GUIDO ARAUJO, UMA LONGA JORNADA

Um depoimento pessoal
Maria do Rosário Caetano

NA JORNADA DA BAHIA 2006 – Sentados: o embaixador e escritor Alberto da Costa e Silva, Nelson Pereira dos Santos, Rô Caetano, Dona Lúcia Rocha, Myrian, diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho. De pé: Silvio Tendler, Aurélio Michiles, Marise Berta, José Umbelino, Guido Araújo e Noiton Nunes.

NA JORNADA DA BAHIA 2006 – Sentados: o embaixador e escritor Alberto da Costa e Silva, Nelson Pereira dos Santos, Rô Caetano, Dona Lúcia Rocha, Myrian, diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho. De pé: Silvio Tendler, Aurélio Michiles, Marise Berta, José Umbelino, Guido Araújo e Noiton Nunes.

Em dia recente, quando o mês de setembro se aproximava do fim, a professora Bohumila Araújo, a Mila, companheira tchecoeslovaca de Guido Araújo, me deu uma triste notícia: o criador da Jornada Internacional de Cinema da Bahia estava vivendo seus momentos derradeiros.

Jorge Alfredo Guimarães, autor de série “O Senhor das Jornadas”, narrativa em cinco episódios da trajetória do baiano do interior radicado na capital do estado, também me prevenira. Mas saber que Guido Araújo, além de amigo, cineasta e militante de causas humanistas, partira foi muito doloroso.

Nossa amizade começou no finalzinho dos anos 1970 e durou por quase cinco décadas. Eu era uma espécie de “satélite” do “politburo” jornadiano, composto por ele, Thomaz Farkas, Cosme Alves Netto, José Tavares de Barros e, como fontes aglutinadoras-inspiradoras, os saudosos Paulo Emilio Salles Gomes e Alex Vianny. Nélson Pereira dos Santos, com quem Guido trabalhou no Coletivo Moacyr Fenelon, durante a produção de “Rio 40 Graus” (1955) e “Rio Zona Norte” (1957), era o cineasta a quem Guido mais amava. Seu projeto acalentado por anos era escrever um livro sobre a produção coletiva e os desdobramentos da fúria censória que se abatera sobre “Rio 40 Graus”. E que gerara uma das mais solidárias campanhas anti-censura já registradas em nossa história cinematográfica. Creio que ele deixou farto material sobre o assunto em seu apartamento na Rua Macapá soteropolitana. Quem sabe até um livro estruturado, mas dependendo de acabamento.

Quantas vezes vimos juntos foto histórica das filmagens de “Rio Zona Norte” na qual uma moça servia café ao protagonista, Grande Otelo (Espírito da Luz), tendo um sorridente Guido Araújo, cercado de integrantes do Coletivo Fenelon, estendendo a xícara para também ganhar sua dose. Ele amava esta fotografia, que está na série “O Senhor das Jornadas” e também no catálogo da Mostra Guido Araújo, organizada por Jorge Alfredo e acompanhada por DVD (com sete de seus principais curtas-metragens).

Tive a alegria de estar, ano passado, em Salvador, nas gravações da série “O Senhor das Jornadas”, dirigida pelo amoroso compositor, cineasta e autor do delicioso “Samba Riachão”, produzida por Sylvia Abreu, da Truq, e exibida pela TV Educativa da Bahia. Guido, já doente, encontrou energia e alegria para dividir com os amigos uma verdadeira maratona de depoimentos, primeiro na casa bucólica dos Liberato, os cineastas Alba & Chico, depois no buliçoso Pelourinho, na Cantina da Lua, de Clarindo Silva. Guido fazia questão de ter, além de testemunho de Nélson Pereira dos Santos e de muitos cineastas baianos (Edgard Navarro, Fernando Bélens, Pola Ribeiro, José Araripe, entre outros), depoimentos dos documentaristas Sílvio Tendler e Otávio Bezerra, do ator Emmanoel Cavalcanti, o Cavaca, e o meu. Ainda bem que Jorge Alfredo conseguiu concluir seu trabalho em tempo para que Guido Araújo o assistisse na emissora educativa baiana.

img_924840 Jornadas – Estreei na Jornada da Bahia no comecinho dos anos 1980, já em função nobre: no júri, tendo como companheiros de trabalho, entre outros, o cineasta argentino Fernando Birri, a diretora Leilany Fernandes, o pesquisador e cineasta Inimá Simões, autor de livro e filme sobre “O Imaginário da Boca”, e uma professora de cinema venezuelana, da qual não recordo o nome. Só me lembro que nós, mulheres, éramos maioria no júri, que “Hermeto Campeão”, de Thomaz Farkas, foi o filme vencedor, e que Leilane e eu defendemos um prêmio especial para a obra documental de Rogério Sganzarla, ideia aceita depois de breve argumentação.

Dali em diante, cobri, como jornalista, dezenas de edições do festival baiano, dedicado ao cinema documentário e ao curta-metragem. E que mantinha importante relação com o curso de Comunicação da UFBa (Universidade Federal da Bahia), instituição que tinha Guido em seu quadro de professores.

Duas das edições da Jornada a que assisti aconteceriam fora de Salvador: ambas em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Nos anos pioneiros – a década de 1970 – a Jornada fôra abrigada por autoridades culturais e cineastas paraibanos em João Pessoa (exatamente no ano de 1979), pois Guido não conseguira recursos para viabilizá-la em sua cidade de origem.

Antes de prosseguir com este testemunho pessoal, transcrevo, do “facebook”, substantivo depoimento do cineasta paraibano Torquato Joel, diretor de “Transubstancial”, entre outros filmes:

Ao mentor da Jornada Internacional de Cinema da Bahia, Guido Araújo, devo gratidão. Foi na Jornada que vi muitos e muitos filmes curtas do leste europeu, num tempo em que aquele evento era o único sopro e janela para o cinema dos ideais anti-imperialistas americanos. Foi na Jornada que vi o cinema africano e a transgressão de Edgard Navarro. Ali, conheci e convivi com Cosme Alves Netto e outras tantas e tantas figuras emblemáticas do cinema brasileiro como Nélson Pereira dos Santos e Ruy Guerra. Por fim, sem a Jornada de Guido, provavelmente não seria possível a retomada do cinema na Paraíba, tendo em vista, com a realização de uma de suas edições em João Pessoa, os ânimos do cinema daqui reacenderam mais uma vez”.

O depoimento de Torquato toca em quatro pontos essenciais na história de Guido e da Jornada: 1. ele era um homem de esquerda, que vivera por quase oito anos na Tchecoeslováquia (e atuara como espécie de “embaixador” do cinema brasileiro, inclusive no Festival de Karlov Vary). Integrava, portanto, o “exército de Brancaleone” dos que lutavam contra a hegemonia planetária do cinema norte-americano, 2. tornou-se o grande difusor (apoiado por Cosme Alves Netto) do cinema de outras geografias (África, Leste Europeu e América Latina, em especial) na Jornada baiana, sempre feitas com recursos minguados, 3. estimulou jovens paraibanos a mergulhar no ofício do cinema, quando sediou em Jampa (simpático nome de João Pessoa) sua paradoxal Jornada de Cinema da Bahia, 4. difundiu, com paixão homérica, o cinema de Joris Ivens, o holandês voador; de Jean Rouch, o mestre francês; de Arne Sucksdorff, sueco premiado com o Oscar e grande amigo do Brasil; de Santiago Alvarez, o médico-cineasta cubano que gritou “Now!”; da dupla Paul Leduc e Ofélia Medina (diretor e protagonista de “Frida, Natureza Viva”), de Vittorio De Seta, grande documentarista e autor de uma das obras-primas do cinema peninsular (“Bandidos de Orgosolo”, 1961); de Norman McLaren, o canadense, que propagou a animação anti-disneyana; de Francesco Rosi, cujo cinema dialogava com o documentário; de Les Blank, realizador independente norte-americano, autor de “Burden of Dreams”, poderoso documentário sobre “FitzCarraldo”, delirante filme de Werner Herzog, e a dupla germânica Heynowski & Scheumann.

Sobre Walter Heynowski & Gerhard Scheumann, do Estúdio H&S, vale um relato pessoal. Eles eram alemães da RDA (República Democrática Alemã). Ou seja, da Alemanha Oriental, a socialista. Quando desembarquei em Cachoeira, numa das Jornadas, Guido me avisou: “preste atenção nos filmes da retrospectiva Heynowski & Scheumann. São dois diretores que usam os princípios de Brecht em seus trabalhos”. E disse mais…

Com sua calma baiana, recheada de “heim, heim!!”, Guido incendiou meu imaginário: “Eles foram os únicos cineastas do mundo a filmar os bombardeios do Palácio de la Moneda, em 11 de setembro de 1973, no dia do golpe militar que depôs o presidente Salvador Allende. E eles conseguiram tal façanha, porque os golpistas pensaram que eles fossem da Alemanha Ocidental”.

