Carla Maia*
Conheci Chantal Akerman em março de 2009, durante uma retrospectiva de seus filmes, no CCBB Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Fui a curadora do evento, coordenado por mim e Patrícia Mourão. Não era a primeira vez que eu programava uma mostra dedicada à cineasta: alguns anos antes, em 2006, eu organizara uma retrospectiva com dez filmes para o forumdoc.bh.2006 – Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Na época, eu dava início a uma pesquisa de mestrado dedicada ao cinema de Akerman, que concluí em 2008, com uma dissertação focada em dois de seus documentários: “Do outro lado” (De l’autre côté, 2002) e “Lá” (Là-bas, 2006).
Após anos imersa em seu cinema, eu estava muito animada e um tanto nervosa por finalmente conhecê-la pessoalmente, por ocasião da mostra do CCBB. Era como conhecer um ídolo. Logo percebi que Chantal tinha aversão a idolatrias de qualquer tipo: ela prezava, acima de tudo, as relações face-a-face, horizontais e sem hierarquias, o que, diga-se de passagem, encontra justa tradução na frontalidade assumida pela câmera em seus filmes. Em nosso primeiro encontro, ela acabava de pousar no aeroporto de Guarulhos, louca por um cigarro, visivelmente cansada pelo longo voo. Eu, na inocência dos meus vinte e tantos anos, não parava de falar do quão honrada me sentia por finalmente conhecê-la, do quanto a admirava etc. Ela não dizia palavra, sequer sorria: apenas me olhava com seus olhos claros de rapina, entre um trago e outro. Finalmente, ordenou: “pare com isso”.
Obedeci, claro. Superado o deslumbramento inicial – se é que posso dizer que algum dia o superei – passamos dez dias em companhia uma da outra, entre São Paulo e Rio. Eu e Patrícia programávamos passeios e jantares, eu a acompanhava nas entrevistas e, obviamente, em todos debates previstos na programação da mostra do CCBB. Comecei a notar que, além dos meus desabafos de fã, ela se entediava ao ouvir minhas especulações a respeito de sua obra. De fato, o discurso acadêmico, a pretensão teórica ou “científica” não pareciam lhe interessar. Foi assim que, no debate em São Paulo, uma garota na primeira fila elaborou uma pergunta longa, complexa, cheia de conceitos, apenas para ouvir de Chantal uma resposta tão seca e incisiva quanto os cortes de seus filmes: “pergunte isso ao seu professor.”
A forte impressão que ela me deixou, nas ocasiões em que falamos sobre seu trabalho, foi a de que fazer cinema, para ela, não era um exercício intelectual, racional. Era um impulso, um chamado, “a strong desire”, como ela diz em “Chantal Akerman, de cá” (Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira, 2010), filme-entrevista realizado durante sua passagem pelo Rio. Filmar era um modo de vida, uma forma de sobrevivência. Quando compartilhei com ela as minhas dúvidas de profissional iniciante – “não sei se quero fazer filmes…”, ela respondeu, no ato, com desconcertante franqueza: “então não faça, já há filmes ruins o suficiente”.
Chantal não fazia concessões. Fazia e falava o que bem quisesse, com quem quer que fosse. Tampouco se preocupava com regras de etiqueta: comportava-se da mesma maneira se almoçávamos no restaurante fino em companhia de Fernando Moreira Salles ou na lanchonete da esquina de seu hotel. A cena em que ela acende um cigarro mesmo sendo advertida de que ali era local proibido, em “Chantal Akerman, de cá”, é síntese de sua personalidade forte e de seu espírito livre. Não se conformava, tampouco parecia se importar com o que pensariam dela, o que conferia a seus gestos e falas – tanto quanto a seus filmes – uma autenticidade admirável.
Se a conversa nada rendia quando eu tentava a impressionar com digressões sobre sua obra (algumas delas disponíveis aqui), ela se engajava quando eu lhe falava de minha vida pessoal, meus amores, minhas memórias familiares. Experiências, não especulações: a vida vivida, gozada, sofrida, apenas isso, ou tudo isso, captava sua atenção e interesse.
Ela falava muito de sua mãe, já adoentada na época, a quem visitava sempre que podia, mas menos do que gostaria. É fato notório, já mencionado por ela em diversas entrevistas, que sua mãe – ou as imagens que guardava dela, memórias de sua infância – foi sua inspiração quando realizou a obra-prima Jeanne Dielman (não por acaso, foi ao lado de sua mãe que realizou sua última obra, “No home movie” [2015], pungente testamento cinematográfico). Ela contava, ainda, da vida em Paris, de seus maus pressentimentos quanto ao futuro da Europa, continente que, segundo ela, era marcado pelo peso da história, contaminado por uma atmosfera de fracasso e repressão. Tinha uma consciência política tão rigorosa quanto seu senso estético, e isso parecia lhe causar dor.
De nossos dias juntas, guardo muitas memórias, embaralhadas a imagens de alguns de seus filmes: uma mulher na cozinha a preparar o jantar; uma menina na lanchonete falsificando uma carta à escola para justificar sua ausência; uma mulher comendo açúcar e escrevendo cartas num quarto fechado; uma cineasta viajante fumando dentro de um trem; uma jovem inclinando-se sobre o fogão, abrindo o gás e acendendo a chama. Há sempre uma mulher em cena. Todas fortes, um tanto deslocadas e solitárias, quiçá desajustadas, mas de uma presença notável. Todas como ela – e sempre tão diferentes.
