Paulo César Saraceni (1933-2012)

Por Luiz Zanin, no seu blog no Estadão, em 14/04/2012

Morreu hoje, aos 78 anos, o cineasta carioca Paulo Cezar Saraceni, um dos nomes mais importantes do Cinema Novo. Sarra, como os amigos o chamavam, estava internado no Hospital Federal da Lagoa, onde se tratava das consequências de um AVC sofrido no ano passado. Morreu de falência múltipla de órgãos.

Com seus dois primeiros longas metragens, Saraceni deixa sua marca decisiva na cultura dos 1960. Não se compreende essa época sem se passar por Porto das Caixas (1962) e O Desafio (1965). Um, fincado no terreno pessoal, dos afetos; outro, no político, e no social. Ambos mostravam um cineasta cheio de energia, ideias e disposição para a invenção formal.

Em 1968, dirigiu uma pouco convincente adaptação do romance de Machado de Assis Dom Casmurro, roteirizado pelo casal Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes. Nem mesmo essa origem ilustre – o maior escritor brasileiro e dois dos melhores intelectuais patrícios – conseguiu salvar o filme. A protagonista Isabella, à época mulher de Saraceni, não ajudava no papel de Capitu, a heroína dúbia de Machado. Não tinha physique Du role. Dificilmente nela se via a moça esquiva, ambivalente, de “olhos de ressaca” de que fala Machado. Da mesma forma, o filme não tem de Dom Casmurro o maior mérito da obra, a sua ambiguidade permanente – a impossibilidade de saber com certeza se Capitu traiu Bentinho com Escobar ou se tudo não passa de distorção causada pelo ciúme doentio do narrador.

Por outro lado, Saraceni movia-se com familiaridade e acerto no universo de outro escritor, o mineiro Lúcio Cardoso, de quem adaptou o romance mais famoso, Crônica da Casa Assassinada (reduzindo o título para Casa Assassinada), em 1970. Carlos Kroeber fazia o papel principal.

Saraceni voltaria, quase três décadas depois ao universo decadente e atormentado de Cardoso com O Viajante (1999), adaptado de um romance inconcluso do escritor mineiro. No filme, Marilia Pêra tem um dos seus grandes papéis no cinema, como a viúva que sacrifica do próprio filho doente em nome do amante. É dos melhores filmes da época do cinema brasileiro conhecida por Retomada, quando a cinematografia renascia do estrago causado pelo governo Collor. É também um dos títulos mais intensos da carreira de Saraceni.

Uma trajetória cuja importância já vinha dos tempos do curta-metragem quando, com Arraial do Cabo (1960) inspira toda uma estética ainda em gestação, e que viria a ser o Cinema Novo. Arraial do Cabo e outro curta-metragem, Aruanda, do pernambucano radicado na Paraíba, Linduarte Noronha cumpriram esse papel de abridores de caminho. Quis o destino que esses dois pioneiros, Linduarte e Saraceni, morressem no mesmo ano, com a diferença de poucos meses.

Cineasta de filmografia pouco numerosa, Saraceni ainda fez Amor, Carnaval e Sonhos (1972), Anchieta José do Brasil (1977) e Ao Sul do Meu Corpo (1982), este baseado no conto de Paulo Emílio, Duas Vezes com Helena, texto depois refilmado por Mauro Farias. Natal da Portela (1988) é uma interessante cinebiografia do famoso bicheiro carioca, interpretado por Milton Gonçalves. O filme, apesar da concepção original e de alguns momentos inspirados, é muito irregular.

Em 1993, Saraceni lançou o livro Por Dentro do Cinema Novo, no qual narra sua trajetória cinematográfica e pessoal. Como um coisa se confunde com a outra, a obra despertou polêmica. Rapaz bonito e atlético quando jovem (chegou a jogar no Fluminense), Saraceni era um assumido homme à femmes. Não escondia suas conquistas e, por isso, o livro provocou enorme tititi quando lançado. Prestou-se mais atenção ao que ele continha de revelações de alcova do que de revelador sobre os bastidores do Cinema Novo. É um documento de época importante, digno de ser relido com olhos menos moralistas.

