Roberto Cunha*
Chegou ao fim a 23ª edição do Cine-PE: Festival do Audiovisual, com obras recentes, produzidas em Pernambuco e em outras regiões do Brasil. Ao todo, na categoria longa-metragem, foram seis títulos em competição e o evento contou com obras da Bahia (1), Distrito Federal (1), Rio de Janeiro (2) e São Paulo (2). Entre elas, duas investiram na ficção, com histórias originais, uma terceira dramatizou uma mobilização de classe real, e outras três, com viés de protesto e/ou denúncia em seu DNA, chegaram na forma de documentários diferenciados.
Ganhador dos prêmios Melhor Filme (Júri Oficial e Crítica-Abraccine), Melhor Montagem e Roteiro, sob o comando da diretora Eliza Capai, ESPERO TUA (RE)VOLTA (SP) causou impacto também junto ao público, em sua noite de exibição repleta de estudantes. Resultado de um trabalho intenso e preciso na seleção de imagens, o documentário acompanhou os movimentos estudantis, desde os célebres protestos contra o aumento das passagens de ônibus, em 2013, até as ocupações das escolas ocorridas em 2015 e 2016. Ao optar por uma linguagem que dialoga diretamente com os jovens, o acerto fica evidenciado em um roteiro que usa e abusa da liberdade característica dos retratados. Não só na maneira como revela imagens de arquivo, como também quando coloca seus protagonistas, três estudantes ativistas, interagindo com essas mesmas imagens, visualmente ou com uma descolada narração em off. Dessa flexibilidade, nascem diversas idas e vindas no tempo, que parecem incomodar num primeiro momento, mas em nada comprometem a eficácia da narrativa.
Maior detentor de Calungas conferidos pelo Júri Oficial, Melhor Direção (Marcelo R. Faria e Rafael Moura), Fotografia (André “Xará” Carvalheira), Ator (Adriano Barroso) e Ator Coadjuvante (Pablo Magalhães), a ficção TEORIA DO ÍMPETO (DF) revelou-se uma trama intrigante desde os primeiros minutos. Nela, uma família simples e misteriosa demonstra conviver em eterno conflito com um fantasma do passado, enquanto seus membros não medem esforços para alcançar seus objetivos. Costurado com simbolismos e sons, o roteiro provoca, mexe com a imaginação, e prende a atenção do início ao fim. Também no campo da ficção, a produtora Daniela Gracindo retorna ao festival onde conquistou dois prêmios com Leo e Bia, em 2010. Agora, com UM E OITENTA E SEIS AVOS (SP), o fato se repete com a conquista do Calunga de Melhor Direção de Arte (Patrícia Nunes) e Atriz Coadjuvante (Débora Duarte). Visualmente impactante, o longa causou inquietação com suas metáforas, seus personagens sem nome e uma protagonista vítima de um vazio existencial, revelada por uma inusitada e crescente perda de órgãos. Escrito, montado e dirigido por Felipe Leibold, o roteiro é ousado, mas se perde e causa um certo distanciamento. Ainda no campo da ficção, mas dramatizando uma luta jurídica real travada entre milhares de educadores sergipanos e governo do estado para manter direitos conquistados, ABRAÇO (BA) foi bancado pelo Sindicato dos Professores de Sergipe (SINTESE). Segundo trabalho do cineasta Deivisson Fiuza para a entidade, a opção do realizador de mesclar poucos atores e centenas de professores (não atores), que poderia ser um diferencial, não se mostrou positiva. Isso ficou evidenciado nos diálogos, muitas vezes artificiais, e a consequente falta de carga dramática. Contudo, a presença maciça de educadores na plateia, que votou via aplicativo, provou que a mobilização não só fez a diferença na vitória do passado, como no presente, garantindo ao título o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular. Além disso, a obra conquistou ainda os Calungas de Melhor Atriz (Giuliana Maria), Trilha Sonora (André Abujamra e Eron Guarnieri) e Menção Honrosa para as atrizes e professoras Izabel Santos e Rita Maia.
De volta aos documentários, O CORPO É NOSSO (RJ) ganhou o Calunga de Melhor Edição de Som (Simone Petrillo e Cristiano Scherer). Dirigido por Theresa Jessouroun (À Queima Roupa), o longa é um híbrido de documentário e ficção, que aborda a liberação do corpo da mulher brasileira ao destrinchar momentos históricos da música, da dança, moda, entre outros. Exercício de metalinguagem, a produção mistura entrevistas, comuns em documentários, com o drama do protagonista. Nele, jornalista (Renato Góes) escalado para fazer uma matéria especial sobre o feminismo esbarra, durante sua pesquisa, numa forte descoberta de seu passado. No desenrolar do trabalho investigativo, com direito a visita ao set de filmagem do “documentário”, ele reflete sobre suas atitudes e o machismo da sociedade apontado na obra. Ainda no gênero, o trabalho análogo ao escravo foi a mola propulsora de VIDAS DESCARTÁVEIS (RJ). Dirigido pelo argentino Alexandre Valenti e o brasileiro Alberto Graça (Beatriz), o longa mergulha em um caso ocorrido no ano de 2000, quando trabalhadores fugitivos da Fazenda Brasil Verde denunciaram os abusos à Polícia Federal, resultando na liberdade de outros submetidos ao crime hediondo. Fortemente estruturado em depoimentos e entrevistas, a denúncia é punjente, impactante, mas a narrativa perde parte de seu vigor, justamente, pelo excesso de “cabeças falantes” em um formato, praticamente, jornalístico. Vale ressaltar, no entanto, a coragem da denúncia e imparcialidade, ao escancarar que tal prática, infelizmente, acontece há vários governos e, pasme, não é exclusividade do campo, como revelam os casos urbanos envolvendo as marcas Zara e M. Officer, ocorridos debaixo de nossos olhos. Pela relevância do tema, a obra recebeu um Prêmio Especial do Júri.
* Roberto Cunha foi júri Abraccine no 23º Cine Pe – Festival Audiovisual.