
“Fotograma”, de Luís Henrique Leal e Caio Zatti
Marcelo Müller *
Dos 14 curtas-metragens que concorreram na vigésima sexta edição do Cine Ceará, cinco eram do Nordeste, sete do Sudeste, um do Sul e um do Distrito Federal. O número nordestino pode até não ser majoritário, mas chama a atenção para uma cinematografia que, arrisco a dizer, se impõe hoje em dia como a nossa (brasileira) mais importante. Propostas muito distintas, múltiplas abordagens para, às vezes, uma mesma questão, com forte acento de preocupação social. Os curtas locais não pareceram inseridos na programação para cumprir uma cota, para contemplar tão e somente a necessidade de exibir a produção cearense e dos estados vizinhos, ou algo que os valha. O que se viu na tela foi muito mais do que uma mera formalidade. O risco é a linha-mestra que guia essa produção claramente efervescente e, por que não, emergente.
O cearense “A Festa e os Cães”, de Leonardo Mouramateus, não apresenta necessariamente algo novo no que tange à forma. Sua opção por uma narrativa visual essencialmente feita de fragmentos fotográficos é, inclusive, de certa forma análoga à de outro concorrente cearense, “Monstro”, de Breno Baptista. São formas semelhantes de conduzir nosso olhar, numa dinâmica estabelecida por imagens-base estáticas, que assim não se sucedem na velocidade de 24 por segundo, esta característica do cinema. O movimento em ambos é fundamentalmente sentimental. O primeiro é constituído de rememorações de festas, da amizade registrada por uma câmera analógica. O segundo é calcado nas dolorosas lembranças de um amor que se foi. Em comum, ainda, ambos mostram o autor como parte substancial de sua própria obra.
Por sua vez, “Janaina Overdrive”, de Mozart Freire, chegou chutando a porta com sua ousadia de trabalhar os signos do cyberpunk. A travesti-boneca ameaçada de reciclagem é uma personagem forte, só rivalizada no que diz respeito ao protagonismo do filme pela criativa construção visual e sonora de um mundo distópico, no qual o futuro é sinônimo de lixo e ruína. Tem suas inconstâncias, mas é corajoso, arriscado. “Abissal”, de Arthur Leite, se insere naquela vertente documental que reflete, ao mesmo tempo, a respeito de uma história bastante pessoal e cara ao cineasta e sobre seu próprio processo de construção. Possui, ainda, uma personagem central para lá de carismática, a Dona Rosa, que sintetiza boa parte das particularidades que fazem do sertanejo um forte, como diria Euclides da Cunha.
“Fotograma”, de Luís Henrique Leal e Caio Zatti, foi eleito melhor curta-metragem pelo júri da Abraccine, ganhou o Mucuripe de Melhor Roteiro de Curta-metragem, segundo eleição do júri oficial, e ainda levou para casa o Troféu Oscarito, prêmio concedido pela Câmara Municipal de Fortaleza. O filme pernambucano é realmente um belo ensaio poético sobre a imagem que, aos poucos, ganha forte significância como instrumento de denúncia das configurações responsáveis por propagar as cotidianas exclusões sociais, principalmente as de cunho racial. Forma e conteúdo atuando em consonância neste que foi o grande destaque do panorama cinematográfico nordestino visto nos dias de exibições no Cineteatro São Luiz.
Petrus Cariry, realizador que competia entre os longas-metragens com “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois”, figura recorrente nos créditos desses filmes curtos na condição de apoiador, disse em entrevista que o Ceará será em breve protagonista no cenário brasileiro, assim como hoje é Pernambuco. A julgar pela amostragem exibida em Fortaleza, principalmente por conta da inquietação sobressalente, não parece exagero, tampouco disparate, antever isso.
* Marcelo Müller é subeditor e crítico do site Papo de Cinema; membro do júri Abraccine no 26º Cine Ceará
Louvável a iniciativa de termos filmes Cearences neste festival. É bom que se tenha mais filmes fora do circuito Rio-São Paulo. Assim podemos ver novos cineastas e atores