhecida competência – que desempenham funções que vão além da mera seleção ou da produção de um simulacro de representatividade global.
Tais escolhas propiciaram a emergência de mutações estilísticas e foram essenciais para a formação ou a atualização do gosto.
Com a ausência de seu fundador, torcemos para que todas as qualidades que ele ajudou a impor se reafirmem, liberadas do excesso de personalismo. E que a “Mostra do Leon” evolua sempre como Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Celulóide Digital – Mostra 2011, um balanço – Por Neusa Barbosa (Cineweb – 04/11/2011)
Está terminando a 35ª edição da Mostra. Mesmo num formato ligeiramente mais enxuto (250 filmes!), o festival mostrou mais uma vez sua mesma energia na descoberta de produções que passam infelizmente longe dos nossos circuitos comerciais – mais padronizados, impossível. A característica mais marcante de nossos cineplexes, infelizmente, é o cheiro dessa monolítica e inevitável pipoca.
Eu não sou melhor do que ninguém, mas tenho um paladar que necessita de novidades – na gastronomia e mais ainda no cinema. Mesmo frequentando anualmente diversos festivais, no Brasil e fora dele, espero a Mostra com ansiedade. As descobertas da Mostra me alimentam. Entre elas, este ano, revelou-se a pujança do cinema russo. Filmes como Elena, de Andrey Zyagyntsev (de O Retorno); Alexander Mindadze e seu inquieto Sábado Inocente; a retrospectiva do rebelde Aleksei German (de quem visitei Vinte Dias sem Guerra e Krushyalov, Meu Carro!, provavelmente o filme mais louco que vi na Mostra). Ainda tenho anotado para ver na repescagem Movimento Reverso, de Andrey Stempkovsky (atração da próxima quarta).
O georgiano-armênio Sergei Paradjanov foi outra redescoberta. Seus planos, um mais belo e inquietante do que o outro nos perseguem – tomara que futuramente alimentando nossos sonhos – em filmes como A Cor da Romã. Que mundo era aquele que habitava aquela imaginação prodigiosa que, impedida de se materializar em filmes, reproduziu-se em suas belas colagens, muitas das quais podem ser vistas ainda na exibição do MIS, até 20 de novembro ?
Os documentários foram um ponto alto nesta edição. Meu favorito de corpo e alma foi A Maleta Mexicana, de Trisha Ziff, que aborda um tema muito caro para mim, a Guerra Civil Espanhola, e a espantosa redescoberta do trabalho de três fotógrafos que a imortalizaram – Robert Capa, Gerda Taro e David Seymour (Chim). Mas não posso deixar de anotar no meu caderno de favoritos a dose dupla de alta qualidade do veterano alemão Werner Herzog nos belos A Caverna dos Sonhos Esquecidos (em que demonstra uma ótima utilização do 3D) e Happy People – a Year in the Taiga (com codireção de outro russo, Dimitry Vasyukov). E também Alexander Sokurov – Questão de Cinema, em que Anne Imbert oferece uma verdadeira aula magna do diretor russo (presente nesta Mostra com seu vigoroso Fausto). Sem esquecer a série Mafrouza, da francesa Emmanuele Demoris, fã do nosso Jorge Bodanzky.
A retrospectiva Elia Kazan – pena que não pode ficar na repescagem – foi outra oportunidade de ouro de olhar para a dualidade humana, na obra maior de um cineasta polêmico, indelevelmente marcado pela delação no macarthismo. Filmes magníficos como Terra de um Sonho Distante (America,America), Um Rosto na Multidão, Uma Rua Chamada Pecado, O Justiceiro, só podem nos fazer pensar nas duas coisas.
Da longa série de clássicos restaurados, não esqueço das imagens impecáveis de Despair, um dos filmes mais originais de Rainer Werner Fassbinder, um dos alemães que fizeram minha cabeça no cinema dos anos 80 (com Herzog e Wim Wenders).
Muito se fala que o humanismo está em baixa no mundo e que os nossos melhores valores estão perdidos. Não no cinema, felizmente. Filmes como os calorosos O Garoto da Bicicleta, dos belgas irmãos Dardenne; As Neves do Kilimandjaro, do francês Robert Guédiguian; e Era uma Vez na Anatólia, do turco Nuri Bilge Ceylan, só demonstram que os cineastas de todas as latitudes continuam humanos, muito humanos, para a salvação da espécie.
