44ª Mostra SP: As diferentes encarnações do conceito de família

Francisco Carbone*

Ao observar o recorte ao que o júri Abraccine teve à sua disposição para julgamento nessa 44ª Mostra SP, que tradicionalmente observa a fatia “revelação nacional” da edição – ou seja, os filmes de diretores estreantes em longa metragem – alguns temas podem vir facilmente à tona, mas há uma camada temática que se sobressai quando a programação completa é refletida na lista nacional. Ainda que seja aparentemente uma fatia ampla de olhar, os conceitos de organização familiar apresentados tanto em alguns filmes brasileiros quanto entre as melhores produções estrangeiras deixam evidentes que uma delicada nova textura foi assimilada entre tantos filmes, criando uma interligação invisível que exploram algum toque rejuvenescido em suas narrativas.

Não são apenas as tradicionais famílias, funcionais ou disfuncionais, que circularam nos muitos títulos conferidos entre os dias 22 de outubro e 4 de novembro últimos. Essa definição mais concreta às visões que o cinema costuma abordar a respeito dos invólucros emocionais por trás de relações consanguíneas – ou não. Família nem sempre é a aquela no qual nascemos, mas algumas vezes ela absorve um processo de escolha dos seus integrantes.

No corpo de títulos na qual o júri tinha responsabilidade, salta aos olhos um título, Irmã, e os motivos são muito óbvios, dentro do escopo que escrevo. Dirigido por Luciana Mazeto e Vinícius Lopes, o longa gaúcho renova a relação entre duas irmãs muito jovens (16 e 11 anos) através do fantástico, quando ambas saem em busca do pai que não veem há muitos anos. Através de uma viagem de aparência comum, o filme gradativamente agrega um teor surreal e mágico a um acerto de contas que poderia ser tradicional, mas que o filme especialmente trata de forma extraordinária, revelando o que há de especial em uma fase da vida de transformações profundas, e que aqui extrapolam o tátil até encontrar uma porção inacreditável, para conectar o que há de simples.

Enquanto em Irmã tratamos os reencontros familiares através do inusitado e externo, os valores recônditos esperam ser revelados em Valentina. Cássio Pereira dos Santos investiga os valores esquecidos entre pai e filha, que precisam reaver sua relação apagada; já com sua mãe, Valentina tem uma relação oposta, fortalecida pelas adversidades que as cercam. Ao se debruçar sobre uma adolescente em redefinição de gênero, Valentina, filme e personagem, trazem ao cinema nacional um tema mais que quase inédito em sua seriedade e sensibilidade, mas literalmente com uma pauta de hoje, 2020. Além disso, o filme mostra a diferença entre os laços de sangue e a necessidade de formar novas famílias durante nossa formação pessoal.

Ainda entre os nacionais, a cineasta Dainara Toffoli investiga o nascimento de uma família através de uma gravidez não-desejada, e o posterior esfacelamento da mesma nas mãos do destino em Mar de Dentro, um filme que invade a maternidade sob um viés que raras vezes o cinema brasileiro penetrou. Um olhar sem retoques e sem artificialismo sobre um momento único que muitas vezes é edulcorado, e aqui é abordado com impressionante realismo. Retrato de uma família tão típica por ser tão centralizada em uma única figura enquanto provedora material e emocional, o filme encontra na entrega de Monica Iozzi uma abordagem fidedigna sobre o “exército de um homem (no caso, mulher) só” que são muitas famílias.

Na seara internacional, as famílias também tiveram múltiplas encarnações, que vão desde o olhar documental em 17 Quadras até o olhar fantástico em Meu Coração Só Irá Bater se você Pedir, ou seja, de um pólo a outro a família foi o centro nervoso de narrativas cujas pluralidades estéticas e narrativas desbravaram o cinema.