Os destaques da obra de Saraceni são Porto das Caixas, com sua estética bastante moderna, retratando a solidão e a carência que levam ao crime, inspirado numa história real da crônica policial e baseado num roteiro original de Lucio Cardoso. A música de Tom Jobim completa o ambiente muito bem composto. Com as outras duas incursões à obra de Lucio Cardoso, A Casa Assassinada e O Viajante (ambos também musicados por Jobim) forma o que  chamou de Trilogia da Paixão. São três exemplares perfeitos da imersão de um homem lúcido nas contradições e paroxismos do sentimento humano. Podem ser “lidos” como obra única.

Já com O Desafio (1965), Saraceni reflete sobre a posição do intelectual diante do golpe de Estado de 1964 através do personagem do jornalista interpretado por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha. É obra a ser cotejada (não comparada, por favor) a Terra em Transe, de Glauber Rocha, que viria dois anos depois, em 1967. Ambas se complementam no pasmo como na tentativa de compreensão do golpe que instaurou a ditadura no País.

Alguns dos seus últimos trabalhos foram no campo documental. Em 1996 terminou Bahia de Todos os Sambas, que fora iniciado por Leon Hirszman e jamais terminado, com imagens de Caetano, Gil, João Gilberto, Gal e Bethânia à Itália. Em Folia de Albino – a Banda de Ipanema (2003), Saraceni faz um registro doméstico de seu amigo Albino Pinheiro e das folias ipanemenses, que faziam a sua alegria. Simpático.

O último trabalho de Paulo Cezar Saraceni foi O Gerente, adaptação de um conto de Carlos Drummond de Andrade, cujo personagem tem o estranho hábito de morder mulheres. Permanece inédito no circuito comercial.

Com seu talento e inspiração, talvez Saraceni, em outras circunstâncias, poderia ter produzido obra mais extensa. Mas os entraves da produção cinematográfica no Brasil, aliados a circunstâncias da vida pessoal não permitiram. Mas por que falar do que poderia ter sido e não foi? O que ele deixou vale. E muito.

Principais filmes

Arraial do Cabo (1959/60). Curta-metragem. Documenta a vida dos pescadores, numa época de transformação que ameaça a sua sobrevivência

Porto das Caixas (1962). Inspirado no chamado “crime da machadinha” conta a história de uma mulher que mata o marido em cumplicidade com o amante. Com Irma Alvarez, Reginaldo Faria

O Desafio (1965). Após o golpe de 1964, o jornalista Marcelo se sente impotente diante dos acontecimentos. Atravessa também uma crise amorosa. Com Oduvaldo Viana Filho e Isabella.

Casa Assassinada (1970). Chegada de Nina, uma jovem carioca perturba o marasmo doentio de uma família em Minas. Com Carlos Kroeber e Norma Bengell.

O Viajante (1999). Um homem de passagem seduz uma viúva de meia-idade que cuida do filho, nascido com problemas mentais. Com Marilia Pêra e Jairo Mattos.

Saraceni é homenageado no Festival de Tiradentes

Por Paulo Henrique Silva, do jornal Hoje em Dia, em 03/01/2011

Com a Mostra de Cinema de Tiradentes cada vez mais focada na produção independente brasileira atual, servindo de plataforma de lançamento para uma nova geração de realizadores, o anúncio de Paulo Cesar Saraceni como um dos homenageados da 14ª edição (programada para começar no próximo dia 21) faz do veterano diretor – fundador do Cinema Novo e autor da célebre frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” – um nome aparentemente oposto à direção curatorial dos últimos anos.

Saraceni não é jovem (tem 77 anos, um dos cineastas mais antigos em atividade, ao lado de Nelson Pereira dos Santos), mas o espírito rebelde e a ousadia continuam os mesmos de 50 anos atrás, quando rodou o seu primeiro longa-metragem, Porto das Caixas (1962). Pelo menos é o que garante o diretor carioca, que enxerga em seu último filme, o ainda inédito O Gerente, baseado em conto do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade, um hino de rebeldia ao cinema de mercado.

“(Este perfil da Mostra) Tem tudo a ver com o filme. Sempre fui meio rebelde em relação ao mercado. Meus trabalhos são vistos como filmes de arte, ligados à poesia. O Gerente é ainda mais. É pura poesia, o que faz dele uma obra difícil”, observa Saraceni, já respondendo a razão de guardar este roteiro por seis décadas. Ele só o tirou da gaveta após ser homenageado pelo Programa Petrobras Cultural, em 2007, e receber patrocínio para a produção de um longa à sua escolha.

