Seis estreias, seis caminhos, seis acertos
Por Chico Fireman (SP), do filmesdochico.uol.com.br
“As ideias precisam voltar a ser perigosas”, afirma a protagonista de Riocorrente, filme de Paulo Sacramento escolhido pelo júri da Abraccine como o melhor da Mostra de Cinema de São Paulo. A frase, além de traduzir a inquietude das personagens do primeiro longa de ficção do diretor, parece ser uma pista das intenções do próprio cineasta na realização de seu filme. Poderoso retrato da opressão da metrópole sobre o homem, Riocorrente assume um lugar diferenciado na recente produção cinematográfica brasileira.
Seus simbolismos, ao mesmo tempo em que conversam com um cinema de “mestres malditos” de outras gerações, emolduram um debate completamente contemporâneo. Sacramento ousa no discurso e ousa ainda mais na forma. O cineasta está disposto a provocar e, para isso, não se acanha em materializar suas “ideias perigosas”, explosivas, que revelam um homem inconformado com o status quo, um artista em perpétuo desconforto e, mais do que isso, um cinema que não se contenta em ser um só.
Essa inquietude aparece também em outro longa de estreia presente na Mostra: Depois da Chuva (acima), de Cláudio Marques e Marília Hughes. Mas no filme que abre espaço para outra frente de produção no cinema nordestino, a Bahia, o incômodo dos personagens – e dos cineastas – é diferente. É um incômodo com as convicções. O protagonista, criado a partir das experiências pessoais de Marques, não encontra respostas nem no clima de esperança fabricado pelo movimento Diretas Já, nem no discurso empírico do grupo de anarquistas a que se junta.
A fúria silenciosa do personagem só encontra voz no fortíssimo movimento punk rock baiano do início dos anos 80, praticamente desconhecido fora do estado e recriado com certa ousadia pelos diretores. Marques e Hughes abriram mão do quase irresistível estereótipo baiano para fazer um filme sem sotaque, mas com outros temperos. Eles apontam para uma Bahia diferente, de classe média, que não é afro, onde as pessoas escutam rock. Os passos do protagonista nesse terreno tanto universal quanto particularmente soteropolitano são tão surpreendentes quanto algumas opções dos diretores.
A opção é justamente o que dá o diferencial a De Menor, filme da também estreante Caru Alves de Souza. Filha da cineasta Tata Amaral, a diretora evita os caminhos mais tradicionais – e mais fáceis – para tratar de uma das questões mais exploradas pelo cinema brasileiro, a do jovem que se envolve com o crime. Caru oferece um novo olhar para o tema ao escolher lidar com o problema por dentro. Ela evita mostrar a ação em si para tratar de suas consequências na relação entre dois irmãos e decide também esmiuçar o processo jurídico.
O único senão ao filme é o didatismo, em alguns momentos excessivo. O texto decorado, quase declamado, na primeira cena da defensora diante do juiz tem momentos constrangedores, mas não impede que a cineasta construa um roteiro cheio de delicadeza e intimista, que encontra em Santos um cenário original para um filme com um tema como este. Esta vontade de escapar da obviedade, mesmo que possa frustrar o espectador, ávido por acompanhar a ação, é uma das particularidades do filme.
Outro longa que trabalha a frustração em sua premissa – de história e de cinema – é Amor, Plástico e Barulho, de Renata Pinheiro. A pernambucana, que estreia em ficções, invade a gigantesca cena da música brega no Recife, criando um espécie de versão “cultura popular” de A Malvada, onde uma jovem dançarina não mede esforços para chegar à condição de estrela, que ela acredita que sua musa inspiradora já alcançou.
A frustração aparece tanto na tentativa da aspirante quanto na desilusão da veterana – e Renata a utiliza também como método de cinema: para traduzir a efemeridade desse universo, a diretora arquiteta uma série de situações para, na hora h, frustrar as expectativas e não permitir catarses. O espectador não tem chance de ver o “nascimento” da estrela, mas em contrapartida é bombardeado por uma série de imagens de YouTube, como se a cineasta dissesse que ali está seu futuro.
O duelo de interpretações é excepcional. Tanto Nash Laila quanto Maeve Jinkings, uma das melhores atrizes brasileiras do momento, estão excelentes em seus papeis. O elenco cheio de talentos é um dos grandes trunfos de outro filme, O Lobo Atrás da Porta, estreia de Fernando Coimbra na direção. Leandra Leal, Milhem Cortaz, Fabiula Nascimento e Juliano Cazarré chamam a atenção, mas o filme é bem mais do que seu casting.
