Homem Nu
Por Regina Behar (PB)
O 8º. Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, ocorrido em João Pessoa entre 13 e 19 de dezembro, no Cinespaço do MAG Shopping, trouxe à cidade filmes inéditos, longas e curtas metragens de todo o país, e revelou o nível de crescimento quantitativo e qualitativo da produção local, seja em nas mostras competitivas, seja nos filmes apresentados fora da competição. Curtas como Cancha (de Luciano Mariz), A Queima (de Diego Benevides ) e Transmutação (de Torquato Joel) ou o premiadíssimo Sophia (de Kennel Rógis) e a força dramática de um longa metragem como Tudo que Deus criou (de André da Costa Pinto), revelam que das diversas gerações de cineastas vêm brotando sementes plantadas nos últimos anos. A existência do Festival, sua consolidação ao longo de 8 edições, também contribui para que esse cenário ganhe visibilidade nacional, o que só nos provoca gratidão para com aqueles que doam sua energia ao longo de um ano inteiro para que ele venha a acontecer.
Como nos foi dada ampla liberdade para falar daquilo que quiséssemos no âmbito do festival, vou fazer alguns comentários a propósito do filme de abertura, que gerou uma homenagem a Ney Matogrosso: Olho Nu, de Joel Pizzini. E por que falar daquele que considero talvez o menos festivalesco dos filmes? Talvez para subverter a ordem, quem sabe? O personagem gosta disso. Ele próprio se define como um ser subversivo. Talvez porque esse foi, para além do documental e do cinematográfico, o mais tocante dos filmes; e tocante não no sentido lato, mas estrito: foi aquele que mais me tocou. Me tocou pelo Ney Matogrosso que afirma hoje querer apenas acariciar a plateia e pelo Ney que queria trepar com a plateia, num tempo que também era/é meu tempo.
Esse filme me tocou, porque sou professora de história e talvez me creia a menos historiadora de meus colegas. Isso não tem nada a ver com negar a profissão, mas refere-se a um senso comum e também a uma dimensão tradicional: aquela que remete ao passado histórico, aos fatos, as datas, aos arquivos, aos papéis, às teorias explicativas, aos métodos e a escrita acadêmica. Embora tudo isso tenha também a ver com o filme de Pizzini (pois, que arquivo pra deixar qualquer historiador sem fôlego!). Mas me sinto muito mais próxima dos historiadores da oralidade, daqueles que buscam, nas testemunhas, não a precisão dos fatos, mas a experiência subjetiva que emerge do tempo vivido. Alessandro Portelli, um expoente do campo da história oral, afirma algo que talvez possa soar contraditório, mas não é, comparando a literatura à história oral: “De modo análogo, exatamente por dizer respeito a pessoas ‘comuns’, a ‘indivíduos isolados e obscuros’ que podem, ‘além disso, ser estranhos’ , a História Oral não se concentra nas pessoas médias, mas não raro considera mais representativas aquelas que são extraordinárias ou incomparáveis.” (Portelli, 1997, p.17)
Nesse documentário temos um “ser extraordinário” (no sentido de incomum, não ordinário, fora da média), que por acaso não é um obscuro desconhecido (também conheço seres extraordinários absolutamente desconhecidos ao mundo midiático). Temos, desse ser/personagem/depoente/ um testemunho ou uma confissão? Como separar uma coisa da outra na medida que tanto o externo quanto o interno são inventariados? No filme de Pizzini existe um homem nu, em todos os sentidos: nas imagens do imenso arquivo, nas falas de época, algumas das quais revê como ilusórias, e no discurso atual. Do personagem o filme revela magistralmente a pessoa e o sentido de seu percurso transgressor. Só se pode transgredir aquilo que nos é proibido. Ney reconhece no pai um elemento fundante de sua personalidade, pois ser filho de um militar já o colocou na condição de ter que optar: submissão ou transgressão? Quem se submete está morto, a condição de sobrevivência passa a ser a transgressão.
O documentário é um painel de fragmentos articulados por uma mão competente, pois, pela fala de Pizzini na abertura e no debate com os realizadores, ocorrido durante o Festival, fazer aquele filme foi um exercício e tanto de síntese, diante do quantitativo de material audiovisual disponível. E aqui vou falar um pouco da minha percepção da estrutura que Pizzini criou para articular os fragmentos do arquivo: uma perspectiva de road movie que se revelava em longos travellings pelas casas, túneis, estradas, trilhas. Talvez a tradução cinematográfica mais óbvia para indicar a ideia de percurso, de jornada. Não sei se estou “viajando”, mas percebi uma intencionalidade nesse sentido. Uma outra estratégia narrativa me pareceu também ser a busca da luz através desses túneis e trilhas. A primeira foi que Pizzini criou um direcionamento do escuro para o claro quando usou os túneis e as casas e o percurso indicava a saída no caminho do céu, da janela, da porta ao fim do corredor e isso me pareceu bem adequado.
