Os filmes estão vivos

*André Dib

“João Bénard da Costa – Outros amarão as coisas que eu amei”, de Manuel Mozos

Há algo de sádico por parte da organização do 4º Olhar de Cinema em programar quase cem filmes em oito dias. Ainda que com duas sessões para cada título, considerando o cinéfilo mais dedicado, é possível assistir apenas a dois quintos da programação. Tudo bem que o Festival de Berlim, cujo modelo inspira o evento paranaense, faça o mesmo com 400 filmes em dezenas de salas. Seu gigantismo, porém, supõe rendição prévia. Em Curitiba, a programação parece bem mais ao alcance, fazendo de cada escolha uma mistura de dor e satisfação.

Exceto pela ficção libanesa “O Vale”, que traduz em termos de cinema a frágil condição de um país rodeado de conflitos, no último fim de semana meu recorte se definiu entre filmes clássicos, um contemporâneo que dialoga com imagens de arquivo e um achado de arqueologia cinéfila: imagens inéditas feitas por Glauber Rocha no norte da África. Com 40 minutos de duração, “A vida é estranha” ficou por 42 anos na estante de Mossa Bildner, musicista norte-americana radicada em Curitiba, até que fosse restaurado digitalmente e exibido pelo Olhar de Cinema.

Trata-se de um registro de viagem ao Marrocos feita por Glauber e Mossa, namorados em 1973, em imagens cujo valor não se mede em si, mas pelo fato de terem sido filmadas por um dos mais importantes diretores da história. Com uma câmera Super 8 na mão, Glauber observa a vida cidade de Essaouira: paisagens, objetos, pessoas e costumes. Por sua vez, Mossa flagra o namorado numa barbearia, de onde sai, gordo e feliz, em direção à rua. Um Glauber-Rei no mundo árabe norte-africano.

A qualidade das imagens é bastante precária. Foram digitalizadas a partir de suporte magnético (VHS), o que reduziu pessoas em vultos, borrões coloridos, algumas com rostos indecifráveis, tornando o ato de olhar para o passado uma experiência ainda mais fantasmagórica. Montada durante a restauração, a banda sonora é formada por três blocos musicais, um com percussão afro, outro com uma ária desconstruída e um texto de Clarice Lispector cantado por Mossa em tom melancólico, sobre finitude e permanência.

Após a sessão, ela disse que na época Glauber estava bastante inspirado no livro “The Wild Palms”, de William Faulkner, a partir do qual faria o “filme de sua vida”. Em determinado momento  de “A vida é estranha”, Glauber filma o vento batendo nas palmeiras, o que para Mossa seria uma indicação para o filme que nunca aconteceu.

O culto por cineastas e imagens de arquivo também se manifesta no documentário português “João Bénard da Costa – Outros amarão as coisas que eu amei”. Nele, Manuel Mozos biografa Bénard, que por 18 anos administrou a Cinemateca Portuguesa, através do seu amor por filmes, livros e pinturas, que moldaram um sensível entendimento da vida.  Não por acaso, um texto seu sobre “Johnny Guitar” (1954), está no catálogo do Olhar de Cinema, que programou o filme de Nicholas Ray na seção de clássicos. “De ‘Johnny Guitar’ só sou capaz de falar delirando”, escreve Bénard, sobre seu preferido.

“Sindicato de Ladrões”, outro ótimo filme de 1954, foi exibido em Curitiba em versão restaurada. Este, em vez do vibrante technicolor, foi concebido em preto e branco, bastante conveniente com o espírito de paranoia e caça ao comunismo em Hollywood naquele período. Diretor do filme, Elia Kazan delatou oito colegas filiados ao partido (ele mesmo foi um), ganhando com isso a fama de traidor. Mais do que uma autodefesa, o filme estrelado por Marlon Brando revela um artista em pleno domínio de sua expressão. Sua abordagem ao mesmo tempo crua e poética do submundo gângster influenciou diretamente cineastas da geração seguinte, como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese.

Máquinas de matar – A imagem de uma cobra partida ao meio, ainda viva no asfalto quente de uma estrada, dá início ao filme libanês “O Vale” (The Valley), de Ghassan Salhab. Ela foi “atropelada” por um carro que explodiu entre as pedras do Vale do Bekaa. Dele sai um sobrevivente, que ganhou várias marcas no corpo e perdeu a memória pessoal. Acolhido por um grupo de traficantes, ele traz no ombro uma grande ferida, que apesar do curativo, sangrará ao longo da história.

Repleto de símbolos, o filme de Salhab olha consternado para um país cuja beleza contrasta com o mal estar de guerras que se estendem por séculos. O frágil equilíbrio que repousa atualmente no Líbano é quebrado pela ficção, que traduz de maneira precisa uma condição existencial equilibrada no afã religioso (ali está a antiga Palestina, berço de Jesus Cristo), a beleza cenográfica e a atual situação de ilha cercada de conflitos na Síria, Irã e Israel.

Curioso que as explosões das minas de prata que deflagram a narrativa de “Johnny Guitar” literalmente ecoem no filme de Salhab, formando com a performance dos atores e música original uma aterradora composição sobre a miséria humana já apontada por Pier Paolo Pasolini: nos tornamos máquinas de matar. Os filmes, no entanto, estão vivos.

* Crítico, pesquisador e jornalista; Membro da diretoria da Abraccine e do Congresso Brasileiro de Cinema.

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