Em seu primeiro longa, Coimbra revela um impressionante domínio de cena. É raro ver um filme brasileiro que se proponha a fazer um cinema narrativo clássico com tanta competência. O filme, inspirado num famoso caso real, é extremamente bem fotografado, tem uma montagem e um roteiro exemplares, rigorosos, mas cheios de fluidez, e um trabalho sonoro que captura as interferências externas para dentro da história principal.
O som é um dos personagens principais de O Exercício do Caos (ao lado), belo filme de estreia de Frederico Machado, primeiro longa maranhense que ganha distribuição nacional. O cineasta aposta numa narrativa com poucos diálogos, mas que encontra numa excelente composição sonora a forma ideal para traduzir a anestesia da rotina da família que protagoniza o filme. O som ambiente, sempre alto, ultrapassa a realidade daquelas pessoas, como se servisse de cortina e de clausura para os personagens.
Machado consegue capturar um certo elemento fantasmagórico que coabita a fazenda onde a trama se passa. O filme tem um dos conjuntos técnicos mais harmônicos e rigorosos entre os longas brasileiros exibidos na Mostra, o que, num trabalho mais conceitual, corre o risco de virar matéria-prima, mas que em O Exercício do Caos emolduram um projeto sólido, com um algo existencialista, ambicioso sem dúvida, mas que não cede à afetação.
Uma Mostra atípica
Marcus Mello (RS)
Este ano, minha Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi totalmente atípica. Por conta do convite para integrar o júri da Abraccine (na ótima companhia de Amilton Pinheiro, Chico Fireman, Luiza Lusvarghi e Orlando Margarido), ao longo de 10 dias enfrentei uma maratona de 22 filmes brasileiros. O resultado é que voltei a Porto Alegre com a sensação de ter emendado a Mostra de Tiradentes com o Festival de Brasília, passando ao largo do banquete cinematográfico ao qual a Mostra nos habituou. Embora a sensação de estar obrigado a comer diariamente em um restaurante brasileiro durante um evento gastronômico em Paris tenha me acompanhado boa parte do tempo, a experiência acabou se mostrando plenamente satisfatória. Isto porque Renata de Almeida e sua equipe tiveram o cuidado de nos colocar à mesa um cardápio nacional à altura daqueles preparados pelos melhores chefs estrangeiros.
Beneficiada por uma safra como há muito tempo não se via, a Mostra ofereceu a seus espectadores sua melhor seleção brasileira em anos. Foram 46 novos títulos na Mostra Brasil, que incluiu os mais recentes trabalhos de nomes como Júlio Bressane (Educação Sentimental), Sérgio Bianchi (Jogo das Decapitações), Otto Guerra (Até que a Sbórnia nos Separe), Helena Ignez (Feio, Eu?), Cao Guimarães e Marcelo Gomes (O Homem das Multidões), Ivan Cardoso (O Bacanal do Diabo e Outras Fitas Proibidas de Ivan Cardoso) e Lina Chamie (Os Amigos e São Silvestre), os ganhadores dos festivais do Rio (De Menor, de Caru Alves de Souza, e O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra), Gramado (Tatuagem, de Hilton Lacerda) e Brasília (Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán) e documentários sobre ícones da cultura brasileira como Guimarães Rosa, Mário Lago, Cauby Peixoto, Plínio Marcos, Rubem Braga, Olney São Paulo e Ney Matogrosso. Como se não bastasse, e para dificultar ainda mais a nossa vida, a 37ª Mostra promoveu uma retrospectiva completa do mestre Eduardo Coutinho (um dos homenageados desta edição do evento), além de exibições de cópias restauradas de clássicos da estatura de Os Fuzis, de Ruy Guerra, Manhã Cinzenta, de Olney São Paulo, Imagens do Inconsciente, de Leon Hirszman, e O Caso dos Irmãos Naves, de Luiz Sérgio Person. Obviamente, como somos apenas um e o dia tem somente 24 horas, mesmo aqui fomos obrigados a nos restringir aos concorrentes ao Prêmio da Abraccine (cujo recorte incluía apenas primeiros e segundos longas – com o detalhe de que títulos que já haviam sido premiados pela crítica em outros festivais, caso de Tatuagem, de Hilton Lacerda, e Avanti Popolo, de Michael Wahrmann, não estavam habilitados a concorrer).