O percurso narrativo do filme não respeita uma linearidade na organização do material visual, mas cria uma lógica interna em torno do depoimento, o que faz o filme dar voltas no tempo, nos tempos de Ney Matogrosso, e os materiais de arquivo vão sendo adequados aos blocos temáticos que emergem da fala do personagem. O percurso parece, enquanto revelação de uma trajetória, emergir de dentro para fora. Mas, num outro sentido, ele se dá de fora para dentro, caminhando para uma interiorização daquilo que começa como uma descoberta do corpo e da liberdade corporal. O que se revela no depoimento é uma viagem que começa no corpo, se projeta como uma flecha no sentido da alma. Acho que Pizzini buscou traduzir numa dimensão cinematográfica (e a riqueza do material lhe possibilitou isso) esse percurso, essa via possível, que é o acesso à alma através do corpo (os iogues também caminham assim!) .
Então o filme abre o olho nu para o corpo que se permitiu ser natureza, enroscar-se nas cobras, rolar pelas pedras, travestir-se de pássaro, de águia, de bode, de macaco e perceber o pertencimento do ser à natureza. Ancestralidade indígena, mitologias das águas e matas tão presentes no documentário, dimensões arquetípicas que só Jung explicaria. Traduzir isso, tornar isso visível e compreensível torna esse filme um grande documentário, mérito do documentarista.
A pessoa revelada, o homem nu, fala da infância, da mãe e do amor pelo pai (o pai das pedras, da estrutura, da disciplina internalizada, e também o pai do rompimento e do resgate do afeto. Que coisa mais linda! E isso só podia caber num parêntese), da transgressão, do mercado, da sexualidade, do medo da loucura. Revela o ser que se construiu no tempo inventado pela vida, o tempo roubado ao relógio, o kairós, o tempo da graça, o tempo que ele próprio define: o tempo que é. E o tempo que contém todos os tempos e o Ney Matogrosso que se veste de jeans, camisa preta e chapéu panamá, contem o Ney vestido de bode, de pássaro, de brilhos, de cueca sumária, de tapa sexo, de tudo e de nada.
E, finalmente, esse filme me tocou porque o primeiro show que vi em minha vida foi um show de Ney Matogrosso em João Pessoa, no Clube Astréia. Deu um rebu danado porque não abriam os portões. Uma massa humana, enfurecida e erotizada, derrubou-os quando a paciência esgotou, e eu estava com um bando de doidos que entrou pelo teto pra ficar próximo ao palco. Então, posso afirmar que naquela época era revolucionário ficar nu. Era a guerrilha do corpo contra a farda dos militares; era a dimensão foucaultiana de uma luta para não deixar que violassem o direito ao corpo (e como o violaram nas centenas de mortos e torturados), e ficar quase nu encarando uma câmera era tão desafiante quanto pegar num fuzil. Ney afirma uma coisa absolutamente correta naqueles anos 70 e começo dos 80: com os militares de plantão era proibido comunicar o erotismo. Era proibido “expor a libido”, mas ele expôs subversivamente, corajosamente, “descaradamente”. A provocação que fazia do palco causava o efeito subversivo em todos os corpos na plateia e a recíproca da confissão libidinosa é verdadeira. Hoje, com todos os tempos no tempo que é, tudo o que desejamos é que Ney Matogrosso possa acariciar a plateia e, nesse sentido, que pena, pena mesmo, não ter havido um show dele. Seria um presente para o povo de João Pessoa. Essa lacuna foi um verdadeiro “pecado do lado de baixo do equador”.
Documentário em Aruanda
Por Renato Felix (PB)
O cinema paraibano sempre teve, graças a Aruanda e à geração que o seguiu e o teve como um farol, a marca do documentário. Dizia-se até há pouco tempo que ele tinha vocação para o documentário, na verdade. De fato, poucas foram as tentativas de fazer ficção por aqui. Mas isso mudou e o Fest Aruanda mostrou bem isso em 2013.
O documentário continua sendo uma força, mas o destaque na parcela local do evento foi mesmo a ficção. Houve uma mostra só para ela, no último dia, contemplando os curtas que não estiveram na mostra competitiva. E mesmo lá eles marcaram presença – e com ótimos títulos, como Sophia (ao lado), de Kennel Rógis, que o júri Abraccine elegeu como melhor curta paraibano (por si só, uma deferência à boa fase do cinema local). Fora os lançamentos de curtas novos – como De Lua, de Marcélia Cartaxo – entre os quais as ficções também foram maioria.
A nova geração de cineastas é formada através de uma cinefilia que bebe tanto na fonte de Hollywood quanto no acesso muito mais fácil hoje ao cinema do mundo inteiro. E também goza de maior acesso ao equipamento que permite a produção de ficções com qualidade técnica impecável. O espírito colaborativo também é forte, fazendo com que as equipes se integrem e trabalhem duro pela qualidade do filme do parceiro.
O resultado pôde ser bem visto no Aruanda – justamente um festival que ostenta o nome do documentário-mor paraibano. Houve até filme com linguagem documental precisa, mas que, na verdade, é uma ficção (o excelente A Queima, de Diego Benevides). A Paraíba vem encontrando maneiras diferentes de contar suas histórias. Uma diversidade que já está se estabelecendo como a nova vocação do cinema no estado.
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