O primeiro tratamento da adaptação foi escrito em 1950, assim que deixou o time juvenil do Fluminense para investir no cinema, curiosamente por influência de um diretores do clube, o escritor e crítico Octavio de Faria. “Foi a primeira coisa que fiz depois de largar o futebol. Na época eu ia muito ao cinema e frequentava o Chaplin Club, fundado por Octavio. Eu dava a minha opinião sobre os filmes que via e aprendia muito com ele. Foi o que me levou para o cinema”.

Capitaneada pela exibição de O Gerente (imagem ao lado), a homenagem da mostra mineira resgata, de certa maneira, o fogo dos jovens realizadores, ao contemplar um Saraceni “em início de carreira”. Ele mexeu no roteiro antes de entrar no set, mas confessa que foi novamente envolvido pela paixão do fazer cinematográfico, como se fosse um estreante. Tanto é assim que admite um grande nervosismo, não vendo a hora de o filme ganhar as telas do Cine-Tenda, em Tiradentes.

“Acabei o filme há seis meses e adorei tê-lo feito. Fiz um trabalho marcado pela afetividade, chamando meus amigos para atuar, como Othon Bastos, Ney Latorraca, Joana Fomm, o escritor Ferreira Gullar e o compositor Chico Buarque”, destaca. A história acompanha Samuel, um funcionário de banco que tem obsessão por mãos. Quando senhoras da alta sociedade do Rio de Janeiro têm seus dedos decepados, ele se torna o suspeito número um.

Drummond foi uma das primeiras descobertas literárias de Saraceni, lendo o poeta de Itabira desde criança. Aliás, ele faz questão de frisar que possui uma forte ligação com a tradição mineira, começando pela mãe nascida em Juiz de Fora. “Minas foi fundamental em minha vida. Adaptei outros três livros de um escritor também mineiro, o Lúcio Cardoso, entre eles O Viajante, que foi filmado numa cidade maravilhosa chamada Ubá”, assinala.

Lançado em 1998, O Viajante era seu último longa de ficção. Depois ele ainda dirigiu o documentário Banda de Ipanema – A Folia de Albino Pinheiro (2000). Seu trabalho mais recente é o curta Casimiro de Abreu (2007). No currículo de Saraceni estão filmes que alavancaram o movimento do Cinema Novo, como Integração Racial (1964) e O Desafio (1965). Ele continua casado com a atriz Ana Maria Nascimento Silva, que vem atuando em seus filmes desde Anchieta, José do Brasil (1977).

A trilha sonora traz duas músicas de João Gilberto, “Insensatez” e “Louco”, apresentadas em 1983 durante uma apresentação em Roma, que reuniu vários outros artistas baianos, como Dorival Caymmi e Caetano Veloso. O espetáculo foi registrado por Saraceni, gerando o documentário “Bahia de Todos os Sambas”. O cantor chegou a propor que fossem feitas novas gravações em estúdio. “Mas como tivemos problemas de dinheiro para acabar o filme, ficaria muito caro e acabou não acontecendo”.

Animado pelos resultados de “O Gerente”, o cineasta já prepara um docudrama sobre a geração do Chaplin Club, escrito ao lado de Gustavo Dahl, seu colega de Centro Experimental de Cinema em Roma, em 1960. Saraceni não tinha se dado conta que a sua formação italiana, onde encontrou amigos como Bernardo Bertolucci e Marco Bellochio, está completando cinco décadas. “Puxa, faz tempo! O Centro Experimental foi fundamental na minha carreira”, diz.

Outro aniversariante cinquentão, o Cinema Novo, provoca no realizador uma reflexão sobre a produção brasileira atual, em que “falta um movimenta de geração”. Ele gosta dos filmes atuais, especialmente os dirigidos por filhos de seus companheiros de Cinema Novo, como Eryk Rocha e Alice de Andrade (da prole de Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, respectivamente), mas hoje sua preocupação maior é a restauração de sua filmografia. “Estão até bem conservados na Cinemateca Brasileira, mas é preciso preservá-los neste suporte novo que é o digital”.

Classicos de Saraceni reforçam a poesia do cinema

Por Heitor Augusto, no Cineclick, em 25/01/2011

É quase uma covardia emparelhar Porto das Caixas com qualquer outro filme exibido na Mostra de Cinema de Tiradentes. Produzido em 1962 e premiado em Cannes dois anos depois, o filme de Paulo Cezar Saraceni é uma poesia em torno da liberdade e da prisão.

