A força do cinema paraibano
Por André Dib (PE)
O retorno do Fest Aruanda do Cinema Brasileiro não poderia ser melhor. Após ter sua edição 2012 cancelada, o evento está de volta, pela primeira vez com patrocínio direto da prefeitura da cidade. Estranha coincidência, isso ocorreu no mesmo ano da morte de Linduarte Noronha, diretor do emblemático curta-metragem que dá nome ao festival.
Com uma programação de obras independentes e de baixo orçamento, o Fest Aruanda realizou sua oitava edição entre os dias 13 e 19 de dezembro no complexo CinEspaço, dentro de um centro de compras à beira mar de João Pessoa. Na sede nova, o evento recebeu convidados de todo o país, entre realizadores, jornalistas e os atores Lázaro Ramos, Ney Matogrosso e Jean-Claude Bernardet, que ganharam homenagens e honrarias. O cineasta Sílvio Tendler também recebeu um troféu, entregue pelo presidente da Abraccine, Luiz Zanin.
As homenagens – Não é demais chamar Ney e Jean-Claude de atores. O primeiro, que esteve na abertura do festival para exibição do documentário sobre sua carreira, Olho nu, de Joel Pizinni, tem trabalhado nos últimos anos em curtas e longas, como Luz nas trevas, de Helena Ignez, Fca Carla, de Natal Portela e Gosto de Fel, de Beto Besant.
O mesmo vale para o segundo, eminente crítico de cinema que nos últimos anos iniciou carreira de ator. Entre os filmes exibidos no Aruanda, Jean-Claude está nos curtas A navalha do avô e no inédito Passagem, de Taciano Valério, obra autônoma e monocromática, bem mais do que uma prévia para o longa Pingo D’Água, em fase de finalização. Além disso, Jean-Claude atua nos novíssimos O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes e Periscópio, de Kiko Goifmann.
O documentarista paraibano Vladimir Carvalho escolheu as seguintes palavras para homenagear o “escritor, jornalista, historiador, pensador, sociólogo, ator, documentarista, e aí eu vou me perder. Cada um escolha o Jean-Claude que lhe aprouver, porque em cada um desses vocês vão encontrar o estrangeiro mais brasileiro que eu já conheci”. Ao receber o troféu, ele disse que se sente cada vez mais próximo da Paraíba. “Minha história na Paraíba começou há 50 anos, quando escrevi sobre ‘Aruanda’ e defendi seu papel na história do cinema brasileiro. Nos anos 70 estive várias vezes em Campina Grande e no Festival de Areias, onde experimentei a intensidade da vida cultural de resistência e de pequenos agrupamentos. E no ano passado encontrei um grupo liderado pelo Taciano Valério, com quem estou fazendo um filme. Não sou só o mais brasileiro entre os estrangeiros, sou também o mais paraibano”.
Filmes – A programação de longas, escolhidos por curadoria de Maria do Rosário Caetano e Amílton Pinheiro (dois membros da Abraccine), privilegiou oito títulos de cunho político e social. Entre eles está Cidade de Deus – 10 anos depois em que Cavi Borges e Luciano Vidigal reencontram boa parte do elenco do emblemático filme de Fernando Meireles. O próprio Luciano participou do filme como ator do grupo Nós do Morro.
Inspirados por sugestão da jornalista Maria do Rosário (leia sobre as gravações aqui), a dupla de diretores conseguiu (principalmente pelo contraste dos casos) dimensionar o impacto de “Cidade de Deus” na vida de jovens em sua maioria despreparados para o sucesso (do morro para o Festival de Cannes, dali para a indicação ao Oscar), tendo como pano de fundo o abismo social e racial brasileiro. Há nesse ponto uma curiosa inversão, no momento da visita ao cantor Seu Jorge (que em Cidade de Deus vive o traficante Mané Galinha), em um hotel da zona sul carioca. Junto com a equipe do documentário estava outro ator, Micael Borges, que havia interpretado o garoto que leva o tiro no pé, uma das cenas mais fortes do filme de Meirelles. Ao contrário do artista negro de carreira consolidada, o garoto branco somente convive com os confortos burgueses por ter se tornado porteiro daquele mesmo hotel.
Outro destaque do Fest Aruanda foi o longa de ficção Se Deus vier, que venha armado (foto ao lado), estreia do diretor Luiz Dantas no formado longa-metragem. O filme acompanha a saga do presidiário Damião (Vinícius de Oliveira), que aproveita o Dia das Mães para ter algum tempo fora da cadeia, quando um incidente o leva a situações extremas, ligadas aos ataques do crime organizado contra a polícia militar paulista.
