“Pareço mais famoso do que na verdade sou”

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Maria do Rosário Caetano *

Ele tem 69 anos (*). É ator, dramaturgo, diretor de teatro e de cinema. Fez onze longas em quatro décadas de carreira. Nunca dirigiu um curta. Sua afetividade à flor da pele, a sensibilidade e beleza de Leila Diniz & Paulo José e a camaradagem dos amigos o ajudaram a estrear no cinema com um sucesso arrebatador — “Todas as Mulheres do Mundo”. O filme venceu o Festival de Brasília, em 1966, encantou a crítica e estourou nas bilheterias. Entre seus fãs ardorosos estava o dramaturgo Nélson Rodrigues.

Domingos Oliveira, quando virou cineasta, era incapaz de reconhecer uma lente. Afinal, vinha de outra praia – o teatro. É verdade que estivera no setde dois filmes de Joaquim Pedro. Mas garante que nada aprendera do “ponto de vista técnico” naquelas experiências. Só houve enriquecimento humano. Por um destes milagres do cinema, a química de “Todas Mulheres do Mundo”, um dos filmes de cabeceira de Jorge Furtado, resultou perfeita.

Quem quiser ver os onze longas de Domingos, vai ter que esperar. Só Todas as Mulheres, Amores e Separações chegaram ao DVD. Ano que vem, ele fará 70 anos e avisa que vai recuperar o atraso. Se nas décadas de 80 e 90, no século passado, só realizou um longa (o delicioso “Amores”) agora planeja, com apoio dos amigos e das novas tecnologias, realizar “uns quatro por ano”.

Nesta entrevista, Domingos Oliveira relembra Leila Diniz e fala das influências que sofreu da Nouvelle Vague e de “tudo” que suas retinas viram. Conta de sua paixão por Chaplin, Fellini e, principalmente, Woody AllenDefende – sem papas na língua – o cinema de Baixo Orçamento, matéria-prima do manifesto BOAA (Baixo Orçamento e Alto Astral), e constata que o circuito universitário brasileiro não existe. Precisa ser criado nos moldes do circuito alemão, que permitiu a Fassbinder realizar até três longas/ano.

— Sua filmografia reúne três títulos nos anos 60 e quatro nos 70, seguidos de hiato de 21 anos. Agora você demonstra grande fôlego: realizou três filmes nos últimos quatro anos. O que mudou? O cinema digital é a ferramenta que fertiliza sua criatividade/produtividade?

— No final da década de 70 fui à falência completamente. O cinema estava completamente interessado nas pornochanchadas, subproduto inesperado e sinistro de Todasas Mulheres do Mundo, ou eventualmente para filmes políticos que seguiam o livro vermelho. Não havia lugar para mim, mudei-me para a televisão onde, trabalhando em vários gêneros aprendi muito. Até que parei de aprender, saí de lá, escolhendo como patrão o Teatro. Mas sou um homem de cinema, pertenço à geração do cinema, sei fazer cinema. Acho fácil. Quando as produções começaram a baratear por causa da digital e outros fatores, voltei correndo através de empréstimos para a produção, feitos por amigos interessados. Todos os filmes que fiz nos últimos anos são fruto de cooperativas de técnicos e artistas. Não tenho facilidade de arranjar patrocínios. Não tenho a vocação. Eu pareço mais famoso do que sou.

– Em Gramado/2005, você balançou o coreto ao apresentar “Carreiras”, um filme de apenas R$36 mil. E levou, além do filme, um manifesto (o BOAA – Baixo Orçamento e Alto Astral) provocador. Quais são os mandamentos do BOAA? Uma cinematografia se revitaliza com filmes de baixíssimo custo?

— Creio que seu leitor encontrará estas perguntas melhor respondidas no próprio manifesto. Quero que ele seja lido…

– Voltemos, pois, aos R$36 mil de “Carreiras”. Quem duvidou do orçamento de “El Mariachi” (US$ 7 mil) tem razões para duvidar do custo de seu décimo-primeiro longa, não? Este custo só foi possível porque atores e técnicos atuaram sem cachê e o filme não chegou ao suporte película. É isto?