Embalado na trilha sonora de Antônio Carlos Jobim, o filme se guia pelo fluido de sentimentos das personagens. Crueldade, frieza, amor, poder, dominação, desespero, sedução, manipulação entram e saem do filme.

O cenário é Porto das Caixas, região de Itaboraí, localidade importante do Rio de Janeiro do século 16. No filme, um lugar decadente que abriga seres humanos capazes de atos que fogem da dignidade. Lá, perto da linha de trem, vive um casal: ela (Irma Alvarez) é uma mulher oprimida, mas com ganância de viver; ele, o marido (Paulo Padilha) que bate e vê sua esposa escapar-lhe pelos dedos.

Num filme correto, o fotógrafo auxilia o diretor a realizar os planos e criar uma ambiência de imagem. No caso de Porto das Caixas, não seria exagero afirmar que Mário Carneiro é cocriador ao lado de Saraceni. O trabalho belíssimo de iluminação, que joga os personagens num escuro da alma avassalador, emana uma falência humana paralela à pulsão pela vida.

Liberdade e prisão andam parelhas nesse filme. Chegar a um estado isento de coação pode implicar ultrapassar a linha da dignidade ou um criar uma prisão. É como se o Raskolnikov de Crime e Castigo, de Doistoiévski, fosse dividido entre a personagem da mulher e a do amante (Cláudio Cavalcanti).

Sem contar a relação magnética que Irma Alvarez e Paulo Padilha, protagonistas do filme, têm no longa, quase criando faíscas quando estão juntos disputando o poder do casal. Porto das Caixas não é nada menos que lindo!

Essa beleza, aliás, já é enunciada no primeiro curta-metragem de Saraceni, realizado em parceria com Carneiro, Arraial do Cabo (1959), também exibido na Mostra de Tiradentes. O documentário trata da interferência de uma fábrica de sal (inserida na política do Estado Novo para fomentar a industrialização brasileira) na rotina de pescadores da região de Cabo Frio.

Um documentário filmado quase como ficção, fundado nos contrastes do humano e máquina, natureza e indústria, beleza e feiura (remetendo à arquitetura opressora de Metrópolis). Um fluxo de poesia numa região prestes a sofrer uma intervenção direta em suas características.

Na entrevista para o catálogo de Tiradentes, Paulo Cezar Saraceni revela a força de Mário Peixoto em Arraial do Cabo. “Limite [de Peixoto] foi uma inspiração para meu filme, nós queriamos fazer um filme assim, retomando uma vontade, um certo movimento no cinema brasileiro. Nós ficávamos muito apaixonados pelo texto do Limite, e também pelo texto do Mári Peixoto dizendo que o Eisenstein tinha adorado o filme. Mas o Cinema Novo tinha essa vontade de falar da identidade brasileira”.

A chave perfeita para se aproximar do filme de Saraceni. “Minha vontade então já era juntar o Cinema Novo com Limite”. Arraial do Cabo carrega a necessidade cinema novista de falar sobre um Brasil de verdade com a poesia da pura imagem do clássico de Peixoto.

Em tempo: quem quiser assistir aos dois filmes de Saraceni, basta entrar em contato com a Cinemateca Brasileira, que conserva as duas produções em seu acervo.

Porto das Caixas

Por Adolfo Gomes, publicado no Contracampo, em janeiro/2012

Não é simplesmente uma questão de imagem. Antes seria, sobretudo, uma motivação musical. Bem que poderia ter sido transfigurar a realidade e tudo o que vemos por meio da trilha de Antonio Carlos Jobim o que levou Paulo César Saraceni a filmar Porto das Caixas. Do contrário, ainda hoje, pareceria extravagante a ideia de realizar uma adaptação, por mais livre que seja, do livro clássico de James M. Cain, O carteiro sempre bate duas vezes. A obra literária já havia rendido, pelo menos, uma versão relevante para o cinema, O Destino bate à sua porta (1946), de Tay Garnett, estrelada por John Garfield e Lana Turner; e, no contexto do cinema (novo) brasileiro dos anos 1960, seria das matrizes mais impensadas – para não dizer “proibida” pela patrulha ideológica da época. É claro que a transposição para a zona ferroviária do interior fluminense; com sua paisagem árida e humanamente desoladora; o viés social e até feminista; tudo isso impresso por Saraceni à história justificariam, conforme um projeto de cinema em construção, a filmagem.

