Entre erros e acertos – Um balanço do 23º Cine Ceará
Camila Vieira – Jornal O Povo (CE)
Ao apostar na temática “A Nova Geração do Cinema Português”, a 23ª edição do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema buscou estreitar laços não só com a cinematografia de Portugal, mas também se aproximar de um público mais jovem de Fortaleza, tanto de novos cinéfilos que despontam dos espaços de formação de audiovisual na cidade, quanto de jovens realizadores cujos filmes ganham reconhecimento em festivais nacionais e internacionais. A homenagem ao coletivo Alumbramento com o Troféu Oscarito e a formação de um júri universitário são exemplos evidentes da tentativa do festival em interagir com o público jovem.
No entanto, o notável esvaziamento de parte das exibições – especialmente da Mostra Portugal Contemporâneo – deixam uma pergunta no ar: por que este mesmo público não compareceu às sessões? A mudança do festival para o Centro Dragão do Mar não explica o esvaziamento, visto que boa parte da programação se concentrou em salas confortáveis e de boa qualidade em equipamentos vizinhos – Centro Dragão do Mar e Caixa Cultural –, possibilitando o fácil e rápido deslocamento do público. A falta de segurança no entorno também não é motivo. Basta lembrar da disputada sessão de inauguração das salas de cinema do Dragão, três dias antes do festival começar. Então, o que fez com que o público se afastasse do Cine Ceará?
Talvez faltou ao festival uma vontade maior de articulação com o público a partir de uma divulgação mais ampla de sua programação. Foi lamentável perceber que apenas três pessoas assistiam ao segundo dia do seminário “Diálogos Visuais – o Cinema de Portugal”, na Casa Amarela Eusélio Oliveira. Por que o festival não convidou os estudantes dos cursos de cinema e audiovisual da UFC, da Unifor e da Vila das Artes, para acompanhar o seminário? Cabe aqui chamar a atenção do festival para que esta deficiência de articulação não aconteça nas próximas edições.
Outro ponto baixo do festival: as falhas técnicas que aconteceram no início das exibições da Mostra Portugal Contemporâneo. Desde o ajuste no projetor que levou meia hora de atraso para o início da sessão de China, China até outra sessão em que faltou energia e cancelou a exibição de A Vingança de uma Mulher (foto acima), as falhas desagradaram parte do público que gostaria de ter acompanhado a mostra, que felizmente teve uma boa projeção dos longas Branca de Neve e Guerra Civil. Alguns filmes também foram exibidos sem legendas, prejudicando a fruição dos espectadores.
No entanto, as exibições noturnas não deixaram a desejar. Vale lembrar que o grande destaque na mostra competitiva de longas foi o espanhol Emak Bakia, de Oskar Alegria, consagrado como o grande vencedor do júri oficial e da crítica. A seleção de curtas em competição tinha títulos fortes, como Sanã, de Marcos Pimentel (MG/MA); Jessy, de Paula Lice, Rodrigo Luna e Ronei Jorge (BA); e Mauro em Caiena, de Leonardo Mouramateus (CE).
Mas o ponto alto do Cine Ceará foi certamente a exibição de Os Pobres Diabos, de Rosemberg Cariry, no encerramento do festival. Ao fazer uso de todo o potencial da sala de cinema do Dragão do Mar, o filme foi exibido em DCP, 2k, com som 5.1 – o que possibilitou uma experiência incrível de cinema como ainda não se tinha visto na história do festival. É uma iniciativa que merece ser preservada em edições futuras.
A obsessão – Emak Bakia
Ivonete Pinto – Revistas Teorema e Orson (RS)
O Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em sua 23ª edição, apresentou uma mostra competitiva claramente superior no segmento de língua espanhola. Mais ou menos o oposto ao que aconteceu na última edição do Festival de Gramado, onde os latinos deixaram a desejar. Em Fortaleza, os brasileiros estiveram representados por títulos um tanto anódinos e contaram com um vexame chamado Solidões, de Oswaldo Montenegro, que faz lembrar aquela palavra repetida no final de Coração das Trevas, de Joseph Conrad.