Entre as muitas memórias e imagens, a que insiste em retornar, agora que ela já não está mais aqui, é a de Chantal diante do mar – não em “Là-bas”, naquele plano-fulgor em que ela finalmente sai da clausura do apartamento em Tel-Aviv, mas em uma tarde na praia do Arpoador. Era nosso primeiro dia no Rio, após a temporada em São Paulo, onde ela preferia, sempre que possível, ficar no hotel. Ali, frente ao mar, ela batucou na mesa do bar quando passou um garoto tocando pandeiro. Ali, frente ao mar, ela parecia feliz.
Eu me lembro de ter falado alguma coisa sobre como achava bonita a proximidade entre a palavra “mãe” (mère) e “mar” (mer) em francês, e de como me agradava uma gramática que tomava “mar” por substantivo feminino. Ela sorriu. Caminhamos pela praia, não falamos muito. Ela andava diferente, parecia mais leve, e vez por outra abria os braços, como que para sentir melhor a brisa. Sua energia contaminava tudo ao redor: a paisagem não restava indiferente à sua presença. Isso talvez explique, penso agora em retrospecto, a beleza comovente de seus planos estáticos em filmes como “Do leste” (D’est, 1993) e “Notícias de casa” (News from Home, 1976).
No litoral, seu humor melhorou sensivelmente. Assim, no debate do Rio, ela apresentou com mais entusiasmo algumas questões caras para sua obra: sua defesa inconteste da intuição em detrimento da razão como método de trabalho; seu investimento na duração, como forma de fazer sentir o tempo (“é tudo que temos”, dizia); sua recusa em classificar sua obra como feminista, moderna, experimental ou o que quer que fosse; e seu vínculo profundo com o judaísmo, único traço identitário que ela parecia, de fato, assumir. Ela comentou, no debate, sua opção pela câmera frontal e direta, mencionando a interdição do Velho Testamento: não fazer da imagem um “bezerro de ouro”, não adorá-la, antes, fazer dela algo como a possibilidade de encontro com a alteridade, provocando no espectador uma experiência do face-a-face.
Instável, mutante, nômade, descendente de judeus que passaram pelos campos de concentração ou neles pereceram, ela parecia conhecer e cultivar intimamente a sensação de ser “outra”, de não pertencer a qualquer parte. Sua obra é uma tentativa de formalizar tal sensação. O título de seu último filme, o já citado “No home movie”, reforça essa intuição: ao regressar à casa materna, após tantas viagens e derivas, ela se afirma, finalmente, como uma cineasta sem lar, digamos, uma no home filmmaker, desterritorializada, constantemente deslocada como, de resto, seu povo de origem.
Quando ela voltou à França, prometemos manter contato. Eu lhe enviei uma carta datilografada e, de tempos em tempos, mandava e-mails com notícias. Ela respondia com mensagens carinhosas porém telegráficas, um tanto curtas demais para minhas expectativas. Mas não deixava de responder. Ainda nos encontramos, em viagens que fiz à Paris. Certa vez fui até seu apartamento, um duplex em Ménilmontant, fumamos juntas na janela, almoçamos nas vizinhanças, em um dos restaurantes que frequentava. Ela falava de seus novos projetos – uma adaptação de Joseph Conrad (que resultou em “La folie Almayer”, de 2011) e o desejo de filmar no Brasil. Por duas vezes, me procurou para falar sobre essa viagem. Na última vez que conversamos, por Skype, ela estava em Nova Iorque. Foi em 2013. Ela me ligou, animadíssima, disse que precisava de ajuda para reunir uma equipe local, pois estava decidida a fazer o filme, que me pareceu uma espécie de road movie: seu plano era alugar um carro e viajar pelo Brasil. Perguntou se eu gostaria de ir junto. Eu respondi que adoraria, mas não sei se conseguiria, pois meu filho tinha nascido – eu o apresentei a ela, então um bebê de poucos meses. “Oh beautiful beautiful!”, ela disse, e logo desligou: “I have to go, I’ll call you later”.
Nunca mais me ligou. Esse filme, como tantos outros, ficaram por fazer.
Em minha dissertação de mestrado, escrevo que o cinema de Chantal investe na relação entre o quadro e o fluxo, a ordem e a desordem, como sugere Youssef Ishaghpour, no excelente texto traduzido para o dossiê dedicado à cineasta pela Revista Devires. Concluo dizendo que seu cinema permite “a passagem do que é limitado, corporal, fechado (o sistema centrado, em que todas as imagens variam para um corpo) ao que é aberto, temporal, variável (o sistema acentrado, ‘o sem-fundo do movimento das almas’, onde tudo move e muda)”¹. Hoje, enquanto tenciono prestar alguma homenagem póstuma sem recair na tentação de idolatrá-la, para não trair sua memória, enquanto tento elaborar meu luto, encontro algum consolo na ideia de que ela, ao escolher a hora da morte, criou um desfecho coerente com sua trajetória. Se fazer cinema e viver eram para ela gestos indissociáveis, em seu ato derradeiro – estranhamente anunciado em seu primeiro curta-metragem, o explosivo e vibrante “Saute ma ville” (1968) – ela se deixou precipitar na passagem, definitivamente.
¹ MAIA, Carla. “Lá, do outro lado: subjetivação em dois filmes de Chantal Akerman”. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2008, p. 135.
* Carla Maia é ensaísta, pesquisadora, curadora, programadora, produtora e professora. Doutora em Comunicação Social pela FAFICH/UFMG, sua tese investiga o cinema realizado por e com mulheres. Integra o corpo docente do Instituto de Comunicação e Artes e do curso de pós-graduação em Produção Audiovisual – Documentário, ambos do Centro Universitário UNA. Faz parte do coletivo Filmes de Quintal, que realiza o forumdoc.bh: Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte.