Cid Nader*
Poder-se-ia pensar, a princípio, que a conclusão de Chantal Akerman de Cá, nos moldes como foi concretizada, refletiria “apenas” um trabalho de referência, de similaridades de ações que evocariam automaticamente a pensar nos realizadores como óbvios fãs e conhecedores do cinema que ela confecciona ao longo de sua carreira. A opção de uma tomada única, sem que a entrevistada merecesse o patamar de destaque maior dentro do quadro todo (que abarca um outro quadro menor, onde se sustenta sobre uma cadeira e almofada o corpo da senhora pequena no tamanho), na realidade compõe uma das facetas físicas importantes que preenchem ambas as equações obtidas pela lente calculadamente posicionada: é a parede preta levemente refletora que toma quase metade da tela, são os móveis e as madeiras austeros, é o modelo de luz obtido. Tudo isso, abastecido pelo uso do plano longo (único) e “lentamente estático”, representam, na forma, na olhada primeira, muito do que parte da experiência dela como autora reflete na construção de um modelo de autoralidade.
Só que, referências podem ganhar aspectos mais densos e interessantes quando não tomadas como protagonistas ou gesto de homenagens (quando) sentidas, sim, mas não essência maior – aliás, dentro do exercício crítico praticado atualmente, há muito dessa “facilidade referencial” sendo imposta sobre desvendamentos possíveis e desejáveis, com textos sendo impregnados e cravejados de citações (por vezes com jeito de erudição), acima do detalhamento de compreensão particular de quem escreve –, e os diretores, Leonardo Luiz Ferreira e Gustavo Beck, souberam, de maneira bastante competente, e simples, obter algo muito maior do que enxergar Akerman filmando nas camadas superficiais.
Cada um deles, a seu modo, tratou de desvencilhar o trabalho da possibilidade de parecer simples cópia de modelos, por atos bastante interessantes e concretamente perceptíveis. Leonardo, o entrevistador, impõe distância e frieza calculada (quase criando a sensação do drama) ao oralizar suas perguntas, nitidamente frutos de elaborada pesquisa e conhecimento da obra da diretora, com pausas bem marcadas: que podem remeter ao tempo necessário imaginado para a separação quase física entre os atos que representam cada interlocução; podem ser um tempo necessário de ordenamento das questões pensadas (e escritas) ante óbvias e quase constantes “negativas” ao elaborado (Chantal, uma belga, mas com aquela velha mania dos franceses de jamais concordar de imediato – para, após verbalizarem a mais do que o estritamente necessário, quase sempre concluírem com anuência ao que era questionado lá na formulação inicial); ou a um certo torpor diante do ídolo; ou ainda – sendo que acho um tanto covarde agir assim, por conhecê-lo – citar ser esse mesmo o modo normal dele se comunicar no cotidiano (um cara bastante “pausado”, que costuma dar tempo para respiros).
Gustavo Beck já é alguém bastante apegado a filmar sem que sua câmera interfira diretamente na ação, tentando deixar a naturalidade (até onde se possa pensar isso ser possível) fluir e determinar o ritmo comum das coisas sucedendo, tendo a simetria como a espinha dorsal de seus enquadramentos, e notada afeição aos sons gerais dos ambientes completando a estruturação do todo: seria fácil imaginá-lo um Chantal Akwerman de calças, mas seu humor não costuma ser afinado como o dela por vezes é. E aí reside novamente a quebra de um possível aliamento do trabalho a parecer cópia ou “somente” bela referência: ao trabalhar dentro de seus parâmetros usuais, o fato de a própria entrevistada topar a brincadeira, de modo a ter de interagir com um entorno que a força a isso (posicionada para ser alvo, em um ambiente sisudo, e observada a razoável distância – no mínimo, se pensando numa parede e portas separando-a da equipe) ele alcança momentos que imagina-se só possíveis com distanciamento do elemento central, mas que sabe-se ser impossível quando se há qualquer consciência de que uma lente está direcionada e ativada (isso é muito mais Gustavo do que Akerman); a partir daí, topa-se imaginar a entrevistada criando algumas situações com jeito de naturalidade de quem está se fazendo de morta ante a importância vital da câmera, passando a ter interações fugazes, mas diretas, com esse elemento invasor (o que empresta ao filme ganho que, talvez aí, tenha sido resultado de sorte, mais do que planejamento – mas que deve creditar-se somente ter sido possível pela idealização inicial do plano-único preparado para tudo que viesse); a imagem da equipe refletida levemente na parede negra constitui um “deixar evidenciar” que se está trabalhando por trás da aparente simplicidade de uma conversa entre oponentes (entrevistador e entrevistados, afinal, são oponentes – não necessariamente inimigos) para a construção de obra de cinema, que será vista de outra forma pelo espectador (mais um ponto a favor).
