Sete Anos em Maio, de Affonso Uchôa
“Por mais tentador que seja determinar o limite entre a ficção e o documentário, entre o controle e a espontaneidade, Sete Anos em Maio fascina justamente por esta zona intermediária na qual o espectador é convidado incessantemente a atribuir suas próprias leituras. O filme solicita um olhar ativo e empático, visto que a história deveria bastar por si só em suscitar indignação, tenha ela acontecido na vida ou não, do modo contado por Rafael ou em qualquer configuração análoga. Uchôa cria um dispositivo em que a narrativa se torna primeiro apenas imagem, sem explicações, e depois apenas explicações, sem as imagens equivalentes, cabendo ao público aproximá-los por meio de sua montagem mental. Se empregasse apenas um dos dois recursos, talvez fosse insuficiente (somente a reconstituição dos fatos, ou o depoimento), mas a junção de ambos provoca uma frutífera faísca na junção entre o áudio e o visual.”
Bruno Carmelo
“É notável como Uchôa articula esses sentimentos sobre uma comunidade atingida pela violência a partir de uma forma de encenar bastante contemporânea, entre o documentário e a ficção, dialogando e avançando em relação a seus trabalhos anteriores. Mas mais ainda me impressiona a maturidade da mise en scène, adotando um tom sóbrio que o aproxima de um certo minimalismo cênico. Essa sobriedade – que torna a mise en scène de Sete Anos em Maio bastante diferente do gesto espontâneo de A Vizinhança do Tigre – me parece aproximar, de formas misteriosas, o cinema de Uchôa com o de Pedro Costa. É certo que Sete Anos em Maio não é Vitalina Varela com seu formalismo milimetricamente marcado, mas há algo de muito comum que aproxima os dois filmes: a necessidade de falar do luto e de como a vida prossegue ainda assim, a de como usar a voz e o corpo dos personagens locais, mas de como a gramática do cinema pode tornar essa voz mais forte, ainda que assumindo toda a sua fragilidade. A incrível intimidade que Uchôa atinge em Sete Anos em Maio está proporcionalmente relacionada com sua consciência de que é preciso evitar a catarse ou o melodrama, que é preciso não apenas mostrar a dor, mas transformá-la, por meio do cinema, em instrumento de consciência de uma condição social desigual, para que, ainda assim, possamos sobreviver à barbárie.”
Marcelo Ikeda
DESTAQUES (em ordem alfabética)
Carne, de Camila Kater
“Carne é um curta-metragem sucinto e incisivo, múltiplo imageticamente, mas focado na costura dos depoimentos para consolidar o feminino enquanto entidade. A despeito das idiossincrasias de cada história, Camila sinaliza os nós que as dispõem como mais ou menos comuns a todas. Em ‘Ao Ponto’, Raquel Vigínia aponta à hiperssexualização de determinado biótipo, além de trazer à tona a vivência transexual e uma necessidade opressora de manter-se disciplinada para não ser jogada constantemente numa corda bamba. Em ‘Passada’, Valquiria Rosa se detém nos dilemas da menopausa, transitando pela ignorância masculina quanto a esse estágio. Camila se vale nesse segmento do stop motion com bastante habilidade, trabalhando principalmente a simbologia a partir de signos como vagina, seios e útero. Há uma progressão cronológica.”
Marcelo Muller
“Carne consegue abordar a temática feminina, em seus aspectos muitas vezes difíceis e dolorosos, com uma estética que alterna cores intensas e esmaecidas, conforme a técnica usada em cada sequência, sem deixar de trabalhar o humor. A ironia se torna um elemento que faz o espectador e a espectadora serem mais facilmente atingidos pela mensagem. Muitas vezes rindo de situações tragicômicas, nos damos conta de que elas não estão tão distantes como parecem.
Adriana Androvandi
Joderismo, de Marcus Curvelo
“A contribuição do cinema de Curvelo reside justamente em como seus filmes propõem, a partir de um olhar íntimo para as carências de um personagem individual, um certo exame das contradições e dos impasses de uma certa classe média brasileira. A crise individual do personagem acaba sendo um sintoma de uma crise maior – essa juventude sem rumo, que acaba se aproximando, quase meio “sem querer querendo”, para os rumos da direita conservadora e autoritária. Se, em seus primeiros filmes, como Feio, velho e ruim (2015), Joder era apenas um indivíduo solitário, quase um alter ego do próprio realizador, em Joderismo, o acréscimo do sufixo ismo sugere essa passagem cada vez mais consciente do indivíduo para a sociedade.”
Marcelo Ikeda
A Mulher que Sou, de Nathália Tereza
“O processo narrativo desvia do didático pelo minimalismo. Os diálogos, aparentemente banais, dizem o suficiente para que cada situação seja desenhada. Ela menciona brevemente a dor de cabeça, diante do corretor de imóveis deixa transparecer um vislumbre de excitação com a possibilidade da casa própria, com a filha faz pouco caso do desânimo dessa, e no jantar supostamente romântico, no qual fala de amor acima de todas as coisas com um homem que conheceu naquele mesmo dia, ambos sonham mais consigo mesmos do que um com o outro. Há pouco com o que se trabalhar. Se tal constatação soa intimidante, por outro lado abre um universo de possibilidades. Se é não apenas o que se foi, mas também – e até principalmente – aquilo que se almeja ser.”
Robledo Milani
Negrum3, de Diego Paulino
“Talvez fosse inevitável que Negrum3 se concluísse num número musical superlativo, mistura de ficção científica kistch com musicais da Era de Ouro, com Aretha Sadick descendo uma escadaria teatral e comandando a cena. Ela evoca líderes negros, estabelecendo uma ponte orgânica entre Martin Luther King, Malcolm X, Marielle Franco e Matheusa Passarelli, todo(a)s negro(a)s, todo(a)s assassinado(a)s por incomodarem as altas esferas do poder. Este é o percurso efetuado pelo curta-metragem: um resgate da ancestralidade aplicada ao pop contemporâneo, uma aplicação da herança política e militante negra na juventude brasileira atual, além de uma travessia do próprio cinema, entre o classicismo e o radical, ousado, fragmentado, colado, justaposto, ressignificado. Em conjunção com a sociologia contemporânea, o projeto percebe que o principal campo de batalha político e simbólico dos nossos tempos se encontra no corpo. Não é mais possível fazer cinema de vanguarda sem reinventar nossa percepção dos corpos.”
Bruno Carmelo
Quebramar, de Cris Lyra
“Pelo despojamento, Quebramar dilui a linguagem documental dentro do procedimento fictício das conversas entre amigas. As protagonistas explicam a decisão de manterem os cabelos curtos, as escolhas de roupas, as violências físicas e psicológicas sofridas em suas vidas. Os episódios narrados nunca transformam o drama numa denúncia, preferindo manter a leveza e o humor: elas falam como combatentes, com o devido distanciamento, e sabendo que se comunicam com outras pessoas de vivência semelhante. Esta é a vantagem do dispositivo de “filme de férias” encontrado pela autora: ela coloca suas personagens num ambiente seguro onde este tipo de história pode ser enunciado sem o peso de um testemunho diretamente às câmeras.”
Bruno Carmelo
Swinguerra, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca
“Em Swinguerra, a dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca mergulha no universo da swingueira, estilo musical que mistura funk, brega, pagode, batidão e arrocha, e acompanha grupos de dança. Mistura de instalação e cinema, a narrativa vai se estabelecendo por entre coreografias. Estereótipos vão tombando frente à contradição das letras musicais. Não há gênero, raça ou padrão, todos estão juntos em um mesmo enfrentamento. Enfileiradas em formação militar, pessoas trans e cis saúdam a bandeira e gritam: ‘Prazer! Estou de volta!’ É a força da arte contra todo o apagamento sistêmico, o extermínio e a intolerância; a ocupação de um Brasil que insiste em não dar espaço a todos.”
Cecilia Barroso
Tea for Two, de Julia Katharine
PODCAST
Feito por elas, com Isabel Wittmann
Teoria sobre um Planeta Estranho, de Marco Antonio Pereira
“A história de amor é narrada de forma absolutamente envolvente e original. Inventividade parece ser a tônica da prática artística de Cordisburgo. Se na obra-prima de Guimarães Rosa, Riobaldo faz (ou não) um pacto com o diabo, no peculiar curta de Marco Antônio Pereira, seu protagonista tem um encontro com Deus. Deus que se apresenta de forma insolitamente material como proprietário de uma loja de bugigangas onde nada está à venda, tampouco precificado. O desolado frentista é quem cobra explicações pela infelicidade que o tolheu em um dia de chuva torrencial. É filosófico. As imagens do casal correndo na chuva antes do incidente (e tantas outras) são cheias de graça e beleza. Elas se repetem em uma montagem frenética, são memoráveis e simbólicas. Marco Antônio Pereira, músico em essência, as enriquece sonoramente, concerta uma linguagem para sua protagonista com dificuldades auditivas e alcança os tons que vão ressoar no público.
Carla Oliveira, Accirs
Tudo que é Apertado Rasga, Fabio Rodrigues
“As duas partes do filme dedicam-se a materialidades diferentes das ausências negras nas imagens e sons. Na primeira, ‘O aperto’, o filme busca nas entrevistas televisivas de Zezé Motta, Grande Otelo, Ruth de Souza, entre outras atrizes e atores negros os testemunhos dessa falta. A repetição das histórias, piadas, comentários, denúncias e reclamações sobre a invisibilidade e a sub representação negra no cinema e na mídia nacional, mostra o caráter verborrágico da televisão no regime de produção de imagens e sons. Tudo é dito. Tudo é repetido. Mas ninguém ouve. E no programa seguinte Zezé Motta repetirá a mesma piada sobre fazer papel de empregada, com novos risos da plateia.”
Kênia Freitas