Críticas escritas à época do lançamento do filme no Brasil, nos primeiros meses de 2011.
“CÓPIA FIEL” E KIAROSTAMI
Antônio Carlos Egypto*
Diz a sinopse oficial de “Cópia fiel” (2010): “Um homem e uma mulher se encontram em um pequeno vilarejo, no sudoeste da Toscana. O homem, um escritor britânico, que acabou de dar uma palestra em uma conferência. A mulher, francesa, dona de uma galeria de arte. Essa é uma história comum. Poderia acontecer com qualquer um, em qualquer lugar”. Será mesmo? Vindo do talento criativo do diretor iraniano Abbas Kiarostami, não acredite.
Para começar, o homem é um escritor que levanta questões não triviais. Seu livro, “Cópia fiel”, que dá nome ao filme, questiona o que é ser original e o que é ser cópia na arte e na vida. Cópias são tratadas como originais, na arte. Quantos Beijos de Rodin, por exemplo, originais, existem?
Cópias podem ter função idêntica a originais no mundo. Cumprir a mesma função prática ou estética. Ou, mesmo, serem mais valorizadas em algumas situações ou por algumas pessoas. O “peso” dos originais pode ser muito grande e incômodo. Evidentemente, tudo isso é muito relativo e, colocado na perspectiva concreta, pode dar origem a dilemas morais interessantes.
Os diálogos entre esse homem e essa mulher vão pontuando, com essa temática, toda a primeira parte do filme. Não são coisas comuns ou banais, embora possam fazer parte da vida das pessoas, em qualquer tempo ou lugar. Não sem conflitos, seguramente.
A horas tantas, “Cópia fiel” vai promovendo uma virada na relação entre os dois personagens e entramos em cheio na vida conjugal, suas expectativas, desejos, frustrações, lembranças, rancores, abandonos. E a segunda parte do filme mostra todo um universo complexo das relações homem-mulher que, inevitavelmente, nos coloca novos desafios e reflexões tão importantes quanto os que ocuparam as atenções do escritor e da dona da galeria. Quem são eles agora? Cópias fiéis das realidades conjugais? Singularidades que se revelam? Aquilo que estava escondido nos papéis que viviam?
O filme poderia ser visto do meio para a frente e fazer todo o sentido. Poderia também começar daí e continuar na primeira parte, encerrando-se nesse mesmo ponto. Se tivesse só a primeira parte, já seria um média-metragem excelente. Assim como só a segunda. A rigor, ele poderia começar ou terminar no meio. Sua narrativa é circular. E, dependendo da escolha que se fizesse na montagem, ele ensejaria novas visões. Do jeito que está, é uma obra aberta a muitos significados e possíveis interpretações. Qual a verdade? O que é original e o que é cópia, no sentido de quem gerou o quê? E, também, quem somos, o que somos, o que nos move, afinal?
O que parecia uma história comum se revela um filme experimental, com um formato original. Não surpreende, em se tratando de Abbas Kiarostami. Ele sempre buscou novos caminhos. Basta lembrar “Shirin”, de 2009, exibido somente em festivais, sem lançamento comercial no Brasil. Nesse filme, apenas as espectadoras de um teatro são focalizadas, nunca a peça, que só é ouvida. Ele já fez um filme inteiro, utilizando uma pequena câmera dentro de um carro, em “Dez sobre Dez”, de 2003. Deixou uma câmera fixa e imóvel numa rua portuária, em “Cinco”, de 2004. Tratou do dilema de um suicida, em “Gosto de cereja” (1997), da construção da cena cinematográfica, em “Através das oliveiras” (1994). Já em 1987, ele havia feito um lindo filme, todo contado pela ótica de um menino pequeno. Onde fica a casa do meu amigo? é uma película marcante, da tendência neorrealista, que o cinema iraniano explorou por meio de personagens infantis, nos anos 1980 e 1990, para fugir aos ditames da censura.
Só que a situação no Irã se complicou, com o recrudescimento da censura e do controle sobre o seu festejado cinema. A ponto de manter na cadeia e proibir de trabalhar um dos mais talentosos diretores do cinema iraniano, Jafar Panahi, de “O balão branco” (1995).