— Não exatamente. A quantia citada saiu do bolso, foi gasta em cash. Quando todos os técnicos e artistas estiverem sido remunerados segundo os preços correntes, o filme terá custado cerca de R$600 mil (o que ainda é muito barato). Temos os sócios, detentores de percentagens e as dívidas declaradas em documento, porém sem obrigação de prazo de pagamento. Mas que, a propósito, já foram quase todas pagas, no caso de “Feminices”, e que serão pagas nas primeiras vendas no caso de “Carreiras”. Trata-se de um negócio muito transparente, mas que só pode ser feito entre amigos, entre gente que tenha confiança um no outro. Mas, o que fazer? Tenho muitos amigos.

— Num debate, também em Gramado, você lamentou a “inexistência financeira” do circuito universitário brasileiro. Ingressos vendidos por cinemas de universidades alemãs nos anos 70 permitiram a Fassbinder realizar dois ou três filmes/ano. Aqui, os cinemas das universidades, quando existem, passam filmes de graça. Como mudar este quadro?

—  Muito difícil para a iniciativa privada, ou melhor, para o produtor independente, criar o circuito universitário. Isso seria uma obrigação mínima do MinC, que poderia utilizar recursos de renúncia fiscal, muitas vezes desperdiçados em filmes inúteis. Mas esse assunto é como a reforma da Polícia e outros tantos. São assuntos de médio prazo cuja duração ultrapassa a dos mandatos. Por isso nunca são feitas. Vergonha.

 Você não costuma dourar a pílula. Em Gramado, afirmou que filme que vai mal no circuito cinematográfico vai mal no circuito de vídeo e DVD. Ou seja, mal no cinema, mal nas locadoras. O que respalda esta compreensão?

— O público das locadoras não é um público informado, toda a referência que ele tem dos filmes vem da mídia cinematográfica. Nunca me dei bem com meus filmes em DVD. Porque não são filmes de grande mídia, são filmes de arte. Existe uma possibilidade, que paira no ar, de produzir filmes apenas em DVD, com mídia direcionada apenas para DVD, etc. Será bom. Mas também depende de apoio governamental. E o Ministério não vê um palmo adiante do nariz. Será assim até que seja fundado o MARTE (Ministério da Arte).

— Como o cinema entrou na sua vida? Quais são as primeiras imagens retidas por sua memória? Quando você realizou “Todas as Mulheres do Mundo” e “Edu Coração de Ouro” a Nouvelle Vague fazia sua cabeça?

— Todas as Mulheres do Mundo é um trabalho que mudou minha vida. Embora já tenham-se passado 40 anos desde que fiz o filme, até hoje sou mais conhecido por Todas as Mulheres que por outra coisa qualquer. Claro que não gosto nada disso, mas é assim. O filme foi um grande sucesso de crítica e de público e eu fiquei famoso da noite para o dia. Depois de duas assistências, em tenra idade, ao Joaquim Pedro de Andrade, fiquei um tempo grande sem fazer cinema. A vida tomou outro rumo. Montei peças de teatro, trabalhei de redator numa revista. Fui contratado para escrever a programação de uma estação de TV que ia ser inaugurada, a Globo. E me casei com Leila (Diniz). Leila era uma pessoa notável, gostei muito dela e ela de mim – isso está mais ou menos contado em Todas as Mulheres. Depois nosso casamento começou a dar errado e acabamos por nos separar. Foi ela quem tomou a iniciativa da separação, eu não queria ou não tinha coragem de admitir que queria. Enfim, sofri muito. Muito. Então, por causa de um instinto de sobrevivência que nunca me deixou em falta, resolvi fazer um filme.

