Daniel Medeiros*
Ao longo da 41ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o Júri da ABRACCINE avaliou um total de 11 filmes brasileiros realizados por diretores estreantes. O relato que se segue é uma avaliação pessoal sobre cada um desses filmes, começando por um que me agradou muito: “O Beijo no Asfalto”, nova adaptação da peça de Nelson Rodrigues, desta vez dirigida pelo ator Murilo Benício. Escrita em 1960, a peça mostra como a vida de um homem é arruinada, uma vez que um simples ato de bondade dá início a uma verdadeira perseguição por parte da polícia, da imprensa e do seu próprio sogro, ao mesmo tempo em que causa problemas no seu casamento. Encantei-me com a opção de Benício de usar a metalinguagem para, supostamente, apresentar o processo dos próprios atores ao se prepararem para realizar o longa-metragem. Não é uma abordagem necessariamente original, mas funciona muito bem dentro da proposta do diretor, ainda mais quando apoiada por um elenco talentoso e uma belíssima fotografia em preto e branco.
“Organismo”, dirigido por Jeorge Pereira, conta a história de um homem tetraplégico que passa seus dias rememorando a sua vida. Aparentemente desconexa, a narrativa mostra o protagonista recebendo tratamento do seu fisioterapeuta, seguida por cenas dele ainda bebê, dando os seus primeiros passos, e momentos da sua juventude, quando se aventurava tentando roubar frutas do vizinho. São momentos supostamente aleatórios da sua vida, combinados com questionamentos religiosos e filosóficos que surgem ao longo do seu fluxo de memória. Pela narração em off, o protagonista explica que sempre viu o mundo por meio de frestas, seja frestas de portas entreabertas ou pela sacada do colégio, onde espiava as meninas tomando banho. Frestas não formam imagens completas, apenas fragmentos. E o que acompanhamos ao longo do filme são fragmentos da memória. Admirei bastante o trabalho de Jeorge Pereira. Cadeirante desde a infância, o cineasta usa “Organismo” para contar uma história muito pessoal. Além de tratar do tema que já lhe é comum, em muitos momentos o diretor opta por filmar os eventos em contra-plongée, ou seja, apresentando uma visão de baixo para cima. São detalhes como estes que dão mais força ao seu trabalho.
“Antônio Um Dois Três”, de Leonardo Mouramateus, conta a história de Antônio, um jovem português que foge de casa e tenta passar a noite no apartamento da ex-namorada. Lá, ele conhece uma garota brasileira. Essa porém é apenas a primeira história do filme, cuja narrativa é composta por três tramas separadas, nas quais os atores interpretam personagens distintos. Trata-se de um exercício narrativo muito interessante, e o filme tem os seus momentos divertidos, ainda que não passe disso. Outro que também é um exercício, desta vez de gênero, é “Todas as Razões para Esquecer”, de Pedro Coutinho. Na trama, após terminar sua relação de longa data, Antônio (sim, de novo) pensa que logo vai esquecer a sua ex-namorada, mas nada é tão simples quanto parece. O filme é uma comédia romântica nos moldes estadunidenses, que lembra muito obras bem-sucedidas como “500 Dias com Ela”. É leve, bem dirigido e bastante divertido. Passando da comédia para o thriller policial, “Foro Íntimo”, dirigido por Ricardo Mehedff, acompanha 24 horas na vida de um juiz em constante vigilância, por ser perseguido pelos criminosos que ele tenta condenar. O formato de tela quadrado reflete o sentimento de claustrofobia do seu protagonista, mas a narrativa é arrastada demais, o que prejudica o resultado.
Foram quatro documentários que vi dentro desse recorte. O primeiro deles foi “Meu Tio e o Joelho de Porco”, de Rafael Terpins, que mostra o diretor à bordo de um Landau azul, cruzando São Paulo enquanto colhe entrevistas sobre o seu tio Tico, da banda Joelho de Porco. Trata-se de um filme que dialoga bastante com a cultura da cidade de São Paulo e, talvez por isso, eu que vim de fora não me empolguei tanto com o trabalho de Terpins. Além do mais, o diretor pareceu não querer mergulhar fundo na personalidade do seu protagonista, optando, em vez disso, por uma abordagem mais leve e divertida. “Aurora 1964”, de Diego Di Niglio, fala sobre o golpe de 1964, focando a sua narrativa em Recife. O filme apresenta uma extensa pesquisa sobre o tema, mas não consegue criar uma narrativa coesa, fazendo relações com o cenário atual que ora funcionam, e ora destoam. Similar em sua temática, e no resultado, “Em Nome da América” fala sobre jovens norte-americanos vieram para o Nordeste brasileiro para participar do programa de voluntariado Peace Corps durante a década de 1960. O diretor Fernando Weller tenta investigar qual era o real interesse dos Estados Unidos em enviar essas pessoas para cá, mas acaba focando demasiada atenção em um fato de pouca importância (se tal pessoa era, ou não era, um espião). Por fim, “Inaudito”, de Gregorio Gananian, é um documentário sobre o guitarrista Lanny Gordin, um dos personagens fundamentais na transformação da música brasileira a partir da década de 1960. Porém, o diretor não demonstra interesse em explorar a carreira prévia do músico. Em vez disso, ele tenta mostrar o seu processo atual de composição musical. O resultado é uma narrativa sem coesão, na qual o protagonista passa a maior parte do tempo filosofando e fazendo experimentos musicais de qualidade duvidosa. E por mais que eu perceba que essa era mesmo a proposta do diretor, ainda assim não consegui apreciar a sua obra.
E para finalizar, gostaria de falar dos meus dois filmes preferidos desta lista. O primeiro deles é “Pela Janela”, dirigido por Caroline Leone. O filme conta a história de Rosália, uma operária de 65 anos que dedicou a vida ao trabalho em um fábrica de reatores da periferia de São Paulo. Após ser demitida, ela embarca com o irmão José numa viagem de carro rumo a Buenos Aires. Assim como todo bom road movie, o longa mostra a viagem como um momento mudança, de transformação, de deixar uma vida para trás e perseguir novos caminhos. Isso é explicitado numa belíssima cena na qual a protagonista é vista nas Cataratas do Iguaçu (na qual o simbolismo da água também é usado para explicitar essa transformação). Caroline conduz a sua narrativa de maneira modesta e sensível, explorando bem a relação entre os dois personagens principais. Num outro extremo, “Yonlu” é filme bem mais exagerado e estiloso, que mistura animação, metalinguagem, trilha sonora diegética e efeitos visuais para entrar no universo habitado pelo seu protagonista. Dirigido por Hique Montanari, o filme narra a história real de um dos primeiros casos de suicídio assistido pela internet no Brasil. Porém, o foco da narrativa não é o suicídio, mas sim a maneira como aquele jovem lidava com a depressão e como usava a música para se expressar. “Yonlu” é uma obra que se arrisca, que não tem medo de ousar e que dialoga muito bem com a geração na mesma faixa etária do seu protagonista.
*Daniel Medeiros foi membro do Júri Abraccine na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.