“Cópia fiel” é um filme com personagens europeus ocidentalizados, falado em francês, italiano e inglês. A presença das três línguas aí contribui para mostrar as dificuldades atuais de comunicação, assim como quando o celular interrompe o próprio palestrante. O cartaz mostra Juliette Binoche em lábios com batom forte e longos brincos, o que seria impensável no Irã. Ela foi premiada em Cannes como melhor atriz por essa fita. É realmente um grande desempenho.
Kiarostami filma no exterior e já sabe que seu filme não deve ser exibido no Irã. É lamentável que o país, ao invés de se orgulhar da filmografia que conseguiu construir e que lhe deu inegável projeção cultural no mundo, cale ou interdite a voz de seus melhores cineastas. Regimes de força não conseguem, mesmo, conviver com a crítica, a inovação e o experimentalismo. É algo recorrente.
No caso específico de Kiarostami, ele foi um dos mais importantes diretores de cinema em atividade. Tinha espaço mais do que suficiente para que seus filmes fossem conhecidos e apreciados em todo o mundo, a partir de sua apresentação nos grandes festivais de cinema europeus. Foi um cineasta global e um grande artista, que viveu contribuindo para que o cinema experimentasse e avançasse.
* psicólogo, sociólogo e crítico de cinema; texto originalmente publicado no site Cinema com Recheio
“CÓPIA FIEL”
Luiz Joaquim**
Já não é de hoje que o cinema iraniano deixou de lado aquela produção que parecia falar unicamente da situação política de seu país por analogias com crianças. Uma belíssima obra que exemplifica essa evolução vem de um de seus cineastas ícones, Abbas Kiarostami. “Cópia fiel” (2010) tem na arte, e em seu reflexo para repensar a própria vida, o seu foco de questionamentos.
É um filme elegante e intrigante. Não se pode adiantar muito a seu respeito, pois a transformações pela qual passam a dupla de protagonistas e as posturas que vão assumindo lá pelo meio do filme requerem uma total liberdade de leitura do espectador. É o tipo de situação que não se explica genericamente, mas só a partir da própria carga cultural que, individualmente, cada espectador traz consigo.
De qualquer forma, a “primeira parte” de “Cópia fiel” nos apresenta James (o barítono britânico William Shimell) e Elle (Juliete Binoche, linda e perfeita, tendo levado o prêmio de melhor atriz em Cannes 2010). Ele, inglês, está em Toscana lançando seu livro Cópia conforme, uma análise sobre a obra de arte, suas cópias e o valor de cada uma delas (sem que a cópia seja necessariamente menos importante que a original).
Ela, uma francesa morando na Itália, aparentemente cria seu filho de oito anos sozinha. É o menino que insiste para que saiam da palestra de James para poder comer algo. É também o garoto que a acusa, brincando, dela estar paquerando o escritor. No outro dia, por convite de Elle, James a visita em sua loja de antiguidades e os dois saem para um café. Até chegar ao café, o casal discorre no carro, com leveza (mas profundidade), sobre questões que fazem parte da natureza do livro de James: legitimidade, autenticidade e a capacidade de enxergar ou atribuir valor a algo absolutamente desimportante ou até risível para outros olhos.
Esse assunto cresce depois numa conversa entre Elle e uma senhora que lhe serve café, mas deslocando o foco do objeto de arte para as relações afetivas, abrindo o filme, daí, para a tal nova dimensão quase indecifrável. Mas, diga-se, um dimensão “maestralmente” conduzida pela mão (tanto a que escreveu o roteiro, quanto a que dirigiu o filme) de Kiarostami, além das performances sutis dos atores.
A princípio, “Cópia fiel” parece ter como forte interesse destacar a necessidade de relativizar a importância das coisas da vida, mesmo porque, o que vale aqui, pode não valer ali. Não por acaso, o filme é falado em inglês, francês e italiano, sendo Elle, a mulher, a única que consegue alcançar todos os significados para, no final, ser deixada pelo homem, que precisa voltar à realidade. Perfeito.
** jornalista, crítico e programador do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco; editor do site CinemaEscrito.