— Partiu para o longa e estourou de primeira…

— Vendi meu Volkswagen para ficar um tempo escrevendo o roteiro. Escrevi rápido. Li o roteiro para amigos, em casa. Era um filme em dois episódios, chamado Don Juan 66. O primeiro episódio era baseado na personalidade de um amigo, o Eduardo Prado, e chamava-se Edu Coração de Ouro. No segundo episódio, o Edu encontrava um velho companheiro que lhe contava a estória de uma falseta. Chamava-se Todas as Mulheres do Mundo. Eu pretendia talvez chamar o filme inteiro com esse nome. A turma inteira achou a estória interessante, mas me desaconselhou quanto ao título. Parecia filme de strip-tease internacional – disseram. O dinheiro inicial era pouquíssimo e veio de uma subvenção governamental. O momento mais importante da preparação da produção foi uma conversa que tive com Leila, lembro, nos degraus de uma escada. Ela resistiu muito, tinha medo de sofrer, mas acabou concordando em fazer o filme. Eu estaria perdido se ela não aceitasse. A filmagem começou. A locação principal era, como não podia deixar de ser, o meu próprio apartamento. O ator era meu amigo Paulo José, com quem eu tinha trabalhado antes numa peça de teatro, ele de diretor e eu de ator. Para o primeiro plano, a câmera foi posta na varanda, sob o olhar fiel e atento de Mário Carneiro (que não gostava nada daquele início, porque sofria de vertigens e não gostava de câmeras em varanda). Foi aí que eu perguntei ao Mário quantas lentes tinha a câmera, pois eu não sabia. Eu não sabia nada. As assistências de direção tinham sido boas experiências humanas e não técnicas. Mas aprendi nos próximos 10 minutos tudo que era possível aprender. Porque o resto… o resto era Leila diante de mim, e uma câmera, e uma coisa pra dizer, um grito para gritar.

— E os dias de filmagem foram de puro prazer?

— Não desejo nem tentar descrever o que foi a filmagem. Foi muito emocionante. Não exageraria se dissesse que filmava um plano e ia lá para dentro chorar um pouco. Por isso a comédia saiu boa. Uma coisa é certa:a emoção que está por trás das câmeras de um modo ou de outro fica na película. Essa lição importante eu aprendi então. Muita gente me ajudou, de verdade, a fazer aquele filme. Mário, Leila, Paulo, Flávio Migliaccio, Luiz Fernando Goulart (diretor de produção), Cláudio MacDowell (assistente), Joana Fomm e tantos outros que até me engasgo ao lembrar. O processo de produção foi quase tão romântico quanto o filme. Basta contar que o dinheiro acabou imediatamente após a filmagem. E 14 pessoas entraram na dança, sem nenhum interesse comercial, tomando cada uma 500 contos no banco para que a coisa continuasse, avalizando-se uns aos outros. Na fase final, tive de vender cotas a granel, assumir dívidas sem hesitação (acabei ficando com apenas 30% do filme). Porém um dia a cópia final saiu. E fechou o Festival de Brasília daquele ano: ganhou 12 dos 18 prêmios. No primeiro dia de exibição, no Cine Ópera, no Rio, a fila virava o quarteirão. E não havia nomes especialmente conhecidos no elenco ou qualquer propaganda maior. O cartaz de Ziraldo-Jaguar foi decisivo. Nelson Rodrigues (que eu não conhecia) escreveu uma crônica entusiasmada. Era um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Da noite para o dia não se falava em outra coisa, virei manchete durante alguns meses. As pessoas se identificavam muito. Os casais viam juntos 3 ou 4 vezes. O momento mais sério da filmagem foi a seqüência do Quitandinha, quando Paulo diz o poema para Leila nua e depois veste a roupa dela. A seqüência não existia no roteiro, foi escrita durante a filmagem. Em verdade, na Kombi, a caminho da locação. O Mário Carneiro é quem diz: “O cinema acaba quando começa a datilografia”. Claro que é brincadeira, mas também não é. Todas as vezes que o processo cinematográfico se intensifica a ponto de obrigar a escreve a lápis, em cima da perna, o resultado vale a pena. Ver Leila nua, apontar pra ela uma tele, era pra mim coisa grave.

 Quais são as matrizes do seu cinema? Nouvelle Vague, Brecht? Quando é que o cinema de Woody Allen, que só mais tarde se tornaria conhecido no Brasil, passou a interessa-lo. Você assume um diálogo com o diretor novaiorquino, pelo menos em suas produções mais recentes?