O que resultou foi um filme antagonicamente simples e complexo, que talvez (para quem deseja resumos) possa ser compreendido em suas intenções pilares no instante final, quando a entrevista termina, e fora das lentes se misturam as vozes de Leonardo, pedindo seu autógrafo num livro, e de Beck, solicitando a possibilidade de uma foto (com uma Polaróide), com tênues espocares de flash batendo na parede do fundo. Sentimos o tempo passar, e isso é o que interessa, como ela cita ser importante em seus trabalhos.
*5 Questões
Mandei cinco questões (por e-mail) para que o Leonardo e o Gustavo respondessem. Mesmo sem tempo (a trabalho num filme), o Gustavo ainda, gentilmente respondeu à pergunta endereçada especificamente a ele. E o Léo, gentil como sempre, completou o trabalho.
1) Leonardo e Gustavo: a relação dos dois com o cinema da Chantal tem base similar de apreciação? Na realidade, o quero saber é o quanto o texto por sua vez, e o modo de construção (de outro lado) das imagens tem prioridade na apreciação de cada um de vocês?
Leonardo – Sou grande admirador do trabalho da Chantal Akerman e isso, sem dúvida, foi decisivo para a vontade de realizar o projeto. Ela trabalha bem tanto forma quanto conteúdo: a força do quadro cinematográfico de Chantal é inegável. A composição dos planos sempre foi o que me chamou mais atenção, um cuidado particular dela na duração de cada cena e como trabalhar o silêncio e o desenho de som. Munidos de todas essas informações e referências traçamos algumas linhas sobre a ideia de um documentário sobre ela, que dialogasse também com sua obra.
2) Sabendo o quanto o Leonardo – alguém mais próximo de mim – nutre reverência à obra da diretora (e isso fica mais óbvio ainda quando se nota o teor das questões formuladas a ela, num sentido progressivo de tentativas de desvelar alguns de seus filmes) -, e imaginando que o Gustavo (pela forma de seu trabalho como diretor – aqui, na simetria única de um enquadramento, simetria buscada e aditada da importância das cores em “A Casa de Sandro”) a aprecie tanto quanto, em que momento vocês perceberam que a oportunidade de tê-la aqui no Brasil era a chance passando na frente e pronta para ser agarrada? Foi difícil marcar o encontro?
Leonardo – O encontro partiu de uma pauta jornalística para o site críticos.com.br. Como trabalho com crítica de cinema há 11 anos e faço inúmeras entrevistas tive a ideia de que uma deveria ser filmada para se tornar, possivelmente, um filme. Entrei em contato com a assessoria de imprensa da retrospectiva de “Chantal Akerman no CCBB”, um mês antes de sua chegada. Expus a minha ideia ao Gustavo Beck, que também aprecia a obra dela, para que entrasse no projeto. Há uma sintonia, sem dúvida, de propósitos em Chantal Akerman, de Cá: o Beck vinha de dois retratos, “Ismar” e “Sandro” (A Casa de Sandro), e eu de diversos encontros com realizadores autorais. Através dessa junção apostamos que poderia sair algo de bom. E felizmente conseguimos capturar esse encontro em vídeo, sem claro que todos os envolvidos pensassem que poderia se tornar um longa-metragem.