Validando a supremacia dos ibéricos, o melhor do Cine Ceará foi reconhecido por dois júris, o oficial e do júri da crítica, dando ao espanhol Emak Bakia, de Oskar Alegria, o prêmio de Melhor Filme. A produção não é exatamente falada em espanhol, mas em basco, em função do diretor do filme e a história se passar na região basca. E é bom avisar que o enredo nada tem a ver com a ETA, o movimento separatista basco, que reivindica independência da Espanha, embora tenha a ver com a identidade deste povo, que conserva na língua um fator cultural de resistência.
Emak Bakia (foto ao lado) já havia sido exibido em 22 festivais, fazendo uma carreira insuspeita para um filme “pequeno”. Oskar Alegria é um jornalista nascido em Pamplona, que trabalhou na CNN e no projeto fotográfico As Cidades Visíveis, dirigiu uma série de programas sobre cozinha basca e é professor de documentário na Universidade de Navarra. Emak Bakia é seu filme de estreia e está no formato do documentário. Um documentário que, para além dos fatos, busca sintonia com a obra que o inspirou, e move-se ao sabor da luz e do movimento. Seu ponto de partida é o cinepoema do americano Man Ray, também chamado de Emak Bakia, termo basco para “deixe-me em paz”.
O curta de Ray, de 1926, é filmado em Biarritz, na região basca francesa , e muitos de seus planos são feitos num casarão da praia cujo nome seria Emak Bakia (lá todas as casas têm um nome).No filme aparecem imagens da casa, em especial da varanda, com duas pilastras em relevo, de onde se vê o mar. Alegria nos relata no filme que fascinado pela expressão, Ray teria a visto pela primeira vez numa lápide de um cemitério de Biarritz. Num trabalho de investigação para saber da casa que ninguém sabe onde fica, nem sequer reconhece a existência, Alegria começa pelo cemitério, onde também não encontra a tal lápide.
Por momentos, parece que os itinerários que Alegria escolhe o vão distanciando de seu objetivo central – encontrar a casa que Ray filmou. Porém, por caminhos bifurcados e insuspeitos, o diretor basco encontra seu rumo. E o que começa com a morte, termina com a vida, numa construção possível somente quando o espectador faz seu papel, ou seja, entra na viagem de Alegria.
Se Emak Bakia, de Ray, é a inspiração, não significa que Alegria tenha optado pela vertente da videoarte para melhor dialogar com seu ponto de partida. O pulo do gato do diretor foi agregar à investigação uma pegada detetivesca, que se empenha em descobrir e descortinar, para então, como um documentarista criativo, formular e transformar tudo em algo instigante para o público.
Para o sonho e para o lúdico, ao fluxo de imagens do inconsciente, tão caros aos surrealistas como Ray, Alegria aplica a camada do detetive-poeta, que vai atrás de pistas, vestígios, mas que elege o acaso como método. Ou seja, opera entre o rigor da investigação jornalística, mas valoriza o recurso pouco cartesiano do acaso. É como se Hitchcock fosse filmar um roteiro de Salvador Dali − a austeridade da encenação, a decupagem que organiza, somada à imaginação dadaísta − e tudo resultasse num filme com a marca dos dois.
Emak Bakia não é nenhuma obra prima no sentido mais estrito, inclusive Alegria não foi o único a se interessar pelo tema. Em 1980, artistas bascos fundaram um grupo para homenagear Man Ray chamado “Emak Bakia Baita” (Casa Deixe-me em Paz). Alegria documenta também músicos vanguardistas fazendo experimentações em torno dos sons da casa, o que demonstra que os espanhóis há horas estão encafifados com o filme de Man Ray.
Como linguagem, Oskar Alegria ancora-se em Ray para manejar fusões, experimentar com os planos, mas não deixa de apresentar as informações sobre a casa, não perde o prumo sobre as origens de seu objeto. É com este intento que vai atrás de uma ex-moradora ilustre da casa, uma princesa da Romênia, Maria Despina. A senhora de estirpe real que mais parece uma camponesa e tem na biografia o fato de ser prima de Nabokov e ser autora de uma tese sobre o cheiro das formigas, é levada à casa e lá Alegria justapõe imagens do presente com o filme de Ray.