— Todo mundo me influencia, adoro ser influenciado. Falando de cineastas, penso que Chaplin foi quem mais amou e Fellini é o maior porque filmou o mistério. Quanto ao Allen, tenho por ele um respeito e admiração absolutos, talvez seja o melhor pensador cinematográfico na atualidade. E somos parecidíssimos: conheço quase todas as músicas que ele usa, bolo cenas que ele vai bolar, enfim, penso que ele gostaria dos meus filmes. Espero um dia poder mostra-los a ele. Porém minhas influências são muitas, tenho um gosto ecumênico, de “Titanic” a “Dogville”.

— Revendo, de forma retrospectiva, seus 11 longas, quais lhe parecem melhor resolvidos? “Todas as Mulheres do Mundo” foi um estouro de público e crítica. Você assistiu a outro momento de êxito com um de seus outros dez filmes junto a espectadores e críticos ?

— Êxito como o de Todas as Mulheres é raro. Foi a mais bem sucedida comédia do cinema brasileiro. Na primeira sessão sem que nenhum ator fosse conhecido da mídia, a fila dobrava o quarteirão. O filme rendeu 11 vezes o que custou. E pode ter sido 22, pois a evasão naquele tempo era enorme. Não era um filme, era um lugar, um acontecimento ao qual as pessoas vinham e re-vinham, talvez por causa do fabuloso charme de Leila Diniz. Durante muito tempo fui perseguido como o cineasta de Todas as Mulheres do Mundo. Agora, nessa minha nova investida, Separações encheu os cinemas e ganhou muitos prêmios nacionais e internacionais. E Carreiras promete. Vamos ver. O artista faz sempre a mesma coisa, isto é, a sua arte. De vez em quando o público gosta.

— Paulo José, seu belo e sedutor alter-ego dos anos de ouro, costuma dizer que você dirigiu a comédia “Todas as Mulheres do Mundo” com lágrimas nos olhos. É verdade? Você realizou o filme para pedir perdão a Leila Diniz?

— Sou muito chorão. E realmente eu queria que a Leila voltasse pra mim. Consegui isso no filme, mas não na vida real. Afinal, não se pode ter tudo.

 Que relação você mantinha com os diretores cinemanovistas? Queria distância deles? Afinal, você queria falar de temas urbanos, de afetos e desafetos, enquanto eles se ocupavam com o sertão, o subdesenvolvimento, enfim, a tragédia sócio-política brasileira.

— Depois que vi “Deus e o Diabo” numa famosa pré-pré-estréia à meia noite no Cinema Ópera, levantei e fui fazer xixi. No banheiro estava, fazendo o mesmo, o Glauber Rocha. Eu não o conhecia e abracei-o (e ele a mim) dizendo frase bombástica: “Muito obrigado pelo seu filme, me orgulho de ser seu contemporâneo!” Ao que Glauber emocionado respondeu “Não sou eu, Domingos, é o sertão”. Sou muito político, nunca tive nada contra o cinema político e nem seus diretores. De vez em quando me hostilizavam, é verdade. Mas eram todos meus amigos. Os que não morreram continuam sendo. Admiro muito o Cinema Novo. Trabalhávamos em campos diferentes, nunca acreditei que a política fosse a coisa mais importante do mundo. E sim o Amor.

  — “Todas as Mulheres do Mundo” e “Os Paqueras” (Reginaldo Faria/1969) são precursores da pornochanchada. Seus filmes dos anos 70 dialogaram, de alguma forma, com a comédia erótica?

— Era obrigatório dialogar, para entrar na sala dos produtores. Porém sempre me pareceu uma forçação de barra.DeliciosasTraiçõesTeu Tua e Simonal são pornochanchadas mal sucedidas. Nem pornô, nem chanchadas. Mas eu tentei, até que resolvi dar um tempo do cinema. Mas não tenho nada contra filme erótico, muito pelo contrário, acho o tema do milênio. Tenho dois ou três roteiros engatilhados nesse sentido.

