A crítica como instrumento de valorização

Jauja, de Lisandro Alonso

Jauja, de Lisandro Alonso

Por Bruno Carmelo

O Cine Ceará 2015 chegou ao fim após a exibição de uma safra particularmente boa de longas-metragens ibero-americanos. Os filmes suscitaram debates acalorados entre espectadores, críticos e jornalistas no Cinema São Luiz. Nenhum filme parecia totalmente descartável, e a variedade permitia apontar qualidades em cada um deles. Neste contexto, seria possível dar um passo atrás e questionar a função da crítica: seria responsabilidade do crítico valorizar algumas formas de cinema em detrimento de outras? No entanto, tendo participado do júri da Abraccine, encontrei-me na obrigação de destacar, junto dos colegas Neusa Barbosa, Orlando Margarido, Paulo Portugal e Daniel Herculano, uma única produção. Mas fazendo parte de um júri ou não, todo crítico encontra-se, diante do grande panorama que constitui o festival, na impossibilidade prática de abordar todos os filmes exibidos em seus jornais, sites ou revistas. Uma seleção se impõe – seja ela qualitativa ou editorial.

Havia um relativo consenso entre os colegas, jurados ou não, sobre a qualidade superior do drama chileno O Clube, dirigido por Pablo Larraín, em comparação aos demais. Deveríamos portanto destacá-lo nos textos, torcer para que recebesse o prêmio? A resposta tendeu para a negativa. Foi interessante constatar a tendência a diminuir a relevância da crítica nacional diante deste filme, mesmo entre os defensores desta produção. Tendo vencido o prestigioso Urso de Prata do festival de Berlim, qualquer prêmio brasileiro seria irrelevante ao filme. Talvez outros títulos merecessem destaque, ao invés daquele já consagrado. Esta atitude política repercute na delicada questão do reconhecimento da crítica e do próprio festival. Qualquer prêmio atribuído a O Clube confere um status ao filme premiado, mas também ao festival (que pode ser felicitado por ter incluído este título na sua seleção) e ao próprio crítico (felicitado por ter reconhecido a qualidade da obra). Festivais, como prêmios, constituem mecanismos interessantes de manutenção e circulação de prestígio, afetando todos os envolvidos. As “instâncias legitimadoras do poder”, como diria Pierre Bourdieu, seriam no caso os críticos, necessitando do destaque conferido aos filmes tanto quanto os próprios filmes precisariam destes profissionais. O circuito se retroalimenta.

Outros filmes passavam por situações semelhantes. Jauja, dirigido por Lisandro Alonso, gerou grande debate em Cannes, onde levou um prêmio do júri, e Cavalo Dinheiro, dirigido por Pedro Costa, ganhou destaque em Locarno. O Cine Ceará, por mais prestigioso que seja, não possui o renome destes eventos internacionais que, entre outros méritos, obtiveram estas belas obras em primeira mão. O mercado da valorização artística é delicado, e o fato de privilegiar (em textos e prêmios) apenas as obras já consagradas equivaleria a dizer, implicitamente, que o festival não teria sido capaz de descobrir nenhuma obra nova por si só. A premiação oficial, como se sabe, atribuiu os prêmios principais a estas três produções. Talvez estes tenham sido, de fato, os melhores filmes em competição, mas na impossibilidade de determinar uma qualidade objetiva, pode-se apenas interpretar os resultados. No caso, o júri oficial escolheu sublinhar os valores artísticos reconhecidos pelos cânones europeus, mesmo que o troféu Calunga não represente, comercialmente falando, um acréscimo importante a estes pesos pesados do circuito de arte.

A Obra do Século, de Carlos Quintela

A Obra do Século, de Carlos Quintela

As demais produções latino-americanas, menos conhecidas, também chamaram a atenção. O cubano A Obra do Século, dirigido por Carlos Quintela, foi aclamado pelo ineditismo (afinal, trata da pouco conhecida obra de construção de uma usina nuclear, nunca finalizada, em Cuba) e pela combinação entre ficção e documentário, estilo particularmente valorizado nos festivais nacionais recentes. Diferentemente de obras brasileiras como Branco Sai, Preto Fica, ou Brasil S.A., não ocorre em A Obra do Século uma mistura entre esses dois registros, apenas uma fricção criada pela montagem: ora o filme apresenta cenas puramente documentais, ora apresenta momentos claramente fictícios. A intenção seria ambígua: os defensores do filme viram uma tentativa de estabelecer diálogo entre as duas linguagens, os detratores sublinharam o uso da ficção como tentativa forçada de legitimar o documentário, e vice-versa, como se nenhuma dessas linguagens se sustentasse por si mesma.