Com Damião está a professora de arte Cléo (Sara Antunes), com quem se alia e forma com o amigo Palito (cearense Ariclenes Barroso) o núcleo principal da história. Amorosa e compreensiva, Cléo providencia ao grupo o equilíbrio para seguir em frente. A trama se desenvolve de maneira direta e poderosa, mas fica devendo mais aprofundamento do núcleo policial, já que o único ponto de vista mais humano desse grupo, o de um recruta que se choca com a truculência de um sargento, é abandonado a certo ponto da história.
Também na mostra competitiva de longas, a produção de Campina Grande Tudo o que Deus criou cumpriu a façanha de existir com pouquíssimos recursos, graças ao empenho do realizador André da Costa Pinto, que conseguiu reunir duas atrizes famosas (Letícia Spiller e Guta Stresser), em torno do arriscado projeto. Arriscado porque comete a ousadia de tratar de uma dimensão pouco exposta no interior nordestino, o da homossexualidade. No filme, um rapaz (Paulo Phillipe) faz programas noturnos como travesti, enquanto durante o dia cuida da mãe adoentada e suporta a violência cotidiana de seu padrasto. O resultado é irregular, dadas as condições com que o filme foi realizado, mas revelam o potencial do diretor em representar uma realidade cruel em termos de cinema.
Sobre o longa vencedor do Prêmio Abraccine, Amor, Plástico e Barulho: sobre o filme + Entrevista com a atriz Maeve Jinkings, eleita a melhor do último festival de Brasília
Curtas – Um dos maiores méritos do 8º Fest Aruanda foi ter passado a limpo a recente produção paraibana, que apesar de tradicionalmente ter sua filmografia vinculada à escola documental, tem sido em sua maioria marcada obras pela abordagem de ficção. Enquanto veteranos mostraram novos trabalhos, entre eles, Torquato Joel (Transmutação) e Marcus Villar (O terceiro velho), Bertrand Lira (A poeira dos pequenos segredos, sua primeira ficção), uma nova geração busca seu espaço, com os dois pés no cinema de gênero.
Destes, vale destacar O desejo do morto, de Ramón Mota, O matador de ratos, de Arthur Lins, Cova Aberta, de Ian Abé, e Catástrofe, de Gian Orsini, que utilizam referências de filmes de suspense e terror, sendo o primeiro o mais convicto, ortodoxo mesmo, pois cumpre a cartilha do slasher movie, subgênero ultra sangrento dos filmes de terror. Parte desses realizadores integram o coletivo Filmes a Granel, que tem trabalhado com formas de produção de “guerrilha” e lançou uma coletânea durante o festival (leia mais sobre o Filmes a Granel aqui ).
Há um outro viés, de obras que tratam de maneira leve e poética temas existencialistas ou retratam personagens em busca de superação. Entre eles está “Sophia”, pequena jóia dirigida por Kennel Rógis, jovem realizador da cidade de Coremas. Ao optar pela ausência de palavras, o filme remete a horizontes onde o que se vê e ouve é apenas o ponto de partida. Suas convicções estéticas e poder de síntese propõem boas soluções para representar a tentativa de uma mãe em pesquisar formas de fazer a filha deficiente auditiva experimentar a sensação sonora através de vibrações físicas. Principalmente, isso ocorre pelo uso preciso e sensível do som e imagem, ou seja, naquilo que se propõe a ser: uma eficiente narrativa cinematográfica.
O crime da mala – considerações sobre Passagem, de Taciano Valério e A navalha do avô, de Pedro Jorge
Por Marcel Vieira (PB)
Está na historiografia clássica: os filmes criminais, junto com os chamados filmes cantantes, representam a primeira leva substancial de películas brasileiras produzidas e exibidas no país durante os primeiros anos do século XX. Esses filmes encenavam crimes célebres que ocorreram de fato na sociedade brasileira, tendo sido ainda alvo de largo e continuado interesse dos jornais em representar os pormenores das investigações. Títulos como O crime da Paula Matos, O crime dos Banhados e A mala sinistra eram sucessos de exibição nas mais diversas praças brasileiras. Nosso primeiro longa-metragem, inclusive, possui a mesma fonte: Os estranguladores, de 1908, produzido e dirigido por Antônio Leal, contava a história um crime notório com grande repercussão na mídia à época.
Em 1928, antes ainda da explosão do cinema com som sincronizado, outro crime assombrou e comoveu a sociedade brasileira: um estrangeiro, o italiano Giuseppe Pistone, assassinou e esquartejou a mulher Maria Fea, cujo corpo dilacerado foi colocado dentro de uma mala, a qual Giuseppe tentou enviar de navio para a França. Após uma queda acidental, a mala se abriu e o forte cheiro do corpo em decomposição logo denunciou o absurdo. Giuseppe, suspeito imediato, foi preso, julgado e condenado. Poucos meses após a notícia do crime, estreavam nos cinemas dois filmes com o título O crime da mala, um de Francisco Madrigano e outro de Antônio Tibiriçá. O grande interesse popular na história, com certeza, explica essa coincidência.
