Daniel Feix*
Em Porto Alegre, a despedida do cineasta iraniano Abbas Kiarostami foi histórica. Menos de um mês antes de sua morte, três cinemas da cidade receberam a mostra Um filme, cem histórias: Abbas Kiarostami, que permitiu aos cinéfilos gaúchos assistirem a algumas de suas obras-primas na sala do cinema – “Close-up” (1990), “Através das oliveiras” (1994) e “Dez” (2002) entre elas.
Mais do que isso, apresentou uma raridade: “O relatório” (1977). Trata-se do filme da transição entre os títulos da época em que trabalhou em um centro para o desenvolvimento intelectual de crianças de Teerã e aqueles que realizaria após a Revolução Islâmica de 1979, absolutamente originais em sua complexidade formal – e que o levariam à consagração também fora de seu país.
“O relatório” chegou a ser dado como perdido – até que se encontrasse uma cópia, com legendas em inglês sobrepostas às imagens de cores sóbrias destacadas pela fotografia cheia de sombras e áreas escuras. O filme foi apresentado às 20h de uma sexta-feira fria em uma Sala P.F. Gastal praticamente lotada, seguida de um debate com a presença da crítica e professora de cinema Ivonete Pinto.
Na conversa, que contou com a intervenção de diversos presentes, manifestou-se a surpresa do público, em primeiro lugar, com as imagens da capital iraniana pré-Revolução – “Uma cidade como qualquer outra do Ocidente”, alguém comentou. Segundo: com a força da crítica social que Kiarostami direcionava a algumas instituições, apresentada por meio de um naturalismo cru, ora sutil (os médicos revelando estarem acostumados a atender mulheres vítimas de violência doméstica), ora impactante pela agressividade (o longo plano-sequência da briga do casal protagonista é coisa não de um cineasta de carreira incipiente, coisa que ele era àquele momento, mas de um mestre da linguagem, como seria consagrado logo depois).
Presente à sessão, o crítico e professor de cinema Fernando Mascarello comparou a abordagem da trama sobre a crise conjugal, entre outros filmes, àqueles que o brasileiro Arnaldo Jabor realizou também entre as décadas de 1970 e 80, sublinhando a universalidade de Kiarostami.
Nos anos seguintes, o cineasta iraniano desenvolveria uma carreira brilhante exercitando a metalinguagem e provocando o espectador e refletir sobre os limites entre realidade e ficção de um jeito muito particular. No fim da carreira, filmando na Itália (“Cópia fiel”, de 2010) ou no Japão (“Um alguém apaixonado”, 2012), sempre com elenco internacional, ele estenderia essa pesquisa estética ao terreno – no seu caso, movediço – entre realidade e simulacro.
Mas a verdade é que, metáfora de muitos de seus personagens em deslocamento, seu destino nunca foi certo. Os caminhos percorridos por Abbas Kiarostami eram imprevisíveis. Foi assim até o fim.
O que a inesquecível sessão de O relatório permitiu constatar foi aquele que talvez tenha sido o momento da grande virada em sua carreira: de um simples filho iraniano do neorrealismo italiano para um dos mais instigantes autores que o cinema já viu.
* jornalista e crítico de cinema; texto publicado no jornal Zero Hora, em 8 de julho de 2016, junto ao artigo “Memória Viva de Abbas Kiarostami“, também pulicado neste dossiê.