No premiado documentário de Davy Rothbart, acompanhamos o olhar da própria família ser dividido com o espectador. Os Sanford são agrupados pelo diretor que monta três décadas de material filmado pelos próprios e devassam não apenas essa família em particular, mas todo o sistema de famílias negras excomungadas pelo racismo, estrutural e factual, criando uma parábola não-intencional sobre a História mais cruel, aquela que persegue, diminui, mata por uma sucessão de gerações contínuas em moto perpétuo. Ainda que em seu seio haja amor e acolhimento, o olhar sobre a família que o diretor Rothbart abre reflexão aqui é a de uma cruel perseguição histórica que resiste a violência e segregação em seus núcleos, que teimam em resistir.

No extremo oposto da narrativa, Meu Coração Só Irá Bater se você Pedir transcreve os laços familiares mergulhados no terror, que podem ser metafóricos para compreender o desejo de liberdade em meio ao horror da rotina. Ao espelhar de maneira gráfica as muitas projeções que um trio de irmãos realizam internamente e o sonho de escapar da pressão de se doar para o próximo, o diretor Jonathan Cuartas reveste de vampirismo a dependência emocional, e compreende que também podem ser doentias e sufocantes as obrigações familiares, a ponto de sufocar os sentimentos e as relações de afeto entre irmãos; família também deteriora a si e a seus integrantes.

Família também é sacrifício, dizem Pari e Pai. O primeiro é dirigido Siamaki Etemadi, iraniano residente em Atenas, Grécia, que fala em seu filme sobre uma busca familiar que se torna em emancipação pessoal, com os percalços se transformando em obstáculos para conhecer a si mesmo – no caso, uma mãe, a personagem-título, perdida atrás do próprio filho e que não percebe crescer em si uma necessidade pessoal de autoconhecimento; é um modo de observar como a família não pode nos fazer abdicar de nossa própria história.

No sérvio quase homônimo Pai, essa busca familiar não se resume a reaver um filho, mas todo um conceito de família que o Estado quer pulverizar. Também inserido num conceito de jornada pessoal assim como Pari, há uma espécie de solidão por trás da narrativa para encenar a via crucis da mais desvelada figura paterna que só quer ter os filhos de volta, enquanto o mar de burocracia tenta impedir o mesmo e decretar a dissolução de todo um núcleo.

Um outro olhar bifurca os limites entre a ficção e o documentário, agrupando suas características para conceber um híbrido dos mais criativos, e que investiga no campo e no contracampo as definições familiares. O cineasta Dani Rosenberg disseca a estrutura cinematográfica padrão ao envolver sua própria família em um projeto, em A Morte do Cinema e do Meu Pai Também. Não há linha que separe vertentes, como se sua história pudesse ser encenada e reencenada continuamente, embaralhando até mesmo a própria imagem e oferecendo ao espectador múltiplas encarnações de um mesmo grupo de pessoas – no caso, a si mesmo e aos seus. O resultado fascina e confunde, como um quadro em 3D observado só por um ângulo.

O filme de Rosenberg e o de Haroldo Borges, Filho de Boi, colocam a família e a arte em confronto, para gerar imagens e reflexão. Qual o limite do respeito à nossa própria História precisa ser assegurado, independente da primazia que o cinema apresente em tela? João, no sertão da Bahia, e Dani, em Tel Aviv, anseiam pela arte, e a mesma é filmada como uma barreira intransponível que separa seus sonhos da sua realidade familiar. Os dois personagens acabam tomando rumos diferentes na sua relação com a arte que os chama, porém ambos resistem em meio à adversidades muito particulares, deflagrando crises pessoais e familiares.

A 44ª Mostra SP, ainda que não intencionalmente, poderia e absolutamente teve um recorte bem diferenciado para inúmeros olhares, que agregaram suas subjetividades ao recorte de 200 filmes projetado para o público em ano tão complexo para o cinema e para o mundo, em todas as frentes. Que um deles tenha sido o lugar onde todos tiveram que se abrigar nessa temporada, ou o exato outro extremo, um exemplo de resistência e ausência nesse ano, é sintomático para exemplificar talvez o ponto mais crucial dos últimos 8 meses; por onde andam as famílias e como podemos olhar para elas a partir de 2021?

*Francisco Carbone foi membro do Júri Abraccine da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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