Crumbs, dirigido por Miguel Llansó, tocou em um nervo sensível à crítica, neste caso, o valor da cultura pop. Pode um filme que cita Justin Bieber, Coca-Cola, Michael Jordan e Papai Noel ser digno da nobre atenção da crítica? O valor artístico da reciclagem desperta controvérsias há décadas, tendo em autores como Quentin Tarantino uma famosa fonte de controvérsia. Llansó não é Tarantino, mas a sua leitura humorística da pobreza na Etiópia gerou incômodo. É sintomático que Crumbs tenha recebido ao mesmo tempo uma menção honrosa da crítica e o prêmio dos estudantes universitários. Uma das esferas mais populares e uma das esferas mais especializadas reconheceram valores (diferentes, talvez) nesta obra que ousa combinar o luxo e o lixo. Crumbs não transpira sofisticação, como Jauja, nem possui imagens opulentas, como Cavalo Dinheiro. Seus valores, se existirem, têm que ser buscados em algum lugar distante dos cânones do cinema autoral.

Existe também a questão importante do cinema brasileiro. Na ausência do aguardado Que Horas Ela Volta?, anunciado inicialmente, mas retirado da competição, o Cine Ceará apresentou dois filmes nacionais fracos: o documentário Cordilheiras do Mar – A Fúria do Fogo Bárbaro, dirigido por Geneton Moraes Neto, contestado pelo ponto de vista político majoritariamente contrário à esquerda, e Real Beleza, dirigido por Jorge Furtado, questionado pela falta de ambição artística e pelo discurso inofensivo. Talvez a questão de status pese mais uma vez, conscientemente ou não: o primeiro diretor é conhecido como jornalista da rede Globo, enquanto o segundo possui extensa carreira de longas-metragens, navegando com talento pelo terreno espinhoso entre o cinema hermético e o cinema popular. “É difícil contestar o filme de um cara bacana como o Furtado”, alguém disse ao fim da coletiva de imprensa. Talvez seja verdade, e a condescendência representaria menos uma prova de falta de ética do que a comprovação da impossibilidade de um julgamento objetivo. De qualquer modo, a vontade de destacar um filme brasileiro no Cine Ceará não foi fácil. O júri oficial entregou um prêmio especial a Cordilheiras no Mar. Outra possibilidade seria não atribuir prêmio nenhum à safra brasileira, evidenciando pelo silêncio o descontentamento com a seleção.

Havia também filmes mais convencionais, dentro de gêneros precisos: o melodrama Loreak e o suspense policial NN. Ambos eram particularmente bem-sucedidos dentro de seu gênero, mas pouco inovadores e pouco marcantes. Estas pareceriam opções válidas para destacar caso se procurasse uma ponte entre o circuito de arte e o circuito comercial. A qualidade percebida nos filmes, no caso, seria mais contextual do que intrínseca: Loreak e NN teriam o potencial de eventualmente serem vistos pelo público brasileiro nas salas de cinema, ficando possivelmente algumas semanas em cartaz no circuito “de arte”. Em um mercado asfixiado pelos blockbusters, a oportunidade de ser visto não é negligenciável, em especial por se tratar de um filme basco e um filme peruano, respectivamente.

Não se sabe como ocorreram as discussões dentro do júri oficial, e tampouco interessaria descobrir este funcionamento interno. Por definição, júris buscam um consenso entre sensibilidades diferentes, e fizeram as suas escolhas, por razões que podem ser totalmente diferentes daquelas sugeridas neste texto. Também se desconhece as razões de cada crítico ou jornalista para valorizar cada filme, entrevistar cada artista ou escrever sobre cada filme. Mas uma seleção como a do Cine Ceará permitiu desenvolver questionamentos tão variados como estes que, além de ajudarem na compreensão das várias formas existentes do cinema autoral, também ajudam a problematizar a função da crítica diante de tal diversidade.

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