Reconhecemos também a força expressiva dessa figura trágica imantada por Irma Álvares, uma mulher que trai, seduz e mata para fugir ao determinismo ambiental em que está enredada – e temos a impressão de que sua dor e desespero ultrapassam o mero retrato social, ou seja, não é estritamente a penúria em que vive o que lhe impulsiona a fazer de tudo para escapar dali. Nada há na personagem de Alvarez da vamp ou femme fatale, como poderiam sugerir suas origens literárias e até cinematográficas. Dela não sentimos pena, nem antipatia, nós a entendemos. Saraceni não faz juízo de valor, muito menos é indiferente ou mira a indiferença. O filme não comporta teses e o próprio ponto de vista do cineasta diante do que filma parece fugidio, em formação. Ou melhor, permeado pelo espírito de quem quer ver e descobrir para além das planificações e conceitos prévios.

E neste sentido, voltemos à musica. A composição de Jobim reconfigura aquele espaço, nos guia quando o negrume cobre o rumo dos trilhos e, desconcertados, já não sabemos para onde ir com nosso olhar (se para o entrecho noir ou para o puro documentário), preenche aquela casa vazia, logo na abertura do filme, modula a melancolia e solidão que presenciamos à beira da ferrovia, e realça a sensação de imobilidade dos personagens centrais, não importando quantas viagens façam (a trabalho) ou sonhem fazer (por dilação).

Porto das Caixas prenuncia a trajetória, ora errática, ora oficiosa – a láurea de precursor do Cinema Novo que sempre coube a Saraceni. De todos os caminhos possíveis, escolheu os menos heróicos. Sem revolução, utopia ou alegorias. Só o cinema. Musicalmente, o cinema. É o cineasta mais só do que viria a se tornar o movimento cinemanovista. A última imagem deste filme, não deixa dúvidas. Todos pagamos um preço por aquilo que nos é irremediável ser.

Paulo Cesar Saraceni (1933-2012)

Por Humberto Pereira da Silva, publicado em Digestivo Cultural, em 25/04/2012

Há três nomes essenciais quando se tem em vista o contexto e situação histórica que deram origem ao Cinema Novo: Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Paulo César Saraceni. Desde Rio, 40 graus (1955), Nelson desponta como a figura impulsionadora do movimento: um pouco mais velho, torna-se uma espécie de guru da nova geração; já Glauber, principal agitador e idealizador, chamou a atenção internacional com seu primeiro longa metragem, Barravento (1962), premiado no Festival de Karlovy Vary, antiga Tchecoslováquia. Nesse mesmo momento, outros nomes merecem atenção – Ruy Guerra, Cacá Diegues, Leon Hirszman e Joaquim Pedro Andrade -, mas a Saraceni, entre os amigos conhecido como Sarra, deve-se dar um destaque especial. Como se pode ver nos arquivos de Glauber Rocha, disponíveis no Tempo Glauber, e no livro de memórias de Sarra, “Por dentro do Cinema Novo” (Nova Fronteira, 1993), é dos papos entre ele e Glauber nos bares da zona sul carioca ou em Salvador, no início dos anos 60, que se pode ter em mente o que os jovens cineastas queriam fazer para revolucionar o cinema brasileiro.

Em 1959, no apartamento da artista plástica Ligia Pape, foram exibidos para uma plateia seleta, que incluía artistas como Amilcar de Castro e Helio Oiticica, os primeiros filmes dos dois: O Pátio, de Glauber, e Caminhos, de Sarra. Foi nessa sessão que Reinaldo Jardim, editor do Caderno de Cultura do Jornal do Brasil, propôs abrir espaço para os jovens cineastas e publicar um manifesto com as novas ideias que traziam. A redação do manifesto acabou na intenção, mas em termos práticos é a partir desse incentivo que Glauber volta para a Bahia e filma Barravento na praia de Buraquinho, enquanto Sarra vai para o Arraial do Cabo e realiza o documentário Arraial do Cabo(1959).