        — Que lembranças você guarda do compositor Wilson Simonal? Como foi trabalhar com ele? Como você se posicionou no episódio político que acabou por segregá-lo nos meios musicais?

—  “Morreu é meu amigo”, disse Jaime O’Valle. Mas assim mesmo respondo as perguntas: ele era um ótimo cantor, defensor de uma ideologia da pilantragem que era fortemente avalizada pela ditadura militar. E não sei se era um dedo-duro. Talvez fosse, talvez não. Um pouco arrogante ele era, que Deus o tenha. O filme não saiu muito bom, não, embora interessantíssimo. Tentamos fazer um filme (eu e Joaquim Assis) a favor do Simonal e, misteriosamente, algo nas entrelinhas do filme é contra ele. Veja, é curioso.

         — O que o levou, você que é a pessoa mais leve e bem humorada do mundo, a realizar um drama pesado, chamado “A Culpa” (1971)? Será que Woody Allen sentiu, sete anos depois, os mesmos sentimentos (afinal, ele resolveu realizar um drama pesado — Interiores/1978)?

—  Não se pode rir o tempo todo. Embora o humor seja talvez o único modo moderno de falar sério, tem algumas raras obras sem nenhum humor. Uma delas, um dos meus roteiros prediletos, pretendo filmar proximamente chama-se “A Primeira Valsa”.Quanto ao filme “A Culpa”, ele foi um dos primeiros roteiros que escrevi bem antes de Todas as Mulheres. Você sabe, os adolescentes são muito culpados.

    — Você ganhou, no Festival de Mar Del Plata, o prêmio máximo com “Separações”. O filme foi lançado no circuito comercial argentino? Chegou a outros países da América Hispânica? O que fazer para difundir o cinema brasileiro nos mercados latino-americanos?

— Ganhei em Mar del Plata dois prêmios (melhor filme e melhor ator). Não é preciso dizer qual deles me deixou mais contente. Na minha terra nunca fui reconhecido como ator. Em Mar del Plata, Priscilla e eu éramos aplaudidos nas ruas, nos restaurantes. Porém no lançamento, dois anos depois em Buenos Aires, não fomos lá grandes coisas. Dizem que o distribuidor era ruim, não sei, distribuição é um mistério. Todos os nossos filmes tinham que ser vendidos na América Latina. A unidade espiritual e política da América Latina é inegável. Isso inclui também o México e a Espanha. Mas é muito difícil o processo de verba, não é nada que um produtor independente não possa resolver. Faz parte do “Plano Inteligente para o Desenvolvimento do Cinema” coisa que nem sonhamos ter.

— Você pretende fazer um longa-metragem por ano? Tem projetos, ideias e cúmplices para tanto?

— Eu pretendo fazer quatro filmes por ano. Pretensão é água benta. Os produtores da praça começam a se interessar pelo BOAA (Baixíssimo Orçamento e Alto Astral) e minhas gavetas são grandes. Estou 500 anos atrasado. Enquanto Deus permitir trabalharei sem parar. Não que eu acredite em Deus.

(*) Entrevista realizada em 2005 para a Revista de Cinema.

 

MANIFESTO BOAA (íntegra)

O Brasil é um país de artistas. Ser brasileiro já é ser artista. Poderíamos exportar tanta arte quanto exportamos sapatos ou soja. O cinema é o resumo de um país

Este texto crê que a diversidade é a maior das virtudes, em qualquer atividade artística. Os filmes de direita e esquerda, brancos ou pretos, de alto ou baixo orçamento devem ser produzidos Mas com que critério de prioridade? Qual deles traz mais vantagens? Contribui mais para o desenvolvimento de nosso cinema? Qual deles conquista o mercado interno? Qual deles abre o mercado externo?

Enfim, onde deve ser colocado o dinheiro público?

Cremos na Democracia, ainda o melhor sistema apesar de seus cruéis defeitos. Quero dizer apenas que, para pensar o cinema, tive de pressupor a possibilidade de existência de um governo inteligente e honesto.

Somos da opinião de que é a Arte, seja lá isso o que for, é o que torna as atividades culturais importantes e rentáveis.

