Marcelo Lyra
A mostra competitiva nacional do festival É Tudo Verdade foi bem instigante, com filmes que, essencialmente, buscavam entender seus personagens. Dos sete selecionados, apenas um, na minha opinião, não estava na briga para uma premiação: “Cacaso na Corda Bamba”, de PH Souza e José Joaquim Salles. Me pareceu um documentário de formato televisivo, com muitos closes e um excesso de entrevistados, alguns que não acrescentavam muito à trajetória do poeta e compositor, quando não repetiam informações dadas anteriormente. Sem falar na irritante repetição de texto na tela identificando o entrevistado. Quantas vezes alguém aparecesse na tela, aparecia a legenda com o nome. Uma pena, pois o personagem é bem interessante e dava uma certa graça ao filme.
Os três veteranos em competição, Vladimir Carvalho, Walter Carvalho e Eduardo Escorel, não fizeram feio. O melhor deles para mim foi Vladimir, com “Cícero Dias, Compadre de Picasso”, que retratava com vivacidade a vida do artista plástico que foi amigo do mestre catalão e teve uma interessante vida na Europa, que influenciou sua obra. Vladimir soube encontrar um tom adequado ao estilo do personagem, embora um tanto clássico, e o resultado é um filme pulsante, que traz varias novas facetas de Cícero Dias.
Walter Carvalho não ficou muito atrás com “Manter a Linha da Cordilheira sem o Desmaio da Planície”. Apesar do nome estranho, é um bom documentário de entrevista com o poeta Armando César Filho. Em tese é semelhante a “Cacaso”, mas Walter sabe olhar seu personagem. Já tinha feito um trabalho semelhante com “Moacir Arte Bruta” e teve a habilidade de deixar o poeta bem à vontade, ao ponto de retratar intimidades como suas primeiras experiências sexuais numa época em que isso era reprimido. Criativo e com bom humor, Armando pula de um assunto para outro e a montagem dinâmica soube acompanhar a rapidez de seu raciocínio.
Já o longa “Imagens do Estado Novo 1937 – 1945”, de Eduardo Escorel, é um filme essencial para se conhecer melhor a Era Vargas. Trata-se de um documentário de montagem, que alinhava muitas imagens dessa época, um hercúleo trabalho de pesquisa e seleção de imagens. Seu maior problema é a longa duração: 227 minutos, que nem o intervalo para descanso ajudou a tornar mais leve. A narração do próprio diretor me pareceu por vezes muito didática e eventualmente desnecessária, embora em outros momentos fosse importante para alinhavar o caleidoscópio de cenas reunidas. A sensação é que o diretor não tinha certeza que as cenas reunidas dariam liga e optou por explicar demais. A narração não deixa o espectador respirar, refletir sobre o que está assistindo. Talvez com uma hora a menos se tornasse mais dinâmico, mas as imagens são um primor e a experiência do contato com elas vale todo esforço.
“Galeria F” de Emília Silveira me agradou bastante ao contar a história do único preso político condenado à morte pela ditadura militar. O filme mostra o presídio onde ele ficou detido e ouve muitas pessoas que o conheceram, trazendo à luz um episódio interessantíssimo e quase desconhecido da nossa história recente. A exemplo do filme de Vladimir, é fruto de extensa pesquisa e longas viagens. É uma história muito boa, contada de forma clássica. Não seria nenhuma injustiça se ganhasse algum festival.
Mas eu me encantei mesmo por dois filmes: “Futebol” e “Jonas e o Circo Sem Lona”. Confesso que tive alguma dificuldade para optar por um dos dois, mas pendia mais para o segundo. Ainda hoje, pouco mais de uma semana depois da premiação, ainda tenho ganas de premiar “Jonas”, da diretora Paula Gomes, um documentário vivo e alegre, que acompanha alguns dias na vida do pré adolescente Jonas, filho de uma família de artistas de circo cuja mãe se separou do marido e não deseja que o filho siga a carreira circense. Prefere que ele estude. Só que o menino tem o circo nas veias e não pensa em outra coisa. Não está nem aí para as aulas e monta pequenos shows de circo no bairro onde mora. É desse confronto e do sonho do menino que a diretora extrai uma bela história. Boa parte do tempo vemos um delicioso documentário de observação. Acompanhamos Jonas ensinando amigos a fazer tarefas circenses, organizar os espetáculos mirins… Mas também o vemos nos seus intermináveis embates com a mãe.
Eu destacaria duas cenas: a visita à escola com as reações de seus colegas ao documentário, particularmente uma colega que conta que Jonas mal frequenta as aulas. Mas a mais genial é a do café da manhã, em que a mãe o apressa para ir à escola e ele, entediadíssimo, teima com ela. Talvez alguma coisa aqui e ali pareça encenada, o que não chega a ser um problema, há encenações em documentários desde Flaherty visitou seu esquimó, lá nos anos 30. A montagem poderia ser mais dinâmica, mas no todo o filme é um pequeno achado. Poucas vezes um documentário me fez sentir tão parte da vida de uma pessoa como esse.
Por último o premiado “O Futebol”, de Sergio Oksman, que se enquadra na tendência de documentários familiares, onde se busca conhecer um membro da família (o pai, no caso), cujo expoente máximo recentemente foi “Os Dias com Ele”, da Clara Escobar. Oksman tem como maior mérito a habilidade em estabelecer parte da complexa relação pai e filho que não se viam há 20 anos. A proposta é que os dois acompanhassem juntos a Copa do Mundo no Brasil, já que o futebol seria um ponto em comum entre ambos. Mas a aproximação não parece funcionar e o espectador sente no ar a tensão da relação mal resolvida. Há diversos tempos mortos em que refletimos sobre a dificuldade da relação, um mau humor recorrente do personagem que cria momentos constrangedores. Alguma coisa aconteceu de grave na separação entre pai e mãe, que levou inicialmente a um sumiço do pai.
Há uma cena que define totalmente o filme. Pai e filho estão no carro parados próximos ao estádio Itaquerão, onde um jogo da Copa do Mundo está acontecendo. O pai nem ao menos tem rádio no carro (“Não tinha quando comprei e assim vai ficar”, afirma o pai, irascível). Pelos gritos da torcida eles tentam entender o que está acontecendo. É a exata sensação do espectador em relação ao filme. Tentamos entender o todo pelos indícios, ficamos ao redor do problema.
Achei bem resolvida a forma como ele lida com o imprevisto, a repentina morte do pai, que dá outro rumo à narrativa. Não chega a mudar totalmente, como o curta “Casa de Cachorro”, outro filme levado pelo imprevisto, esmiuçado pelo ensaísta Jean Claude Bernardet em seu belo livro “Cineastas e Imagens do Povo”. O carro circulando só com o filho e a cena no velório nos deixam repensando aquela relação complicada, que nunca mais será resolvida. Um filme sobre relações humanas, objetivo e perturbador.