3) Leonardo: como é a história de fazer uma entrevista gravada sem cortes (além de filmada), para alguém acostumado a fazê-las bem minuciosas, como é teu costume, vendo a entrevistada o tempo todo quase que negando as formulações, inicialmente, para somente com o andar da resposta a coisa tomar rumos mais concretos? Foi essa tua sensação (como foi para mim)?
Leonardo – Foi a minha primeira entrevista filmada e isso certamente pesou. Vendo o filme centenas de vezes fica claro para mim que tanto Chantal quanto eu “atuamos” de alguma forma para aquela câmera. Eu sabia desde o início: que não poderia me comportar da mesma forma que em outras entrevistas. Então, o silêncio e a leitura das perguntas foi algo proposital para criar desconforto e que através disso se realçasse o aspecto cinematográfico da personagem. Passamos de uma simples entrevista filmada para um filme. A Chantal tem uma personalidade difícil, diversos críticos tentaram entrevistá- La, e pouco obtiveram. Mesmo com suas negativas iniciais às minhas perguntas fui deixando tempo e não apressando nada para que ela respondesse aos poucos. E isso foi uma sábia decisão e escolha porque ela vai se soltando no decorrer das perguntas e no fim até esboça um sorriso.
4) Gustavo: desde o início a ideia era a de tudo concretizado por um único plano-sequência? Porque fica evidente pela solução (que casa muito com o que ela faz em alguns de seus filmes) imaginada no posicionamento da câmera, no quadro que não a coloca como elemento único e atenta ao entorno, que todo o “cenário” deveria ser parte integrante da interação do filme/documentário com o público. Premência de tempo concedido por ela para falar com vocês? Caso pensado mesmo, para fazer parelha ao teu modo de trabalhar?
Gustavo Beck – Sabíamos que íamos encarar e lidar o todo tempo com a imagem de uma artista de grande vigor formal, uma cineasta que domina com maestria uma ideia de construção de quadro/cena, e que estaria muito atenta ao dispositivo que adotássemos. Na verdade, sabíamos também que a chance dela performar seria grande, dada toda a bagagem prévia de seus primeiros filmes, mas também queríamos tê-la confortável, cedendo-lhe espaço suficiente, para que esta nos falasse com naturalidade e espontaneidade sobre seu trabalho. Que pudesse reagir às perguntas, e reinventar o filme o todo tempo. E pra mim, só ficou claro que o filme seria dessa forma, ou ainda, que teríamos um filme dessa entrevista, no momento que Chantal se levanta e vem até a câmera, por vontade própria.
5) E para não cansar demais (já que bom entrevistador mesmo aqui é o Léo): quando ela saca o cigarro e, aos poucos, vai manuseando-o até atingir o clímax (que foi o de acendê-lo e tragá-lo num local onde tais práticas são proibidas), algum de vocês ficou tão tenso como deve ter ficado quem assistiu ao momento na telona (eu fiquei)? Têm noção do quanto tal trecho é especial no trabalho? Se sim: agradeceram aos deuses?
Leonardo – Não havia uma tensão de minha parte porque não sabia o que aconteceria se ela acendesse o cigarro. Isso nem de longe estava entre as minhas preocupações. Mas tudo mudou quando após terminarmos as filmagens a brigada de incêndio do CCBB chegou para averiguar o porquê o alarme tinha sido disparado. Então, o bombeiro explicou que se Chantal acendesse mais um cigarro, ela levaria um banho de água (risos). O que fico contente ao ver a cena no cinema é que a classifico como um momento cinematográfico real: só com a câmera ligada poderíamos capturar aquilo. Sem dúvida, é uma recompensa por termos acreditado no projeto.
* editor do site Cinequanon