
“Quintal”, de André Novais
Thiago Stivaletti*
A seleção de curtas do último Festival de Brasília mostrou a vitalidade e a maturidade dos curtas nacionais, num vigor estético bastante superior ao dos longas.
Ao menos quatro curtas se destacaram pela precisão estética, um certo cálculo milimétrico na elaboração de cada plano e na composição geral. Todos eles se inserem mais ou menos nos códigos de um gênero, o fantástico. Essa precisão aparece nas fortes imagens de “O corpo”, de Lucas Cassales, que mistura pulsões de sexo e morte na visão de um garoto que encontra um corpo na mata. Ou na elaborada direção de arte de uma casa fantasma em “Tarântula”, de Aly Muritiba e Marja Calafange.
Um trabalho de som elaborado em detalhes, pontual como um relógio suíço, domina a rotina do personagem-título de “O sinaleiro”, de Daniel Augusto, inspirado num conto de Dickens. E a angústia do menino que vê sua casa ser invadida por estranhos que parecem zumbis é construída num ritmo calculado em “À parte do inferno”, de Raul Arthuso.
Em todos eles, a chegada do fantástico, do que se poderia chamar do imponderável dentro da narrativa, é preparada por uma mise-en-scène racional – “perfeita”, irretocável, amparada por um belo trabalho de luz e câmera, mas sem muitas brechas para um saudável inusitado.
Caminhos erráticos
Outros curtas mais “tortos”, que abrem espaço para possíveis “erros” ou desvios dessa estética perfeita, geram resultados mais humanos e surpresas bem-vindas. No mais instigante, “A outra margem”, de Nathália Tereza, acompanhamos um agroboy de Campo Grande numa noite solitária em busca de amor escutando a rádio local. Seu estado emocional é revelado através de suas poucas ações, incluindo a fria relação com uma moça com quem costuma sair. Ao final, o personagem escuta emocionado uma desconhecida cantar Guilherme Arantes num karaokê. Uma nota emocional coroa esse relato à deriva e estabelece uma inesperada empatia com personagem tão distante.
Em “Quintal”, André Novais de Oliveira prossegue a sua divertida experimentação de encenar os próprios pais. Situações absurdas dominam o curta e garantiram o filme mais engraçado de todo o festival, numa liberdade cênica de fazer inveja aos mais clássicos. Em “História de uma pena”, Leonardo Mouramateus inverte as expectativas do olhar ao privilegiar os que escutam aos que falam, numa história de rumos totalmente inesperados cujo centro é uma aula de poesia. E em Cidade nova, um personagem vive a sua deriva depois que sua cidade natal “desapareceu” em meio à água, numa história sem começo nem fim.
Claudão em outro tom
Dos seis longas em competição, dois merecem análise. Aly Muritiba faz uma grande estreia nos longas de ficção com “Para minha amada morta”, mise-en-scène do ressentimento que lembra muito outra experiência bem-sucedida recente, “O lobo atrás da porta”. A jornada de Fernando, viúvo que descobre a traição de sua falecida, é construída por meio de silêncios e tensões que traduzem na imagem o ressentimento mal resolvido do protagonista.
Em “Big Jato”, Cláudio Assis dá uma bem-vinda renovada em seu estilo por meio de um relato leve e arejado de infância, um “Amarcord” inspirado não em suas próprias memórias, mas nas do amigo Xico Sá. A rebeldia e a iconoclastia que sempre foram sua marca registrada, em filmes como “Amarelo manga” e “Febre do Rato”, dá lugar a uma visão solar da juventude e da descoberta da poesia – o destino do menino Chico rumo ao Recife, um futuro ainda repleto de esperança, é o oposto do destino trágico do poeta Zizo do último filme do diretor. Trafegando em outro tom, Claudão demonstra a força de seu talento como cineasta, mantendo de alguma forma sua grande preocupação como autor: o sublime da arte e da poesia contra a rudeza do mundo.
* editor asssitente do Portal FilmeB; presidente do júri Abraccine no 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro