Adalberto Meireles

Guido Araújo (no centro) com Nelson Pereira dos Santos e equipe de filmagem. Foto: Divulgação
Os contratempos abundam em qualquer festival, mas as Jornadas Internacionais de Cinema da Bahia eram hors concours em número de incidentes inusitados.
Basta lembrar do encerramento de uma das edições: Via Negromonte e Nelson Xavier como mestres de cerimônias de uma concorrida noite de premiação na Reitoria da Ufba lotada e, pasmem, não havia troféus para entregar a alguns ganhadores. O jeito foi assumir, descontraidamente, a ausência física das honrarias. Corte!
Porque Guido, com os curtas e médias-metragens que dirigiu, os filmes dos quais participou, sua presença incansável como homem de cinema e verdadeiro embaixador do cinema brasileiro na Europa e as Jornadas que idealizou, organizou e levou adiante como uma leoa cuida dos filhos, estava muito acima de qualquer empecilho.
A perda de Guido Araújo, aos 83 anos, no dia 27 de setembro, reacende a necessidade de uma reflexão sobre o que se faz pela memória do cinema. Agitador cultural, cineasta, ex-professor da Ufba, mestre de cinema, formador de uma geração de cinéfilos e cineastas, o diretor da trilogia do Recôncavo, ou trilogia dos saveiros, enfrentou o período mais sombrio da ditadura civil-militar, mas não arredou pé de sua Jornada.
Parte da trajetória deste homem como diretor de cinema está preservada e pode ser vista no DVD Mostra Guido Araújo, lançado em 2014, juntamente com um catálogo, por ocasião das comemorações dos seus 80 anos.
Ali constam Maragogipinho (1969), Feira da Banana (1972/73), A Morte das Velas do Recôncavo (1976), que formam a citada trilogia; Por Exemplo: Caxundé (uma criação coletiva de então jovens cineastas coordenados por Guido, em 1976), Festa de São João no Interior da Bahia (1977), Raso da Catarina: Reserva Ecológica (1984) e Lambada em Porto Seguro (1990).
Isso se deve à persistência do cineasta e compositor Jorge Alfredo Guimarães (Samba, Riachão, 2001), curador do projeto, em coprodução da Truq, Orija e Dimas (Diretoria de Audiovisual/Funceb), que foi apresentado em alguns festivais de cinema.
Alfredo é ainda autor da série de televisão composta de cinco episódios, O Senhor das Jornadas, fruto de um edital em cooperação da Ancine com o Irdeb, exibida pela TV-E Bahia, além de criador da revista eletrônica Caderno de Cinema – também lançada em duas edições impressas por meio de edital da Fundação Gregório de Mattos -, em que Guido aparece com notável destaque.
Mas o nome de Guido Araújo, que também criou o Grupo Experimental de Cinema – GEC/Curso Livre de Cinema no final dos anos 1960, depois de voltar da antiga Tchecoslovaquia, em 1967, e dirigiu os médias-metragens Exilados em Sua Própria Terra (1981) e Ilhas de Esperança (1984), não consta nem mesmo como uma nota ou comentário da Wikipédia. Isso é sintomático.
Mesmo com a iniciativa de Jorge Alfredo, estamos diante de um processo de esquecimento (o que não é prerrogativa apenas de Guido) de um homem que, a despeito de todos os problemas que marcaram as Jornadas, dedicou a vida à memória do cinema e da cultura baiana, por meio de seus filmes extremamente simples e, por isso mesmo, de rara beleza.
A Jornada, inicialmente baiana de curtas-metragens, que passou a ser nordestina, brasileira e depois internacional, mantinha-se ao largo das produções consagradas comercialmente, sempre em busca de um cinema independente, autoral, como um farol a apontar nomes e cinematografias desconhecidas, notadamente latino-americanas.
Guido trouxe a Salvador anualmente, até 2012, quando pôs um ponto final no festival em vias de completar 40 anos, nomes de relevância nacional e internacional, como Paulo Emílio Sales Gomes, Rudá de Andrade, Thomaz Farkas, Paul Leduc, Miguel Littin e Joris Ivens. Poucos festivais brasileiros conseguiram reunir um elenco tão notável em torno de um lema: “Por um mundo mais humano”.
A jornalista e crítica de cinema Maria do Rosario Caetano sempre diz – e pontua isso em O Senhor das Jornadas –, que era uma “espécie de ‘satélite’ do ‘politburo’ jornadiano, composto por Guido, Thomaz Farkas, Cosme Alves Netto, José Tavares de Barros e, como fontes aglutinadoras-inspiradoras, Paulo Emlio Sales Gomes e Alex Vianny”.
Os cineastas Silvio Tendler e Orlando Senna lamentam, na série, que a jornada tenha desaparecido exatamente em um dos primeiros senão o primeiro governo progressista da Bahia. Senna constata que o fim se dá na era digital, quando os suportes não têm mais tanta importância. E diz que seria bom que o evento voltasse a acontecer todos os anos.
Mas o fato é que a Jornada vinha perdendo o fôlego com o passar dos tempos. E isso é assunto para muita discussão.
A série de Jorge Alfredo reúne ainda depoimentos de nomes como Nelson Pereira dos Santos (com quem Guido fez Rio, 40 Graus, em 1955, e Rio, Zona Norte, em 1957, integrando o Coletivo Moacyr Fenelon), Octávo Bezerra, Edgard Navarro, Fernando Belens, Pola Ribeiro, Roque Araújo, Alba e Chico Liberato, Roberto Duarte e muitos outros.
Nelson, que completa 89 anos neste mês de outubro, considera a Jornada o mais importante festival do Brasil. Roque – outro incansável, responsável pelo Museu do Cinema, instalado na cidade de Cachoeira – que este ano fez 80 anos de idade, diz que Guido foi um provocador da política e da cultura. “Poucos [festivais] tiveram as características da Jornada. Guido procurava um que refletisse as questões de uma repressão político-militar”, afirma Bezerra.
O Senhor das Jornadas é um tributo à trajetória do mestre. E, como tributo, há o carinho, o afeto ao homenageado, sim. Sobressai, ali, o sentimento de melancolia pelos tempos idos. Algo como o lamento que em síntese pontua a trilogia de Guido Araújo, inserida na trilha da caravana Farkas, que mergulhou na vida e no cotidiano das populações do Recôncavo para revelar o fim de uma era marcada pela beleza das velas dos saveiros cheios de mercadoria atravessando a Baía de Todos-os-Santos.