O que seria do Cinema Novo sem “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, da Retomada sem “Central do Brasil”, do Teatro, sem Nelson Rodrigues ou Antunes Filho? Da música, sem Jobim? São as obras artísticas, as obras de autor, que elevam a importância social e econômica das atividades culturais. E abrem os mercados externos.

 Que importância tem a Arte, se não faz pão nem derruba governos? O artista sabe que a arte é a atividade mais importante do homem. . Que ela é a mãe da ética, da solidariedade, da honestidade, da cidadania, enfim de todos os sentimentos que solidificam uma civilização. Os artistas sabem disso, muita gente sabe disso. Mas para quem não sabe é o difícil explicar, falta-nos a pedagogia. No entanto, tentemos.

O mais pobre dos mendigos entoa sua canção na calada da noite, o mais feroz dos bandidos dança seu tango, todas as pessoas vêem as novelas por causa da pílula de arte que há nelas, multidões acorrem nos fins de semana aos cinemas, aos teatros.

A Arte é uma fome. Da sociedade. Seu melhor anti-depressivo, portanto importantíssima na prevenção do enlouquecimento geral. Toda a sociedade em que vivemos é repressiva e brutalizante, a Arte é macia e delicada. Ela faz com que um homem tenha razões para viver. A Arte é um regulador da sociedade sem a qual ela se desestabiliza. Enfim trata-se de uma atividade de interesse público como a polícia, a saúde pública ou o exército.

A argumentação corrente de que somente os filmes de alto orçamento podem penetrar no mercado internacional é absolutamente duvidosa, se não falsa. Ao contrário, o cinema brasileiro jamais concorrerá com os americanos, por exemplo, em termos de produção. Sua única chance se dá enquanto filme de ARTE, de conteúdo humano original e socialmente relevante.

Arte é uma palavra gasta, embora menos que a palavra Cultura. Lembra elitismo e até falta de clareza. Sabemos que isso é uma desinformação, a verdadeira Arte é sempre comunicativa, popular.. A Arte é considerada pela maior parte dos homens do poder como laser e diversão. Ora, num país pobre como o nosso não é possível gastar muito dinheiro em laser e diversão. Assim sendo, a Cultura/Arte têm verba mínima no orçamento público. Num país ignorante como o nosso a Cultura se confunde obrigatoriamente com a Educação, já que nos falta a mínima..

A Cultura: é uma coisa de enorme importância num país como o nosso: a descentralização, o foco no problema social, a reconstituição de bibliotecas e teatros, a priorização daquilo que é tradicionalmente brasileiro,o acesso da massa pobre ao produto cultural- tudo isto são linhas de ação corretas.. Porém, é imprescindível reconhecer o papel da Arte no processo cultural. A arte é quem carrega, como uma pequena e potente locomotiva, a Cultura inteira. Cultura, hoje em dia, é qualquer coisa. Futebol é Cultura, televisão é Cultura, artesanato, show de strip tease…

Sendo assim clamamos por um Ministério da Arte. É preciso REFLETIR sobre o Brasil. Culturalmente. E difundir esta reflexão artisticamente. O problema não é a FOME e sim a indiferença quanto à fome, dizia o Betinho. Sendo, portanto, a FOME um problema cultural, assim como todos problemas CULTURAIS. Somente através da Arte estas verdades podem realmente ser sentidas pela sociedade, somente a Arte tem essa força e vocação.

É possível que esteja TUDO errado na legislação atual???

Tentemos descrever o CAOS em que normalmente vive o cineasta brasileiro. Figura patética. Faz um filme de três em três anos, ou de dez em dez, quando em geral já perdeu a vontade de fazê-lo. Isto se deve a sua dificuldade de arranjar “recursos” para levantar seu projeto. Quando consegue e finalmente faz o filme logo percebe que as rendas provindas da bilheteria são ínfimas: minha comédia “Separações”, exaltada pelo público e pela crítica, não alcançou os 120 mil, não obstante seus inúmeros prêmios nacionais e internacionais. Calculando com média de ingresso otimista o produtor fica com pouco mais de R$300 mil (para fazer face a todos os custos produção e lançamento no vasto território nacional).