O cinema italiano mostrou força no trabalho de dois veteranos, no hilariante Habemus Papam, de Nanni Moretti, e no inventivo e delicado Irmãs Jamais, de Marco Bellocchio. A Grécia pode andar arruinada, mas seu cinema é capaz de nos propor instigantes esfinges, como Attenberg, de Athina Rachel Tsangari.
O cinema brasileiro pulsou na tela com a paixão visceral de Lavínia (Camila Pitanga), uma das mais belas personagens femininas do cinema e da literatura brasileiros em Eu Receberia as Piores Notícias de Seus Lindos Lábios, o filme de Beto Brant e Renato Ciasca enraizado no livro de Marçal Aquino. Enigmático e belo em seu poético P&B, igualmente Sudoeste, de Eduardo Nunes, promessa do novo cinema nacional. E o documentário Raul – O Princípio, o Fim e o Meio, de Walter Carvalho, ressuscita com verdade humana um mito brasileiro, Raul Seixas, que não morreu porque pessoas não morrem, ficam encantadas, como diria o mineiro Guimarães Rosa. Eduardo Coutinho também não negou fogo no delicado As Canções.
Cinema latino – palmas para dois argentinos, o despojado Las Acacias, de Pablo Giorgelli; e Um Mundo Misterioso, de Rodrigo Moreno. E, apesar de algumas falhas, também para a sátira política mexicana Acorazado, do estreante Álvaro Curiel de Icaza.
A Mostra também marcou pontos ao engajar-se fundo na luta contra os imperdoáveis atentados à liberdade de expressão no Irã, contando com a presença mais do que abalizada de Mohsen Makhmalbaf – um lutador contra ditaduras desde menino, quando enfrentou os desvarios do regime do xá Reza Pahlevi, que o levou à prisão. Green Days, de sua filha, Hana Makhmalbaf, é, aliás, um libelo para incendiar as consciências a apoiar de todas as formas protestos e pressões contra o atual governo ditatorial (e ilegítimo) do Irã. A situação de Jafar Panahi, preso e impedido de filmar por 20 anos, vista no doloroso Isto Não É um Filme, é inaceitável.
Alguns problemas, para serem corrigidos nas próximas edições: projeção digital (este ano, com muitos problemas); legendas (muitos erros imperdoáveis, tornando ainda mais necessário recorrer ao conhecimento que se tivesse de línguas estrangeiras).
A direção da Mostra também poderia pensar em uma nova fórmula de votação dos filmes a serem submetidos ao júri – por que não um modelo misto, em que metade dos filmes viesse da votação popular, como acontece agora, e outra parte de uma votação dos críticos?
Finalmente, os convidados nota dez desta edição: Jan Harlan, o adorável cunhado de Stanley Kubrick, incansável divulgador de sua obra; e ainda mais o dedicado Atom Egoyan, que não perdeu um dia sequer para descobrir tudo que pode da cultura brasileira em suas andanças e conversas por São Paulo.
Como diria Leon Cakoff: “Voltem sempre, Jan e Atom!”. E que a Mostra, sob o signo de Leon, com a força de Renata, siga em frente.
35ª Mostra SP: balanço final – Por Érico Fuks (Blog Lentilhas Vesgas e Cinequanon – 05/11/2011)
De modo geral, a avaliação que faço da Mostra deste ano é bem positiva. Claro que teve seus problemas, aos montes, mas é bom ressaltar que é a primeira Mostra-órfã desde a sua criação, e o fato de o Leon falecer às suas vésperas teve uma série de implicações. Algumas medidas tomadas talvez tenham sido, conscientemente ou não, uma tentativa de resgate dos bons tempos, enquanto que algumas intempéries talvez possam servir de lição.
Por uma questão prática, resolvi listar os pontos fortes e os pontos fracos. Eles não estão necessariamente apresentados em ordem de importância ou de peso, mas creio serem, no meu julgamento pessoal, os fatores mais relevantes para a sua avaliação.
