João Nunes*
Um filme difícil, mas que impressiona pela radicalidade: em preto-e-branco (homenagem ao neorrealismo, segundo o diretor), cinematograficamente sustentado apenas por poucos planos-sequências (quatro ou cinco), exposto a partir de linguagem teatral e tendo como sustentação dramatúrgica um complexo (e belíssimo), texto igualmente teatral. Com toda sua complexidade narrativa, “Guerra do Paraguay”, do veterano Luiz Rosemberg Filho, mereceu o Prêmio da Crítica conferido pelo júri Abraccine no 20º Cine PE.
A primeira impressão é de um filme deslocado de seu lugar e tempo. Seja pela ausência da cor, pelo tema ou pela linguagem. O texto consistente poderia ser encenado por dois atores no palco de um teatro. No filme, trata-se de espaço neutro, campo aberto e vazio do que seria o território nacional do fim do século 19. E, antes de tudo, ao lado das muitas evocações do diretor (Bergman, Kubrick, Godard e Béla Tarr, entre outros), a encenação remete também a “Anahy de las Misiones” (Sergio Silva, 1997) e sua brechtiana e insistente carroça de Mãe Coragem. Em quase tudo similar à atriz mambembe (a ótima Patrícia Niedermeier) que digladia por meio das palavras com um soldado (Alexandre Dacosta) recém-saído da guerra e embriagado pelos louros da vitória.
Bertold Brecht não aparece aqui apenas como citação aleatória. Ele é parte integrante da encenação e do próprio conceito do filme. Alguém poderia contestar (com razão) que há excesso de texto em um veículo, o cinema, cuja característica primordial se baseia na imagem. A palavra caberia ao teatro. E, ademais, temos apenas dois atores quase o tempo todo em cena, pois a filha da atriz (Ana Abbott) está a maior parte do filme na periferia ou fora do quadro. Mais: pode parecer contraditório afirmar que Rosemberg uniu teatro e cinema e seria equivocado chamar o filme de “teatro filmado” (com todo o preconceito que a expressão carrega).
Ocorre que a mistura de duas linguagens aparentemente díspares se dá harmonicamente porque a imagem teatral a que assistimos se materializa como linguagem cinematográfica. E nisto reside outra ousadia do cineasta. Basta nos concentrarmos na maestria da construção dos planos-sequência – o primeiro deles, que acompanha o surgimento da atriz puxando a carroça ao lado da filha, é cinema puro e de uma beleza de doer os olhos.
Contudo, não se pode esquecer um conceito elementar que contrapõe a linguagem do cinema e a do teatro. No primeiro, a câmera e o corte estabelecem as pretensões do diretor; no teatro, esse papel cabe ao espectador – mesmo levando em conta que a luz serve como espécie de edição. E a câmera de Rosemberg consegue evidenciar outras imagens belas, como quando a atriz interpreta grandes nomes do teatro, como Molière ou Shakespeare. O texto é teatral, mas a imagem se revela cinematográfica.
O roteiro do diretor traz referências teatrais (os citados Molière, Shakespeare) e filosóficas (Rousseau, Nietzsche), mas nos interessa a conexão (e não a contraposição) que o texto faz entre Brecht e o cinema. O dramaturgo alemão é um autor cerebral cujo discurso se ampara na lógica e pede distanciamento da catarse aristotélica. Brecht é o autor regido pelo convencimento via palavra, pelo argumento, pela razão. E discurso de Rosemberg traz idêntica postura, ele quer que o espectador entenda cognitivamente os malefícios da guerra e a inutilidade dela. Neste sentido, o filme se coloca no papel de libelo contra a guerra e, no subtexto, chega mesmo a tangenciar o maniqueísmo: a arte (o lado bom e positivo) contra a guerra (o mal absoluto).
No entanto, Rosemberg aplica um golpe benvindo no espectador ao abandonar a retórica racional brechtiana e apostar tudo na catarse aristotélica para terminar o filme em grande estilo. Ele escancara a emoção escondida até naquele momento e mostra uma guerra de verdade. Não mais o argumento, mas os fatos crus de pessoas abatidas feito insetos e tidas como desimportantes. A sequência se acompanha da música eloquente de “Assim falou Zaratustra”, de Richard Strauss – recurso que Brecht desaprovaria, pois a música deste é, igual ao próprio discurso, racional, irônica, brincalhona, mesmo nos momentos mais dramáticos.
E eis de novo Rosemberg exercitando a arte do cinema: imagens sem palavras que valem por mais que milhões de palavras, imagens que emocionam e desmontam nossa razão.
* João Nunes é crítico do Correio Popular de Campinas; assina o blog Sessão de Cinema
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