Recordo-me de saber dessa parte da história do cinema brasileiro lendo o hoje célebre Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro, de Jean-Claude Bernardet. À época, então estudando jornalismo na UFPB, conhecia pouco a história do nosso cinema, e procurei saber quem era aquele autor estrangeiro que, num texto curto e incisivo, colocava no chão toda a metodologia utilizada até então para contar essa história. Descobri então que, além de estrangeiro, Bernardet era roteirista e professor, crítico e pesquisador, e sobretudo um atento analista do cinema e da sociedade brasileira. Na minha tese de doutorado, retomei esse texto do Bernardet em um capítulo sobre a relação entre cinema e literatura no Brasil, tentando avaliar as diferentes épocas, e suas diversas formas e motivações, em que a adaptação literária foi produzida e consumida por aqui.
Durante o VIII Fest Aruanda, Jean-Claude Bernardet foi um dos homenageados, por tudo que fez pelo cinema brasileiro. Na apresentação ao prêmio, proferida pelo grande Vladimir Carvalho, as múltiplas facetas de Bernardet foram sintetizadas em um amplo elogio. Minutos antes, a platéia fora agraciada com uma faceta que poucos conheciam e que se mostrou mais uma maneira sublime pela qual a sensibilidade de Bernardet ganhou forma: a atuação. Como ator, ele já havia aparecido em filmes dos anos setenta como Ladrões de Cinema, de Fernando Cony Campos, e Orgia ou o homem que deu cria, de João Silvério Trevisan, e mesmo em obras mais recentes como Filmefobia, de Kiko Goifman. Mas a atuação de Bernardet nos dois filmes exibidos no Festival apontam para uma corporeidade cênica que não havia aparecido antes com tamanha expressividade.
A navalha do avô, de Pedro Jorge, traz Bernardet como José, o avô convalescente cuja progressiva piora repercute na experiência do neto, instado a fazer a barba do avô após uma negativa do barbeiro de longa época. A pele do idoso está muito tênue, e o barbeiro tem receio de machucar o colega. Calcada em uma performance contida e silenciosa, baseada mais na dureza introspectiva dos senis, que no escândalo histriônico dos incautos, a atuação de Bernardet – pela qual ganhou o prêmio de melhor ator em curta-metragem – é um manancial de sutilezas. Aos poucos, em cenas esparsas com elipses muito bem construídas, o avô vai desaparecendo da vida e da família, sendo consumido pela doença que lhe deixa encastelado em uma clausura dolorosa. O idoso bem vestido, que vai à feira com o neto, comer pastel na barraca de rua, mas cuja mudez o impede de tecer com o garoto uma comunicação mais direta, é representado de modo honesto sem ser piegas, e natural sem deixar de ser cruel. A navalha do tempo, com o seu corte perene e profundo, é de fato inapelável.
Ao contrário de José, cuja existência enquanto personagem se dá nas entrelinhas do silêncio e nas feridas abertas pelas elipses, o personagem central de Passagem, curta de Taciano Valério, é um corpo firme, mas instável, no centro de um fim de relacionamento. São poucos planos, em uma fotografia em preto e branco e com uma câmera sóbria, sem floreios maneiristas, que acompanham dois personagens em um apartamento cheio de livros e quadros espalhados em prateleiras e pelo chão. Em meio a uma briga, em que pouco se discute e os corpos é que dialogam, o personagem de Bernardet se vê diante de um fim inevitável. Na sala do apartamento, em uma tomada longa e serena, cuja progressão dramática respira e sufoca ao mesmo tempo, esse personagem se vê diante de uma mala vazia. Essa mala, ao invés de ocultar um crime horrendo ou de representar um cinema de outrora, é o último lugar em que o personagem pode permanecer junto a seu amado.
Bernardet se despe, se contrai e se aperta na mala, até fechá-la consigo dentro, em posição uterina. Quando o seu parceiro entra em cena e a mala está lá, grávida de um futuro que nunca existirá, e a mão de Bernardet vaza pelo zíper e eles trocam enfim um afeto derradeiro, estamos nós diante de uma representação sublime e poética do corriqueiro fim de relacionamento que todos nós, em algum momento da vida, já enfrentamos. O crime da mala, aqui, não é o terror de um assassínio nem o desespero febril de uma comoção popular, mas a pintura estilizada de um evento cotidiano, que ganha um tom único na direção de Valério e na performance de Bernardet, cuja faceta como ator agora se destaca como mais uma forma de transmitir a sensibilidade, a crítica e a poesia desse que, segundo as palavras de Vladimir Carvalho em sua apresentação a Bernardet, é o mais brasileiro dos estrangeiros de nosso cinema.
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