A comodidade do olhar no CineCeará: um balanço da premiação

Orlando Margarido *

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Ao ofício de júri nos festivais de cinema cabe proceder da maneira menos injusta possível, pois sob algum ponto de vista o será. É trabalho coletivo, afinal, sujeito a preceitos subjetivos, tanto de cada integrante como aos olhos da preferência de quem também assistiu aos filmes, o público. Estar ou não de acordo com o resultado aqui e ali faz parte do jogo. Mas o colegiado escalado para julgar os seis filmes da competição do 27a CineCeará parece ter incorrido num daqueles equívocos de difícil compreensão e que põe senão tudo, quase tudo a perder. Direto ao ponto: deixou-se, de uma só vez, de ressaltar a qualidade superior dos dois melhores projetos exibidos em função de outros problemáticos ou apenas dignos e de sintonizar esse reconhecimento com um debate muitíssimo atual. Verdade que o segundo aspecto não precisa, ou talvez nem deva, concorrer em páreo com a qualidade. Mas quando ambos se somam parece ser pouco razoável não defendê-los. Foi o que fez o grupo ao desvalorizar o concorrente chileno Uma Mulher Fantástica, relegando-o a categorias técnicas, e conceder o prêmio de fotografia e um outro Troféu Mucuripe pró-forma, ainda que indiscutível, a direção do cubano Fernando Pérez por Últimos Dias em Havana.

Começando por este “maestro” do cinema da ilha de Fidel, contexto que determina seus filmes. Pérez é um veterano e hoje grande nome da cinematografia cubana. Desde sempre traz a marca da análise crítica social e política sobre seu paradoxal país, complexo para entender, e que em verdade pouco entendemos. O realizador se esforça para tanto e vimos no Brasil alguns de seus filmes encantadores, tristes ou simbólicos da alegria irreverente daquele povo, como Suíte Havana e La Vida Es Silbar. Últimos Dias em Havana se encaixa no mesmo conceito crítico e registro de humor, ainda que trate de temas dramáticos como a aids e a determinação de um habanero sombrio e misterioso em querer ir-se, como se diz dos que não aceitam o regime comunista e a penúria na ilha.

Há, primeiramente, a capacidade de opor situações dolorosas de uma geração mais velha ao saber lidar e se virar do povo cubano. São eixos representados por Diego (Jorge Martínez), que padece dos males do HIV entrevado numa cama, e de seu amigo de longa data Miguel (Patrício Wood), dedicado a cuidar do dono da casa enquanto aguarda o visto para partir aos Estados Unidos. A esse núcleo de diferentes personalidades e destinos se contrapõe um terceiro, de intuito atual, moldado a partir dos jovens em torno de Diego, como um garoto de programa e de sua sobrinha, personagens determinados a ficar em Cuba e mudar sua realidade. Ou seja, o sintoma político também se estabelece pelas conotações geracionais e de pontos de vista opostos. Construída a narrativa, Pérez passa a costurar os conflitos ocorridos no interior do grande casarão em que habitam muitas famílias, saindo dele apenas para captar o necessário do que é a rua, microcosmo de um cotidiano tanto quanto rico de significados.

Parece operação simples, dado que o material humano e social do peculiar país está ali disponível em seus costumes tão irreverentes, notadamente mesmo folclóricos, de alegria contagiante, como se sabe. Mas Pérez sabe o quanto é perigoso atravessar a linha para a mera representação novelesca, estereotipada, e caminha nos limites do gênero, da comédia empática a um travo dramático, de que é exemplar a cena do táxi na chuva. Não enxergar essa poética que depende de vários fatores em sintonia, de ótimo elenco a roteiro e detalhes em cena mais expressivas do que os diálogos, é não se dar conta da conformação de um filme em sua totalidade para que resulte excepcional. Últimos dias em Havana é um desses casos e a quem queira comprovar o longa estreia no próximo dia 24.

Assim como revi o filme de Pérez, em projeção melhor que a do Festival de Berlim e comprovadora da bela fotografia de Raul Pérez Ureta, também fiz a revisão de Uma Mulher Fantástica. Já comentei em post anterior o quanto gosto do filme de Sebastián Lélio, o mesmo do ótimo Glória. Se na Berlinale fiquei desapontado que Daniela Vega, alma do filme, não levou o prêmio de melhor atriz, em Fortaleza a derrota parece ainda menos justificável. Diga-se da mostra alemã que o nível dos competidores tinha equilíbrio de qualidade e se pode compreender melhor as decisões do júri. Mas o que teria feito os jurados do CineCeará preterir a “a atriz fantástica” a apenas correta Lola Amores, do também cubano Santa y Andrés?

São ambos primeiros trabalhos, mas a potência de Vega se sobressai muito além do apelo de ser ela mesma transexual que no filme enfrenta resistência e desrespeito da família do companheiro morto. Pode-se imaginar um dilema real no cotidiano da também cantora lírica e talvez a percepção de ser este um papel único, uma incógnita a princípio, tenha pesado na preferência. Bastidores após a premiação, no entanto, davam conta da resistência de alguns integrantes quanto a dificuldade de conceituar o talento de Vega nos parâmetros de gênero. Seria ela um ator ou uma atriz em cena? Ora, não é justamente esse o tema atualíssimo com que a sociedade, digamos, tradicional se embate?

O que Lélio nos oferece é a personalidade pronta e acabada na definição de gênero que Marina, a personagem, almeja ser, uma mulher. Em contraponto curioso, a Santa de Lola Amores se confirma titubeante na esfera da opção política, uma revolucionária que se deixa convencer depressa demais pelos argumentos do dissidente inimigo. O que no mínimo já serve para questionar o roteiro do diretor Carlos Lechuga, eleito pelo júri, em narrativa dedutível, sem sobressaltos ou camadas mais aprofundadas.

Houve quem entre críticos e público enxergasse em Ninguém Está Olhando propósitos além de um drama interessante, bem contado, com ambição a análise social e geracional. Independente do filme de Julia Solomonoff confirmar ou não tais predicados, em muito amenizados por uma acepção de telenovela, a escolha do júri parece se dever a uma habitual saída de consenso. Diante de dois fortes concorrentes suscetíveis a controvérsias, um de esfera política e outro quanto a sexualidade, preferiu-se uma terceira via mais cômoda. Mas júris, espera-se, não existem para acomodar o que já está em conformidade, aceito. Sobretudo os de crítica, de quem se espera um tom acima do olhar de convenção. Se tanto, uma escolha justa, embora dependente da valorização em outras categorias dos melhores filmes em competição, se refere a atuação do argentino Guillermo Pfening. Mas é pouco, muito pouco, para um colegiado que deixou a pulsão de seu tempo passar ao largo.

* Orlando Margarido é jornalista e crítico cinematográfico. Texto originalmente publicado no Blog do Orlando Margarido.

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