A obsessão com a casa onde Ray filmou, o fato de, inicialmente, ninguém do lugar saber dela, e a forma como Alegria encontrou para traçar sua investigação, fazem do filme uma obra ser apreciada. E, convenhamos, em tempos de um cinema de pouca imaginação, onde tem-se a impressão que tudo já foi feito, é um colírio para a cinefilia. Melhor dizendo, para parte da cinefilia, já que recebeu nota 6.5 dos leitores do site IMDB, sinal que não é um filme para todos. Tomara que seja lançado e que encontre seu público no Brasil.
Mostra Maria de Medeiros
Ailton Monteiro – Diário do Nordeste (CE)
Uma das presenças mais importantes desta 23ª edição do Cine Ceará foi da atriz, cineasta e cantora Maria de Medeiros, que com sua simpatia e seu talento multifacetado conquistou o público do festival. Foi, inclusive, uma decisão sábia por parte dos organizadores agendarem seu show no Anfiteatro do Centro Cultural Dragão do Mar, logo após o filme de abertura da mostra, e no mesmo dia que ela recebeu uma homenagem. No show, com um repertório de arranjos sofisticados e influenciado por diversas culturas musicais, inclusive brasileira, Maria de Medeiros agradou a plateia.
Mas o melhor estaria por vir, com a exibição de seus filmes como atriz e diretora. Como diretora, foram exibidos o seu primeiro longa-metragem, Capitães de Abril (2000), sobre a Revolução dos Cravos, ocorrida em Portugal, em 1974, e seu mais recente trabalho, o documentário Repare Bem (2012), despojado esteticamente, mas dramaticamente intenso e comovente, ao contar a história do assassinato de Eduardo “Bacuri” Leite, durante os anos de chumbo da ditadura militar brasileira, através de depoimentos de sua esposa, Denise Crispin, e da filha, Eduarda Ditta Crispim Leite, que não chegou a conhecer o pai, pois a mãe estava grávida quando Bacuri esteve preso.
Logo após a emocionante sessão, houve debate com a presença da diretora e de Denise Crispin, que também pôde ser vista em diversas outras sessões do festival, com um olhar militante e emocionado, como quando saiu chorando da sessão do documentário mexicano O Paciente Internado, de Alejandro Solar Luna, um dos representantes da mostra competitiva de longas.
Outro trabalho de Maria de Medeiros como diretora que esteve na mostra foi o curta Aventuras do Homem Invisível, segmento do longa-metragem Mundo Invisível (2012), e que é outra demonstração do interessa de Maria pelos direitos humanos, ao abordar a história de um empregado de um luxuoso hotel que não é “visto” pelos hóspedes ricos, que o ignoram.
Esse humanismo da diretora está presente também em seus trabalhos como atriz, em especial os mais recentes. Caso de Viagem a Portugal (2011), de Sérgio Tréfaut, que mostra a frieza e a crueldade dos funcionários dos aeroportos internacionais ao lidar com determinados estrangeiros. No filme, Maria interpreta uma ucraniana que não sabe falar português, nem inglês e tenta encontrar o marido, que reside em Lisboa, mas é retida pelas autoridades portuguesas. Não apenas retida, mas presa, humilhada e convencida a deixar o país.
Voltando um pouco no tempo, um dos trabalhos mais conhecidos de Maria de Medeiros e que a revelou para o mundo também compôs a mostra: Henry & June – Delírios Eróticos (1990, na foto acima), de Philip Kaufman, em que ela interpreta a escritora Anaïs Nin. O filme marcou época e apresentou para muitos os escritores Henry Miller e Anaïs. Foi muito provavelmente responsável, ainda que indiretamente, para que Maria ingressasse no elenco de Pulp Fiction – Tempo de Violência (1994), de Quentin Tarantino, que conta com sua parceira de elenco do filme de Kaufman, Uma Thurman.
Se esses primeiros trabalhos de Maria como atriz têm sua importância na história do cinema contemporâneo, nota-se que foi a partir dos anos 2000 que a múltipla artista adotou um perfil mais humanista e militante, seja em seus trabalhos como diretora, atriz ou cantora. Essa pequena mostra que o Cine Ceará proporcionou – que ainda incluiu o brasileiro O Contador de Histórias (2009), de Luiz Villaça, – serviu para mostrar o perfil de uma mulher sensível e interessada no ser humano, em seus problemas e angústias, necessidades e direitos.
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