Susana Schild *
Elas e eles se amam, se entendem, se desentendem, brigam, surtam, dançam, cantam e bebem – bebem muito, aliás. Eles vivem cheios de sonhos – reais ou irreais – os meses que antecedem o golpe de 1964 em um amplo apartamento de Copacabana que o jovem Felipe divide com amigos e amores. Endereço: Rua Barata Ribeiro 716. Ou simplesmente BR 716, filme delicioso assinado por um jovem diretor à beira dos 80 anos.
E é com alma de principiante e liberdade autoral anos 60, cultuada por ícones da nouvelle vague como Godard, que Domingos Oliveira abre o baú das memórias e as coloca na tela como se acontecem hoje. Como se o passado estivesse presente, sonho e realidade se misturassem, romances bem e mal sucedidos tivessem um final bem parecido: a transformação em finíssima dramaturga. A nostalgia vem na dose certa. Ingredientes: espontaneidade, inteligência, diálogos inspirados e paixão – pela arte, pelas musas do momento, pelos amigos. Na forma e no espírito, um retorno às origens de Todas as mulheres do mundo (50 anos em 2017!), marco de frescor para contrabalançar a sisudez do cinema novo.
Caio Blat, alter-ego explícito do criador, com direito à charmosa fala tatitibitate, é um anfitrião impecável tanto do personagem que incorpora como dos convidados que recebe. Uma câmera solta e leve comandada por Luca Pougy e Felipe Roque registra em um preto e branco matizado e enquadramentos requintados uma festa com data para terminar. A integração do elenco reforça a fama do diretor também neste quesito, com brilho extra conferido por Glauce Guima, Sophie Charlotte e Livia Bueno.
A trilha musical é um deleite à parte, de Quando calienta el sol ao concerto para violino de Beethoven. Com quatro prêmios no último festival de Gramado, entre eles filme e diretor, BR 716 é simplesmente imperdível.
* Crítica publicada em O Globo em 17 novembro 2016.