R$300 mil! Nenhum filme pode custar tão barato! No entanto este é o máximo que um excelente filme brasileiro independente pode auferir no mercado interno, portanto, é o máximo que ele deveria custar se pretende ter seus custos cobertos sem lucro. As cartas estão marcadas.O cineasta brasileiro precisa dos patrocínios como um bebê do leite da mãe.

Este vital financiamento vem das citadas“ leis “de renúncia fiscal. Que dependem, aqui, como em quase em toda parte, de lobbies e padrinhos. Levam a grande parte dos patrocínios, como pode ser verificado, os seguintes tipos de filme: os que têm padrinho fortes, os mais convencionais, os que tem atores da T, e os filmes caros de alto-orçamento. Porque dinheiro atrai dinheiro (se me entendem).

O filme de alto orçamento – São filmes cujo custo varia entre R$4 milhões e R$15 milhões, ou mais, enfim, várias malas de dinheiro. Filmes em que os realizadores ganham excepcionalmente bem durante a realização, independente da bilheteria, do agrado da platéia. Pertencem basicamente a três categorias: 1. Filmes intelectuais, sofisticados e complicados que visam principalmente o mercado externo. São os chamados “filmes de festival”. Raramente conseguem o pretendido; 2. Filmes comunicativos e de valor artístico como “Cidade de Deus”, “Central do Brasil” e poucos outros; 3. Filmes que visam principalmente o mercado interno e que tentam o “cross over” (cross over é passar por cima das classes sociais A e B e atingir o território C e E, como um dia fizeram as chanchadas da Atlântida). Muitos destes filmes alcançaram este objetivo na recente Retomada. São filmes que tendem para divertimento puro e simples de suas platéias numerosas, sem maiores valores artísticos. Raras exceções merecem o maior aplauso (caso de “2 Filhos de Francisco).

O filme de baixo orçamento — É hora de por a imaginação no poder, sob o risco de não haver nada para colocar lá .Mudar. Tudo. Permitam-me imaginariamente legislar em três passos:

Primeiro: Por surpreendente que pareça, acabar com as leis da Renúncia Fiscal nas quais se baseia o cinema atual. Justifico: Essas leis já tiveram seu tempo. Atualmente são ineficientes e perniciosas. Fazem duas coisas, e apenas duas, pelo cinema brasileiro: 1. Inflacionam o mercado insuportavelmente, já que o dinheiro sai de graça para os beneficiados. 2. Divorciam gravemente o filme do seu público. Na medida em que não importa ao produtor agradar à platéia e sim ao patrocinador.

Segundo: Criar o Ministério da Arte, regida por um Colegiado de Artistas, de indubitável desprendimento E SABER, a quem caberá decidir os caminhos do cinema. Cinema é Arte. Quem entende são os artistas, talvez auxiliados por intelectuais interessados no assunto .

Terceiro: Legislar de tal modo que os dinheiros venham diretamente para um Fundo de Fomento, soberanamente regido e controlado pelo citado Colegiado de Artistas. Que diante de um plano bem urdido, distribuirá a verba para os diversos setores da infra-estrutura. Decidir os caminhos do Cinema Brasileiro é uma missão que pertence ao Governo. Não pode ser repassada para terceiros. Seria como terceirizar a Polícia.

Cabe observar que esta comissão decisória, o Colegiado de Artistas, deve ser anualmente renovado, como faziam os gregos. Mesmo porque sendo artistas, devem retornar à sua arte.

Uma vez instituído o sistema e o colegiado Qual é a prioridade? A produção?

— O governo não deve produzir filmes, em geral. Somente em casos especiais. Filmes são o final de um processo, a ponta do iceberg. O esporte já sabe disso há muito tempo. Não patrocina jogos, patrocina atletas.

O dinheiro público tem de ser usado naquilo que democratiza o fazer cinematográfico. Ou seja, na infra-estrutura da atividade Mesmo sem aumentar o dinheiro existente, poderíamos obter resultados muito maiores se agíssemos nesta direção certa.Agir sobre a infra-estrutura.