Pontos fracos da Mostra:
– “Digital”: definitivamente, este foi o problema mais grave. Foram esses filmes que geraram o caos. Ainda não estamos preparados para absorver esta tecnologia. Incompatibilidade de formatos, exibição fora dos padrões de conversão, equipamentos de projeção precários, e por aí vai. Hoje, a divisão não é mais dicotômica película/digital. Existem, para atrapalhar um pouco mais essa lógica, os diversos suportes do digital, que quase nunca dialogam. Nas próximas edições e nas futuras salas de cinema, os organizadores e exibidores vão ter de trocar os ultrapassados projecionistas por hackers. Ausência de áudio, imagem tremida que lembra DVD pirata, imagem congelada, cores esmaecidas, interrupção abrupta da projeção, foram alguns dos problemas causados.
– “Programação I”: além dois problemas em si, o digital foi também um dos principais responsáveis pela caótica programação. Todo ano, improvisos, retenções na alfândega e que tais fazem com que a programação inicialmente desenhada seja prejudicada. Mas este ano foi campeão: principalmente na primeira semana. Nem dava tempo para anunciar as trocas de filmes. Em alguns dias, recebi e-mails que eram verdadeiros relatórios, tamanhas as substituições e cancelamentos. Houve casos de filmes que mudaram de sala e isso foi noticiado no horário da sessão. Essas mudanças de última hora também comprometeram a troca de ingressos – soube de filmes que sofreram alteração umas três vezes numa única sessão. Testes de áudio e de legenda minutos antes do filme começar eram comuns.
E sabemos como é complexo organizar uma grade de programação, pois tem de se levar em conta o formato/suporte do filme, sua duração, as exigências contratuais, o período de disponibilidade em São Paulo, entre outros fatores. Também, vale frisar que a Mostra ainda não nos trouxe um modelo ideal de programação. É um desperdício assistir ao insignificante Maria My Love no espaçoso e vazio Cinesesc, que serviu de refugo frustrado para quem não conseguiu ingresso para ver o concorrido Las Acacias. O coreano The Day He Arrives foi programado pra passar no cubículo Cineartinho (Livraria Cultura 2). Não vejo problemas em passar um mesmo filme, outras vezes, na mesma sala, em vez de se tentar o rodízio completo. É possível programar melhor os filmes que ganharam festivais no exterior, filmes de diretores consagrados, filmes dos queridinhos da Mostra, filmes que fazem parte do fetiche dos cinéfilos. Colocando na medida do possível os filmes mais concorridos em salas maiores, menos espectadores ficam do lado de fora.
– “Monitoria”: antes de entrar no mérito da questão, vale ressaltar que muitos coordenadores dos monitores souberam conduzir com eficiência a sua função, mostrando-se ágeis e atentos aos inúmeros problemas e procurando trazer soluções imediatas, dentro do possível. Mas a grande equipe de subalternos, principalmente os marinheiros de primeira viagem, os mais novinhos e colegiais, pareciam estar lá para fazer figuração. Era comum ver os bilheteiros do próprio cinema se desdobrando e driblando a inércia dos novatos. Já que a Mostra convoca uma farta equipe para fazer número, sugiro que, nas próximas edições, um dos monitores fique dentro da sala o filme inteiro para observar as falhas de projeção, e que outro fique com um Nextel na mão para comunicar remotamente os problemas ao projecionista ou a alguém da Central. Fico com a impressão de que a monitoria foi orientada única e exclusivamente para distribuir e recolher as cédulas de votação.
– “Unibanco Arteplex”: sem dúvida alguma, o QG do caos. Embora as bilheterias tenham sido relativamente rápidas no fluxo de venda de ingressos, foram insuficientes para evitar filas que, em alguns horários de pico, aproximavam-se das Lojas Americanas do andar de baixo. Apenas alguns milímetros separavam as filas que se formavam na entrada das salas. Correria, barulho, fuzuê, lotação, tudo isso é pouco para tentar definir o pandemônio em que se transformou o relativamente calmo centro de compras da região da Augusta.
