Rosane Pavam*
Dizer sem sombras. Dizer, simplesmente, a partir da realidade que percebemos e nos percebe. Nossos primeiros diretores de longas-metragens almejam ao eterno a partir do instante. Seus onze filmes, exibidos durante a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, são ensaios de micro-história sobre a herança emotiva de um país.
Ao assistir a estes filmes, entendemos melhor um contestado aspecto do pensamento de Sergio Buarque de Holanda. É quase como se o Brasil apenas nos tivesse legado a emoção, a cordialidade, o coração com que lutar. Nossas instituições não se fortaleceram a ponto de mediar a existência comum com racionalidade. Não existe justiça brasileira. Igualdade, civilidade? Apenas a paixão, que fere e consola, pode fazer cessar momentaneamente as dessemelhanças sociais.
Yonlu, de Hique Montanari, é a mais notável expressão desse entendimento da cordialidade. Trata-se da história de um garoto de 16 anos a quem as portas se fecham mais e mais. E não somente se fecham, como exercem a pressão sobre o peito do artista, o grande emotivo. Seus caminhos se estreitaram antes mesmo que ele tivesse aportado entre nós. Diante deste paredão da história, nada há a fazer exceto sucumbir.
Tão pungente é a narrativa, baseada em um acontecimento real, quanto segura a condução do cineasta em relação ao que quer dizer. O suicídio é a reversa resposta a quem antecipadamente nos condenou à morte. Yonlu tem o amparo familiar, mas as feras do aniquilamento não apenas o espreitam como organizam seu fim em um reino invisível, que o filme dramatiza. Tudo muito didático, como a Psicose de Hitchcock: um psicanalista dirá em bom tom o que tramam nos subterrâneos os tribunais da internet contra as consciências sensíveis.
Yonlu é uma alegoria de nosso fracasso, de nossa impossibilidade existencial como país, antes mesmo de seu início democrático, que esperávamos justo e fortalecido. Um filme profundamente pessimista, à moda da história contemporânea golpeada. Uma alegoria da melancolia, esmerada com animação. Somos trópicos, somos tristes, mas uma ponta de beleza expressiva ainda há de ser distribuída antes que tudo acabe.
Pela Janela, de Caroline Leone, prefere encenar com sutileza a dor dos deslocados. Sutileza às vezes excessiva, provada pela afasia da protagonista diante de um mundo que ela tece pelo trabalho submisso, mas que não abarca intimamente. A mulher madura de Leone jamais explode, ela não dispara a ação à moda neorrealista, ela não tem história. O filme é um compêndio de seus gestos, das palavras em português e espanhol que ela e os outros jogam ao vento, por meio do exercício de uma teatralidade monumental. As águas de Iguaçu sinalizam sua agitação inconsciente e ela carrega, pela viagem, uma panela de pressão, esta que presenteará a outra mulher mais jovem.
No espelho das intimidades, três filmes sinalizam a perda de referência masculina para um mundo que se agita em transcendência de gêneros e poderes. Organismo, de Jeorge Pereira, desenha o percurso do imobilismo. O protagonista, que se habituara a acompanhar o mundo pelas frestas da infância, agora precisará encará-lo à altura do umbigo dos outros. Paralisado por uma queda, ele não resolve seus problemas de aceitação pessoal, antes os amplia após o acidente, e seu machismo dói mais profundamente que as terapias físicas.
Em direção oposta, o machismo transformará em figuras cômicas dois personagens intitulados Antonios, o protagonista de António 1 2 3, de Leonardo Mouramateus, e de Todas as Razões para Esquecer, de Pedro Coutinho. Mauro Soares, protagonista do primeiro filme, é um ator de grande versatilidade, orientado pela melancolia do clown. Um homem de seu tempo. A história, que se passa em Portugal, vê-se reencenada a partir de três pontos de vista, pelos quais se desenha a ansiedade de representação artística de um grupo de amigos, parte dele expatriada. António hesita pelo mundo adulto, ele o retarda com algum riso, de maneira semelhante à do Antonio de Todas as Razões. Johnny Massaro tem o tônus para a comédia. Novamente, trata-se de uma encenação sobre a adolescência tardia, a doce irresponsabilidade e o despreparo dos muito pequenos para o mundo dos grandes.
Um cinema sobre o dilema de homens, rígidos masculinos sobre cujos ombros pesam as decisões do mundo, não pode evitar, em tempos críticos para este protagonismo, que sua dramatização adentre o terreno do paradoxo sensível, do grotesco. Foro Íntimo, de Ricardo Mehedff, narra as peripécias de um juiz estranhamente pressionado a vazar suas informações, sobre as quais, no entanto, o filme não se alonga. A quiçá indesejada comicidade toma esse filme movimentado pela intenção do suspense e por palavras pouquíssimas. O Beijo no Asfalto, de Murilo Benicio, a partir de Nelson Rodrigues, por seu lado, tem o prazer de expandir a oralidade em um tom farsesco de novela televisiva. O filme transita entre uma leitura dramática e eventuais situações teatrais. Resulta em um híbrido entre o documental e a investigação de masculinidade promovida no século anterior.
Os quatro documentários restantes incorporam as lições ficcionais, concentrados em revelar, mais que situações, personagens a muitos quilômetros da história oficial. Os caminhos da cordialidade, com violência e afeição, são extensos. Meu Tio e o Joelho de Porco é a homenagem de Rafael Terpins a Tico Terpins, líder do grupo de rock, entremeada de depoimentos de tipos paulistanos do período a determinar suas anedotas e contradições. Inaudito, de Gregorio Gananian, acompanha o guitarrista Lanny Gordin de modo a materializar o que ele intitula “novo estilo” musical. O empenho em equilibrar a linguagem expositiva do filme com aquela sugerida pelo pensamento de seu protagonista se faz com difícil e notável delicadeza. Aurora 1964, de Diego di Niglio, revê personagens que lutaram pela democracia durante a ditadura, de modo a empreender um certo paralelo com o atual momento e simular um farol de muitas direções.
Em Nome da América, de Fernando Weller, traz à tona um fato usualmente desconhecido. Antes mesmo do golpe, o presidente João Goulart selara um acordo com um programa de voluntariado americano, o Peace Corps, para atuar no nordeste brasileiro tomado pela fome e pela miséria. A tese do filme (alimentado por depoimentos atuais e imagens de arquivo do próprio governo dos Estados Unidos) é a de que por meio dessa rede capilar os americanos procediam, durante a ditadura, a uma desmobilização do campesinato no nordeste brasileiro e na Colômbia. Weller procura por um voluntário apontado como espião da CIA, e o encontra para uma entrevista, que no entanto não esclarece a situação de todo.
Os novos filmes parecem não se importar com a parcialidade, porque justamente escolheram abordar um país em pedaços. Adeus ao manifesto, aos embates por uma nova linguagem, à extensa contextualização de fatos e personagens. A melancolia é a nova aldeia, retratada a um palmo.
*Rosane Pavam foi membro do Júri Abraccine na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.