Cid Nader*
Quando o mestre Abbas Kiarostami passou juntamente com sua obra a atravessar as fronteiras de seu Irã na década de 1990 do século 20, ganhando reconhecimento por conta dos grandes festivais de cinema do mundo, que já começavam a notar um inesperado e incipiente cinema nascendo de um dos países mais fechados do mundo (fechado por adotar a opção religiosa rigorosa como a melhor maneira de preservação ante as impactantes ações de um mundo extremamente capitalista), que era seu Irã, a crítica cinematográfica notou que ele produzia sensações que ligavam sua obra ao que teria sido o movimento do neorrealismo italiano. Cinema de vigor humano, com ações respaldadas por iluminação e ambientes naturais, âmagos que revelavam povo de rara inocência, decência, teimosia, e “servidão” a preceitos orientadores que poderiam ser questionados ou não pelos de fora.
Abbas rebatia a ligação que se fazia de sua obra ao que ocorrera no neorrealismo, chegando a afirmar repetidamente que jamais havia visto algum filme do período. O que não se podia questionar era a noção espacial do olhar dele, que fazia de suas imagens reflexos de compreensão do ambiente servindo como o abraço necessário e amplo às histórias e aos seres, intrometendo elementos que se repetiam e metaforizavam as dificuldades de seu país, impostas ou de ordem natural (os veículos em intenso deslocamento, a utilização complexa dos aparelhos de comunicação, a correria dos personagens em busca de soluções que brotariam mais do empenho do que do pensamento organizado…), e criando situações de captação das imagens que somente os grandes, os ungidos, poderiam alcançar.
Bem: a primeira vez que se o nota atravessando de forma mais corajosa suas fronteiras (talvez seu primeiro protesto contra algo como que um isolamento) acontece no momento final de “Gosto de cereja” (1997), quando encerra a ação para revelar a equipe de filmagem (metacinema na veia) sob música que referia fortemente às executadas nos funerais negros do sul dos EUA (numa corajosa demonstração de que não era somente observado: de que observava, também). Mais especificamente, essa transição de muros se dá em 2010 com o maravilhoso “Cópia fiel”, pelo qual vai à Itália (região da Toscana) para revelar sua estupefação aos signos que não seriam os de seu Irã: com observação de padrões de comportamento, de obras de artes, de elementos religiosos cristãos… Estava encantado pelo mundo.
Mas falo aqui desse mais recente e também maravilhoso “Um alguém apaixonado” (2012), quando parte para o Japão (no imaginário de qualquer um que não seja japonês o lugar mais propenso a emprestar estranhamento no mundo), filma situações bizarras e conclui em algumas entrevistas após exibições do filme que o Irã é o mundo, que o ser humano é sempre o mesmo em qualquer lugar, que o mundo não é tão diferente assim, na realidade.
Abbas Kiarostami é mestre. Mais do que mestre por ser cineasta de rara combinação entre a busca de questões do humano tratadas com cada vez mais revigorada elaboração formalista (daqueles que de modo evidente perceberam com o avançar da carreira que trabalhar e modificar os parâmetros de observação técnica em seus filmes deveria ser uma toada a ser perseguida quase obsessivamente – não dá para negar que desde sempre, mas num crescendo evidente a partir de Dez, as questões da construção e do modo de fazê-las vistas pelo espectador, como coisa de rigor estético, passaram a tomara importância cada vez mais rara), poder-se-ia dizê-lo num patamar superior quando avança de seu Irã para “descobrir” (se encantar, estranhar, rir ou se emocionar com) o resto do mundo, as outras pessoas, seus modos de ser e viver, diversas religiões, encantando-se e fazendo disso tudo alvo de suas atentas lentes, mas notando, com sabedoria dos raros, que no fundo mesmo o ser humano que ele passou a retratar para além de suas fronteiras de origem era o mesmo com quem cresceu em suas vizinhanças, e tem o persa como idioma.
Foi à Europa recentemente (flertara abertamente com o “outro” mundo, pela primeira vez, no momento final de Gosto de cereja), voltou ao Oriente e foi para mais longe testar seu olhar no extremo de tudo: no Japão, tão diferente conceitualmente do modelo oriental (também Oriente) do Irã, quanto diverso das diferenças ocidentais, enquanto “sofrendo” os mesmos processos de transformação de um, e vendo alguns de seus nutrindo e exercendo tradições ou irracionalidades machistas do outro. E é num Japão mescla de modernidade máxima e restos de tradições impossíveis de serem descartadas que embrenha curioso como sempre.
O filme é ligeiro por não optar pelo início de linha traçada e evitar o final que explica a mais. Como se fosse um trecho de descobertas, conta da violência que se impõe sobre as mulheres, numa sociedade (como em qualquer outra parte do mundo) que sempre as tratou sob jugos institucionais, ou que (nesses tempos estranhos e modernos) as amordaça e amarra sob ameaças que parecem sutis, mas que resultam em exploração e subjugação; fala de alguém que parece insano porque cede à possibilidade do relacionamento pago (um professor velho e solitário vivido por Tadashi Okuno), mas se comporta como se fosse ainda dos tempos ancestrais, com gentileza descabidamente atemporal, bom humor raro, em contraste vincado com a ligeireza no modo de ser da universitária do interior que vai a Tóquio e se vê prostituída (Rin Takanashi). O estabelecimento de relação entre ambos se torna inevitável – pela determinação que o trecho pensado por Abbas impunha desde seus primeiros traços –, o porvir (com o surgimento de um namorado dela, misto dos seres que se pensam melhores porque nutrem as tradições, mas que podem reagir de maneira extremada e violenta – o que os remete ao mundo mais do que moderno, mais do que urgente, que cobra atitudes e não paciência, que cobra reação e não contemplação, como um ser representante máximo dos paradoxos), e a sutileza das lentes, faz entender que se está observando o mundo todo ali.
É novamente o mestre calmamente relatando como somos parecidos por todos os aspectos que se desejem evocados para as comparações, que consegue isolar tão niponicamente um sutil trecho (dentro do seu já trecho de história), onde uma vizinha bisbilhota como sempre se fez e mora numa antiga típica casa de madeira do Japão, escondida por materiais e construções modernas (e é incrível como o filme potencializa esse contraste que teima em existir para além da figura antiga do professor quando intromete dentro do ambiente dessa vizinha um seu irmão com problemas que remetem aos tempos em que se deixava de viver vida própria para se dedicar a alguém muito próximo e necessitado – com espaço para que a lamentação pela opção tenha seu espaço de explanação). E essa constatação de paridades humanas, quando notada por Kiarostami, “sofre” a bênção do acompanhamento raro de lentes que sabem valorizar as diversas luzes que iluminam seus trabalhos. E mais uma vez é impossível deixar de notar a paixão dele pelo automóvel como elemento que serve de isolamento e figa, enquanto melhor maneira de deslocamento: do que se aproveita para reafirmar como sabe filmar bem (as situações vistas e refletidas pelos vidros do carro são de beleza estonteante).
Em sua première internacional, “Um alguém apaixonado” recebeu algumas vaias em Cannes? Ah, tá bom, né? Fazer o quê?
* crítico de cinema; versão ampliada do texto publicado no site Cinequanon por ocasião do lançamento de “Um alguém apaixonado” (2012), derradeiro longa-metragem do cineasta.