Eu não conheci a Jornada da Bahia dos anos 1970, mas sabia que ela fôra sacudida, em seus anos nascedouros, pela notícia do golpe militar (e pela trágica morte de Allende). Que lá, em Salvador (no belo espaço-sede do Instituto Goethe), intelectuais e artistas como Paulo Emilio e os outros integrantes do “politburo jornadiano” haviam protestado e chorado contra a barbárie pinochetzista.

Ver as imagens (que eu desconhecia) do La Moneda em chamas tornara-se meu maior objetivo (os filmes de Patricio Guzmán só chegariam ao Brasil anos depois). Houve um contratempo na jornada cachoeirana: as sessões da mostra germânica aconteceriam no único cinema da cidade, às 22h00. Bem, 22h00 no papel. Pois a Jornada tinha nos curtas-metragens sua matéria-prima. Os atrasos eram normais. E na hora de apresentar seus curtas (diversos, em cada programa), cada cineasta falava mais que o outro (a fala de alguns durava mais que seus curtos filmes). Nunca houve uma sessão de Heynowski & Scheumann que começasse antes de 23h00. Tinha dia que começava perto da meia-noite.

Felizmente Cachoeira, pequenina (hoje tem 35 mil habitantes e sede da UFRB – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), dormia tranquila às margens do Rio Paraguaçu, com a cidade de São Félix (onde Geraldo Sarno filmara parte de “Delmiro Gouveia”) igualmente tranquila, na outra margem. Ficávamos poucos – raros cinéfilos – aguardando os filmes alemães. Mas saíamos revigorados pela potência do sintético e brechtiano cinema dos dois germânicos. Minha gratidão a Guido (e a Cosme) por ter sido apresentada aos filmes destes dois realizadores será eterna.

Teria muitas estórias para contar das 30 Jornadas a que compareci (Guido conseguiu produzir 40 edições, sempre de pires na mão). Mas vou me resumir a duas. Esta estória, eu presenciei e ela constitui uma das mais emocionantes sessões a que assisti na vida: a de “O Mágico e o Delegado”, longa ficcional de Fernando Coni Campos. O cineasta, conterrâneo de Guido, mergulhou seus olhos azuis em lágrimas torrenciais. A população de Cachoeira delirara com o filme que tinha cenas rodadas no velho (e belo) cinema comunitário e, entre seus atores não-profissionais, estavam muitos cachoeirenses.

A outra estória, não presenciei, mas evoco retalhos de memória, registros de relatos a mim feitos por Guido Araújo e pelo próprio protagonista do ato, um homem nu chamado Edgard Navarro.

Corria o ano de 1978. Setembro. A Jornada, criada como evento de alcance nordestino, em 1971, sempre acontecia neste mês, preferencialmente na Semana da Pátria.

Um jovem superoitista, chamado Edgard Navarro, autor de um filme chamado “O Rei do Cagaço” (sim, sem o “n”) resolvera quebrar a sisudez dos debates do mais engajado festival do país. Avisou que ia tirar a roupa e que ia usar o fio do microfone dos oradores para enrolar a todos e motivá-los a deixar o recinto. Tirou mesmo a roupa e deixou a maioria dos presentes atônita. Mas, no dia seguinte, já tomado por sua alma generosa, desculpou-se e contou parte de sua história de vida. Perdera a mãe ainda menino, o pai autoritário, exigia que ele se formasse em um curso sério (fez Engenharia e jogou o diploma no colo paterno), leu Freud para tentar se entender a vida inteira (quem viu sua estreia no longa ficcional, “Eu Me Lembro”, conhece parte da história de Navarro). Ele e Guido Araújo foram amigos pela vida inteira.

Nas gravações da série “O Senhor das Jornadas” na casa dos Liberato, Navarro era um dos mais inquietos e amorosos registradores de depoimentos sobre o amigo Guido, nascido em Castro Alves. Relembrou, para a câmera, entre outros fatos, o atrevido happening do homem nu. (São Paulo, 09-10-2017)

guido-3

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s