Com esse filme, Sarra ganha uma bolsa para estudar no importante Centro de Cinema Experimental em Roma. Ele leva o filme consigo e o apresenta no Festival de Santa Margherita. “Arraial” causou impressão muito favorável, com suas imagens de forte apelo social, e revelou o que passou a ser em seguida chamado como Cinema Novo. Estimulado pelos debates e discussões suscitadas pelo filme, na volta ao Brasil ele fez Porto das Caixas (1962), Integração Racial (1964) e, um ano após o golpe de 64, O Desafio.

Mesmo tendo aberto as portas para o Cinema Novo na Europa, ao contrário de Glauber, Nelson ou Ruy Guerra, esses filmes de Sarra, feitos em sequência, não foram exibidos em festivais importantes (barrado por Carlos Lacerda, então Governador da Guanabara, O Desafio foi apresentado clandestinamente no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, em 1965). Não tiveram, portanto, a ressonância de Deus e o Diabo (1964), Vidas Secas (1963), Os Fuzis (1964), respectivamente, que foram exibidos em Cannes e Berlim (Na Berlinale, o filme de Ruy Guerra foi premiado com o Urso de Prata). Depois desses filmes iniciais, a carreira de Sarra segue caminho um tanto errático e pouco profícuo. Ele fez ainda filmes como Capitu (1967), adaptação de Machado de Assis, e um projeto que acalentava há muito tempo, A Casa Assassinada (1970), baseado no livro de Lucio Cardoso. Mas a obra posterior de Sarra dá sinais de que sua verve criativa e seu espírito inovador se acomodaram. Quando se fala em Cinema Novo, impossível não lhe fazer referência, mas talvez por isso sua importância não seja devidamente considerada.

Com sua morte recente, em 14 de abril, nos cabe então lembrar que Arraial do Cabo, Porto das Caixas, Integração Racial e O Desafio são emblemáticos da estética cinemanovista. Mais que isso, são filmes deflagradores: Arraial antecipa Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, Porto das Caixas toca a questão da mulher oprimida como o fará Leon Hirszman em A Falecida (1965) e O Desafio, como Terra em Transe (1967), de Glauber, coloca em pauta o papel do intelectual diante da ditadura. Ou seja, a estética e os conteúdos social e político nesses filmes oferecem o germe para a filmografia por vir. Nesse sentido, Sarra é, de fato, aquele que abriu fendas, que se colocou adiante e, com isso, contaminou Glauber e outros ao redor para o desafio de se fazer cinema em transe.

Quando exibiu Arraial na Itália, ouviu do cineasta Jean Rouche que a nova onda era fazer cinema com “a câmara na mão”. Rápido, escreveu para Glauber e lhe transmitiu essa ideia. Este, sensível, acolheu o sentido do que Sarra transmitiu e na 6ª Bienal de São Paulo, em 1961, expôs que o propósito de sua geração era o de fazer cinema com “uma câmara na mão e uma ideia na cabeça”. Sem um manifesto formal, surge assim aquele que é o principal movimento do cinema brasileiro e um dos pontos altos de nossa história cultural.

Os filmes de inicio de carreira de Saraceni, hoje, são de difícil acesso (indisponíveis em DVD, podem ser vistos em acervos públicos, como na Biblioteca da ECA, ou sequências fragmentadas pelo you tube). Como decorrência, sua importância não é devidamente enfatizada: Sarra praticamente não é visto pelas novas gerações. É uma pena, pois O Desafio, com suas imagens sombreadas, clima blasé e diálogos angustiantes, perfila-se entre as obras primas do cinema nacional nos anos 60. Ao lado de Terra em Transe, reflete de modo intenso o impasse da intelectualidade brasileira diante da realidade da ditadura que se impôs. Assim como o filme glauberiano, O Desafio, feito no calor da hora, revela a grande intuição de Sarra para sentir e expressar por meio de uma obra de arte o que foi o golpe de 64.

Sintomático desse sentimento é o plano que exibe o pôster de “Guernica”, de Picasso, no quarto em que o casal protagonista conversa sobre a situação do país e a impossibilidade de uma relação amorosa naquelas condições. Mero elemento cenográfico, tão repleto de sentido quando se pensa nas razões que levaram Picasso a pintar o bombardeio de uma população indefesa durante a guerra civil espanhola. Enfim, Sarra se foi; fica sua obra, “O Desafio” do filme e, para nós, o de preservar a memória de um gigante de nossa cultura.

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