– “Shhhhh”: é notório perceber que o público da Mostra está mudando, tanto pela faixa etária quanto pelos gostos, costumes e comportamentos. Em outras edições, meus amigos cinéfilos, igualmente rigorosos nas condições de silêncio que se exige ao se assistir a um filme, rogavam a quietude já nos primeiros segundos pós-vinheta. Mas em muitas sessões deste ano eles parecem ter desaparecido, e o comportamento egoísta imperou. Falatórios, cochichos, pipoca, chutes na cadeira da frente, atitudes típicas de blockbuster estavam ali nos ditos “filmes de arte”. Uma pena. Como se não bastasse, a geração Y dos cinemas entende que a conectividade deve existir 24 horas por dia: um bando de lanterninhas de luxo, vaga-lumes de plantão mandando e-mails e twittando em seus iPhones a cada cena do filme.
– “Repescagem”: acredito que a organização da Mostra deve fazer um esforço sobrenatural para segurar os filmes no festival, mas os cinéfilos não podem deixar de lamentar, na semana de reprise, pela ausência dos bem avaliados Era Uma Vez na Anatolia, Elena, Um Mundo Misterioso, Las Acacias, O Desaparecimento do Gato, The Day He Arrives, Hanezu, Desapego, O Dedo, Tudo pelo Poder, Forgiveness of Blood, Low Life, O Garoto de Bicicleta, entre outros.
– “Ingresso grátis”: por se tratar de órgãos públicos, o MIS e o Cinusp poderiam continuar oferecendo sessões gratuitas. Ou, pelo menos, cobrar o valor simbólico de R$ 1,00, como fazem o Olido e o Centro Cultural.
Pontos fortes da Mostra:
– “Calor humano”: nem o invernico e as baixas temperaturas fora de época, nem o gelo do ar-condicionado das salas, foram capazes de esfriar o encontro caloroso dos amigos cinéfilos. A Mostra é algo que vai além dos filmes. É um prazer reencontrar as pessoas que você só vê uma vez por ano ou acabou de conhecer na semana passada. A Mostra é encontro: seja por meio das afinidades e interesses, seja por meio do saudável conflito de opiniões.
– “Retrospectiva”: mais uma vez, a Mostra surpreendeu. Talvez seja o ponto forte do festival. A escolha dos homenageados prova que a organização é desprovida de preconceitos e estereótipos. Do radical ao clássico, é possível apreciar cinema na sua forma mais pura e ampla. As retrospectivas trazem um grande material para o entendimento da Sétima Arte no seu aspecto mais vivo, tanto no tempo como no espaço. Cinema de pesquisa, cinema de acervo, cinema de contemplação. É o cinema em perspectiva, longe das amarras e dos rótulos.
– “Herzog”: a exibição em 3D da Caverna dos Sonhos Esquecidos reergue a discussão em torno dos formatos e do que de fato é cinema comercial. A tecnologia em terceira dimensão utilizada neste impressionante documentário prova que o recurso não precisa ser necessariamente aplicado como truque de bilheteria, e não se restringe aos gêneros mais acessíveis (terror, aventura, animação, filme-catástrofe, etc.). Aqui, o 3D tem uma função verdadeira: trazer aos nossos olhos a textura, as ranhuras, as estalactites de um mundo que o diretor ressuscita. A Caverna é um respiro, uma jornada pela descoberta. Dizer que se trata de uma obra-prima é pouco.
– Cinema russo: Fausto, Elena, Sábado Inocente, Movimento Reverso. Fazia tempo que os cinéfilos não viam cinema de qualidade de um determinado país em peso num mesmo festival. Com a abertura de mercado, tende-se a acreditar que a arte dê aquela relaxada e que os realizadores deixem de produzir trabalhos que fazem jus à fama do passado. Não é o caso da atual Rússia escolhida pela Mostra.
– “MIS”: ir no contrafluxo da muvuca costuma render boas experiências. Foi o caso da sessão de Sábado Inocente. Sala vazia, dominada somente por cinéfilos e críticos. Durante o filme, silêncio sepulcral.
– “Remaster”: ouvi dizer que a primeira sessão de Taxi Driver foi bem complicada, e que o vermelho do filme estava quase apagado. Soube depois que foi um erro do projecionista, que trocou os padrões de conversão. Nas sessões seguintes, parece que a apreciação deste clássico foi de 100%, bem como a de Laranja Mecânica na telona, sem as bolinhas tapa-sexo dos tempos da censura. Amarcord, 1900, O Leopardo, todos esses trabalhos ganharam nova roupagem e, ao que me consta, dignos de edição de colecionador, deixando ainda mais nítidas as marcas do cinema perfeccionista.