O que é trabalhar sobre a infra-estrutura no cinema? Qualquer grupo de meia dúzia de profissionais experientes, reunidos algumas horas em torno de uma mesa é capaz de responder essa pergunta. Apenas por exemplo: 1. instituir uma larga reserva de mercado, 2. investir em formação de artistas e técnicos, 3. criar o adicional sobre o ingresso,. 4. tornar menos aviltante a concorrência com o produto estrangeiro, 5. criar o circuito nacional de cinema brasileiro, 6. formar platéias,colocando o cinema no ensino básico, 7. fomentar e criar mercados alternativos (faculdades, cineclubes,grandes empresas, tvs fechadas , abertas,dvds,etc..), 8. e mais que tudo o apoio incondicional aos artistas de talento, como o futebol faz com os atletas.

O artista é a base de tudo. Clamamos por um Ministério da Arte. Porque a Arte é a alma do negócio. O Brasil pode ser um grande exportador de Arte para o mundo. O artista é a base de tudo. É ele a infra-estrutura. Muitos filmes de alto ou baixo orçamento incentivam toda a atividade, portanto fazem parte da infra-estrutura, e têm de ser financiados. São eles: 1. aqueles de ótimo roteiro,vencedores de concursos; 2. primeiro filmes de artistas promissores, procurados em todo o pais; 3. filmes de veteranos cineastas, que dão exemplo e criam escola; 4. filmes que lançam luz sobre problemas sociais.

BOAA (Baixo Orçamento e Alto Astral) —  Recentemente fiz dois filmes sem patrocínios: “Feminices” e “Carreiras”. Sem patrocínios e tirando muito pouco dinheiro do bolso. Trabalhando em cooperativa com artistas e técnicos . O princípio é que “associando tudo e todos o filme não custa nada”. Decorre daí que o preço em dinheiro cash de um filme é função do grau de associação e de credibilidade do seu realizador. Com o advento do digital, esse tipo de produção se torna cada vez mais viável. “Feminices”,por exemplo, chegou a sua cópia final exibida nos Festivais Rio e S.P. em digital, por cerca de 15 mil reais(em orçamento,colocando os preços da praça,seria um filme de 500 mil reais).Tendo ganho em S.P. o Prêmio Popular do Júri, recebeu também o apoio da Ancine para ser transferido para o 35mm habitual, e fazer seu lançamento em território nacional com mais facilidade. “Carreiras custou R$36 mil em dinheiro. Ou seja, são um filmes que entram praticamente sem dívidas no mercado, dos quais os cooperativados receberão, mesmo que pouco, desde a primeira bilheteria. São os BOAA – Baixíssimo Orçamento e Alto Astral. Na verdade, esse tipo de produto permite ao produtor-artista independer , até um certo adiantado ponto,do imprevisível Patrocínio. É a democratização do cinema. Qualquer um pode fazer eu filme,seguir o exemplo.

Os BOAA sem dúvida fazem parte importante da infra-estrutura. Devem ser decididamente apoiados. Mesmo porque é um fonte segura de frutos inesperados. Justifico: Incentivado o trabalho em cooperativa o jovem ou velho cineasta pode armar seu filme comodamente com patrocínios de digamos R$100 mil,o que significa que em vez de financiar um filme de 4 milhões ,poderíamos produzir quarenta filmes de autor. Alguns evidentemente não conseguiram ser terminados. Outros serão exibidos normalmente, outros ainda sem lugar no circuito comercial procurarão circuitos alternativos. Alguns ficarão no fundo das gavetas. Mas é provável e quase certo que entre os 40 haja dois ou três excelentes filmes. Ou um apenas, o que justifica largamente o investimento.

Conclusão – Sei que esse manifesto propõe novidades algumas das quais podem parecer utópicas, posto que longe da situação atual,que vem se mantendo intacta há muitos anos. Só porque uma coisa foi durante muito tempo, não precisa continuar sendo.

A mente conservadora não acredita que o mundo possa mudar.

O que importa fazer filmes num país pobre como o nosso?

Importa apenas fazer bons filmes .

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