*André Dib
Há tempos o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro vinha dando sinais de que a sua 53ª edição seria problemática, ou até mesmo poderia não existir. A boa notícia é que ela aconteceu, e isso já é um grande feito para um festival em 2020. Dito isso, não há como olhar para mais antigo festival de cinema do país sem lamentar a sua situação. Realizado no apagar de luzes de um ano trágico não apenas para o cinema, o FB teve a competição oficial transmitidas pelo Canal Brasil (TV a cabo e internet, apenas para assinantes), mostras paralelas pelo site da secretaria de cultura, e debates, pelo YouTube.
Após quase ter sido cancelado – pior cenário para um evento que já havia sido suspenso de 1972 a 1974, o que se viu em 2020 foi uma edição improvisada, esvaziada e fora de sintonia com atuais discussões estéticas e políticas que o próprio evento vinha pautando. A pandemia do Covid-19 pode até ser uma justificativa, mas não a única, pois, apesar de tudo, outros festivais conseguiram manter ou até ganhar mais atenção, como o Olhar de Cinema, o Ecrã e a Mostra de São Paulo.
Para entender a situação em Brasília é preciso voltar a 2019, quando a crise já vinha se desenhando com a mudança de direção do festival, ainda que a produção continuasse a cargo do Instituto Alvorada Brasil. Sob acusações de censura e misoginia, representantes do festival fecharam o microfone e retiraram um realizador do palco na noite de abertura e, ao longo do evento, ofenderam publicamente realizadoras convidadas pelo festival. Com o fim do contrato, e após uma tentativa frustrada de contratar uma nova empresa, em outubro o FB passou a ser gerido pelo próprio Governo do Distrito Federal, com programação liderada pelo documentarista Sílvio Tendler.
O que se viu a seguir foi uma série de situações desastrosas, a começar pelo anúncio dos filmes selecionados, em lista pública que revela as notas, incluindo nome e nota dos não selecionados, como fosse concurso público. Resultado, aliás, definido após a comissão curatorial ter avaliado nada menos do que 698 filmes no período aproximado de um mês (novembro). Isso, somado ao fato de o site do festival ter sido tirado do ar (comprometendo a sua memória recente), tornando confuso o acesso às novas informações como fichas técnicas e programação, que ficaram na página da secretaria de cultura, geraram reações indignadas e chacotas nas redes sociais, antes mesmo de o festival começar.
O fato é que o Festival de Brasília ficou distante do protagonismo que levava aos filmes vibrar para além do circuito de festivais, como aconteceu com “Arábia” e “Temporada”. Para não ficar só em exemplos recentes, basta lembrar 1996, ano que consagrou “Baile Perfumado”, sob programação do próprio Tendler.
Com relação aos filmes, a exibição das mostras competitivas poderia ser menos restritiva: se por um lado a transmissão por TV reforça as parcerias institucionais e ajuda a preservar os filmes da pirataria, por outro, fica difícil chegar ao público com uma competitiva de longas transmitida em canal por assinatura, em sessões únicas e no horário avançado (23h). Diante disso, por iniciativa própria, uma das distribuidoras (Embaúba Filmes), abriu na internet os filmes “Espero que esta te encontre e que estejas bem” e “Talvez entre nós estejam multidões” por 24 horas.
Mais acessível foi a mostra paralela Cinema de Invenção, montada por Cavi Borges com dezenas de filmes abertos durante todo o evento no site da secretaria de cultura do DF. Um programa essencial, aliás, para qualquer interessado em cinema brasileiro, e que reforça o ideário de “memória e resistência” pretendido pela edição deste ano, também presente nos longas da competição oficial. Juntos, esses dois programas olham não apenas para a história do cinema e da cultura brasileira, como buscam nelas exemplos de criatividade diante de regimes autoritários. Uma ótima busca, não fossem tantos atropelos.
Em 2011, após muito tempo sob o comando de Fernando Adolfo, o Festival de Brasília também passou por estranhas mudanças de formato. Na época, o decano Vladimir Carvalho disse que “em momentos como este é sempre importante dar uma olhada no retrovisor”. Com Tendler na programação, essa parte está feita, e bem. Falta agora uma equipe experiente e habituada ao métier, que possa trabalhar com antecedência para restituir ao FBCB seu lugar de centralidade no circuito brasileiro de festivais.
* André Dib fez parte do Júri Abraccine