Embora venha dividindo opiniões desde sua estreia no Festival de Brasília, Riocorrente, de Paulo Sacramento, foi eleito com folga o melhor da 37ª Mostra para o júri da Abraccine. Espécie de primo paulistano de O Som ao Redor, Riocorrente aborda o desconforto de um grupo de personagens a quem coube viver na maior metrópole do país. Trata-se de um filme urgente e excessivo, que se recusa a facilitar as coisas para o espectador, deixando de lado o registro realista em benefício de uma abordagem alegórica do tema.
Uma homenagem declarada ao cinema de Jairo Ferreira e Carlão Reichenbach – a quem Riocorrente é dedicado –, a estreia na ficção de Sacramento segue as lições de Filme Demência, a obra-prima de Carlão, narrando as deambulações de seu trio de protagonistas pelas ruas de São Paulo através de imagens de grande impacto. Ao escolher um caminho arriscado, que o cinema brasileiro infelizmente tem evitado percorrer, Sacramento comete alguns deslizes (diálogos nem sempre bem resolvidos, elenco irregular), mas jamais perde o rumo, surpreendendo a cada instante o espectador com a potência de seu discurso.
Bem diferente é o registro de Amor, Plástico e Barulho (ao lado), de Renata Pinheiro, que recorre a uma estrutura consagrada pelo cinema clássico (Nasce uma Estrela, A Malvada) para mostrar a derrocada de uma diva do tecno-brega (Maeve Jinkings), cujo brilho efêmero será substituído por uma jovem pupila de carreira ascendente (Nash Laila). Renata Pinheiro consegue retratar o peculiar universo musical no qual situa seu filme – tão distante do sofisticado ambiente teatral nova-iorquino no qual as personagens de Bette Davis e Anne Baxter se digladiavam em A Malvada – sem qualquer resquício de preconceito e com extrema veracidade. De resto, tira de sua dupla de protagonistas atuações não menos que irretocáveis, cuja qualidade, sem favor algum, está à altura das performances de suas colegas no clássico de Joseph L. Mankiewicz.
Duas estreias promissoras foram as de Caru Alves de Souza, com o drama de tribunal De Menor, e a de Fernando Coimbra com o policialesco O Lobo Atrás da Porta, em que Leandra Leal combina delicadeza e fúria para recriar a tragédia da Fera da Penha, um dos mais célebres fait divers da imprensa brasileira. Depois de assinarem curtas marcantes, a dupla de jovens diretores comprova que tem fôlego e talento de sobra para fazer uma carreira e tanto no cinema brasileiro.
Outro momento forte da competição nacional foi proporcionado pela animação O Menino e o Mundo, de Alê Abreu. Mesmo quem não é entusiasta do gênero irá se surpreender com a evolução do trabalho de Abreu, um dos mais ativos militantes da animação brasileira. Marcado por momentos de enorme inventividade, frequentemente dialogando com a abstração, O Menino e o Mundo seduz pequenos e marmanjos com a beleza de seus traços e desde logo se afirma como um marco do cinema de animação produzido no Brasil.
Entre os inúmeros documentários apresentados, o principal destaque ficou com Outro Sertão. Fruto de uma exaustiva pesquisa realizada pelas diretoras Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, o filme recupera um episódio pouco conhecido da biografia do escritor Guimarães Rosa, que ajudou a salvar inúmeras famílias judias enquanto atuou como cônsul na Alemanha nazista. Com um material de arquivo extraordinário (que inclui uma longa e inédita entrevista concedida por Rosa à televisão alemã), edição fluente e trilha sonora repleta de achados (Marlene Dietrich cantando Luar do Sertão, por exemplo), Adriana e Soraia produziram um documento precioso, escandalosamente ameaçado de não ser lançado em virtude da intransigência das filhas de Guimarães Rosa.
De lambuja, em meio a essa profusão de ótimas ofertas brasileiras, ainda sobrou um tempinho para se deliciar com o crítico Michel Ciment falando sobre os filmes de sua vida ou conferir aquele que para mim é o filé absoluto da Mostra todos os anos: as imperdíveis sessões de clássicos restaurados. Este ano, com direito a Providence, de Alain Resnais, Era uma Vez em Tóquio, de Yasujiro Ozu, e O Deserto dos Tártaros, de Valerio Zurlini. Ainda que cinzenta, caótica e poluída, em outubro São Paulo se transforma no céu dos cinéfilos.
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