Foi um rio que passou em 2020
Juliana Costa*
Um rio que atravessa gerações, sobre o qual às margens nasceu uma cidade, percorre as veias da população negra de São Paulo. Esta é uma das perspectivas que Viviane Ferreira aborda ao “escovar a história a contrapelo”, como dizia Walter Benjamin, em Um Dia com Jerusa (2020). O filme, que integrou a seleção do júri ABRACCINE da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, composta por primeiros filmes longa-metragens de cineastas brasileiros, foi exibido pela primeira vez no 23º Festival de Tiradentes, realizado em fevereiro deste ano (ou em alguma outra vida, já não temos mais tanta certeza). Um júri da crítica é sempre assombrado pelo desafio de premiar uma só obra, sem a chance de diluir a premiação em várias categorias, destacando um conjunto de filmes significativos. Se fosse o caso, certamente Um Dia com Jerusa, além de alguns outros, estaria no rol de filmes que lançam mão da invenção, da imaginação, da uso criativo da linguagem para estabelecer seu universo particular.
No filme, Silvia (Débora Marçal), visita Jerusa Anunciação, interpretada pela monumental Lea Garcia, no dia de seu aniversário, para fazer uma pesquisa de consumo. No sobrado de Jerusa, elas passam o dia revisitando memórias – das personagens e da cidade de São Paulo-, trocando experiências e construindo uma relação de afeto. Ferreira cria para as suas personagens um universo doce, como foram um dia as águas do rio Saracura que atravessa a casa de Jerusa, em referência à histórica e determinante presença negra na construção da cidade de São Paulo – esta relação entre a população negra e os rios em São Paulo também é mencionada em Todos os Mortos, de Marco Dutra e Caetano Gotardo, outro lançamento de 2020. O rio é generoso, alimenta as margens, mas transborda, inunda, quando é maltratado. Ferreira opta neste filme pelo alimento e a generosidade (talvez cansada de ver e narrar a inundação), embora as opressões e a violência sofrida pela população negra também estejam presentes. Um Dia com Jerusa respira liberdade nas cenas externas e aconchego nas internas. Uma atmosfera de proteção paira sobre o filme, em relação à história, às personagens é a própria narrativa. A escrita de uma história afirmativa, que reivindica a construção de um país e de um modo de contar, ao invés da destruição estética, institucional e de linguagem característica do melhor cinema político do século XX. O rio de Jerusa abriga, acalenta e nutre, é didático, comunicativo, agregador. Na rua, a liberdade do louco e das relações comunitárias, em casa, o mergulho interno do autoconhecimento, o reconhecimento dos laços ancestrais.
Talvez a doçura dessas águas pareça um tanto excessiva, conformada. Talvez o curso do rio de Ferreira queira mesmo mais embalar do que nausear. Impossível não lembrar de Café com Canela (2017), de Glenda Nicácio e Ary Rosa, que tem também em sua base de realização os laços comunitários e de pertencimento, o cuidado e o afeto. Enquanto Café com Canela arrisca em relação à estranheza e deixa espaços abertos ao tratar do luto da protagonista, a certeza das metáforas que Um Dia com Jerusa lança mão de forma abundante não deixa tanto lugar para a ambiguidade. Aqui o discurso é flecha, sabe onde, como e quem atingir. Quer e sabe contar uma história. Um pouco mais titubeante, com o charme de quem tateia, mas com igual determinação, Chico Rei Entre Nós (2020), de Joyce Prado, outro longa-metragem estreante da Mostra de São Paulo, também propõe uma escrita histórica em direção ao imaginário. O documentário parte da figura de Chico Rei, conhecido pela tradição oral mineira, Rei do Congo escravizado pela Coroa Portuguesa, trazido ao Brasil no século XXVIII, onde consegue comprar a sua liberdade e a de outros negros na região. Se no filme de Ferreira, a história se desenha do imaginário de Jerusa aos fatos, no filme de Prado, partimos dos fatos (de uma história oral) para chegarmos a um imaginário coletivo. Em determinado momento do filme, os personagens põe em dúvida a “veracidade” da história de Chico Rei, mas o que o filme apresenta é o imaginário de liberdade e de força coletiva que a narrativa sustenta. Também como um rio, a presença do personagem de Chico Rei percorre a história agregando e alimentando em suas margens o sentimento de pertencimento.
O curso da água doce ainda percorre ao menos dois dos maiores filmes de 2020: Luz nos Trópicos (2020) e É Rocha, é Rio, Negro Leo (2020), ambos de Paula Gaitán. Enquanto o rio-fluxo de pensamento de Negro Leo arrasta o que vê pela frente, apresenta cachoeiras, enxurradas e curvas sensuais, Luz nos Trópicos persegue um rio que cava e contém a história das américas. O rio de Jerusa compõe esta malha fluvial narrativa brasileira, tão rica e diversa quanto maltratada e apagada ao longo do tempo. Certamente o povoamento destes leitos estabelece outras e variadas relações com a nossa memória, com as nossas histórias e com as diferentes formas de habitar o mundo.
*Juliana Costa foi membro do Júri Abraccine da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo