Dossiê Cine Pe: Curtas

apneia

Amanda Aouad*

Muitas vezes subestimado por público e veículos de comunicação em geral, o curta-metragem é formato que possibilita experimentações diversas na linguagem cinematográfica tanto em técnica quanto em estética. A seleção desse ano do Cine Pe demonstra o quão rico está esse cenário brasileiro em uma diversidade temática e de gênero que nos apresentou algumas belas experiências no Cine São Luiz.

Pela divulgação oficial foram sete documentários, nove ficções e quatro animações, porém é possível perceber nuanças nessas classificações que só enriquecem a experiência e composição da curadoria. Entre os documentários, por exemplo, temos “Cor de Pele” de Livia Perini, escolhido como melhor filme pelo júri oficial. Ainda que utilizando a tradicional estrutura de entrevistas e imagens ilustrativas, a obra é delicada e envolvente, contanto a história de uma família pobre com três filhos albinos. Mas chama a atenção também as experimentações no formato como ‘Progrom” de Guilherme Folly e Fernanda Cavalcanti que mistura imagens da época da ditadura militar para ressignificar discursos atuais. Ou a colagem “É difícil te encontrar” de Sabrina Menedotti que mais se aproxima de um videoarte.

Entre as ficções também tiveram aqueles que flertaram com a linguagem documental como “Vinillis Frutíferis” de Victorhugo Passabon Amorim que constrói um mockumentary sobre uma árvore que daria vinil ou “Tommy Brilho” de Sávio Fernandes que através de uma divertida emulação de uma reportagem sobre um garoto invisível fala com profundidade sobre bullying e preconceito no âmbito escolar, tanto que conquistou o público no Cine São Luiz levando o prêmio do júri popular. Teve ainda “Obeso Mórbido” de Diego Bauer e Ricardo Manjaro, onde o próprio diretor é protagonista aproveitando a sua perda de peso recente para compor a personagem, ainda que com uma trama ficcionalizada.

Já as animações, ainda que todas as quatro tragam um olhar infantil, com uma criança como protagonista, discutem temas diversos como o feminino em “Vivi Lobo e o quarto mágico” de Isabelle Santos e Edu MZ Camargo que se inspira no livro “Mulheres que Correm com os Lobos” ou “Só sei que foi assim” de Giovanna Muzel que trata sobre amizade, escolhas de vida e pesos que carregamos conosco de uma maneira simples e singela.

“Apneia” de Carol Sakura e Walkir Fernandes destaca-se nesse cenário pela qualidade técnica, construção poética e profundidade com que trata um tema que ao mesmo tempo é extremamente pessoal e tão universal. A poesia guia as reflexões e lembranças da pequena Muriel sobre seus traumas, em especial sua difícil convivência com a mãe e a relação com a água.

A metáfora da água como o feminino e essa força interior que ajuda os sentimentos a fluir acaba sendo a chave para a própria obra. É através dela que a montagem é construída nos levando com ela e sua fluidez como se emulasse seu próprio percurso. Como em uma das cenas mais fortes onde gotas pingam em um banheiro e a imagem vai se aproximando da fechadura da porta, cortando para um oceano.

O design sonoro ajuda também na imersão ao cortar da trilha de angústia para o quase silêncio. Há sempre esses efeitos em composições estéticas que nos ajudam a imergir também naqueles sentimentos. A linguagem da animação ajuda a traduzir esses sentimentos em imagens mais fluidas construindo também sensações que tornam a experiência ainda mais rica. O filme levou o prêmio do Canal Brasil de curtas. 

Traumas, compreensão do mundo, questões sexuais são também temas de um dos destaques entre os filmes de ficção. “O mistério da carne” de Rafael Camelo traz a trama de duas meninas e o desejo de uma delas pela amiga. Entre conceitos de culpa e medo, a obra vai se construindo em sucessões de cenas que não se definem completamente entre realidade e fantasia.

Uma das cenas que se destacam e dão o tom do que o autor quer passar mostra meninas dançando e entrando em uma igreja católica para o tradicional ritual do lava pés que normalmente só permitia homens. Todas fazem gestos com as mãos simulando uma maçã imaginária, símbolo do pecado original atribuído a Eva e, consequentemente, a todas as mulheres.

Entre os selecionados tinha ainda uma diversidade de linguagem e gêneros, como dois filmes de terror completamente diferentes. “Guará” de Fabricio Cordeiro e Luciano Evangelista que flerta com o estilo trash, mas também chama a atenção por algumas escolhas de direção com o impactante plano sequência final. E “Casa Cheia” de Carlos Nigro que traz um suspense mais sóbrio construindo sensações crescentes de angústia através de sons e imagens.

Teve ainda “Lembra” de Leonardo Martinelli, uma trama toda feita com a linguagem do celular e redes sociais, sobre o dia a dia de uma garota e as manifestações políticas. E a ficção científica “A Margem do Universo” de Tiago Esmeraldo, que questiona a relação predatória da humanidade com a natureza através da visão de alienígenas que visitam a Terra e se comunicam via antiga língua indígena.  

Por fim, o filme premiado pelo júri Abraccine, “A Pedra” de Iuli Gerbase que traz uma história aparentemente simples de um passeio de rafting de uma família. A construção narrativa chama a atenção, pela boa utilização dos signos. Não há muitos diálogos, nada parece expositivo e impressiona a maneira como a diretora desconstrói estereótipos e utiliza recursos tecnológicos atuais, como o celular para conduzir sua trama.

Entre obras inéditas e já vista em outros festivais, já que a vida útil de um curta metragem em circuitos de festivais é mais ou menos dois anos, a 23ª edição do Cine Pe conseguiu trazer um conjunto que representa bem o momento do cinema brasileiro. Obras de qualidade para tratar de temas caros à sociedade em variação de linguagem, estilo e gênero diversos.     

* Amanda Aouad foi presidente do júri Abraccine no 23º Cine Pe – Festival de Audiovisual.

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