Olhar 2016: destaques da competição

STILL3_1100x380-4Rodrigo de Oliveira*

Os documentários foram o principal destaque da 5ª edição do festival paranaense Olhar de Cinema, em um ano em que os longas-metragens nacionais também se mostraram mais interessantes do que os títulos internacionais escolhidos pelos programadores do evento. A premiação deixou claro que os trabalhos de não-ficção foram bem sucedidos na comunicação com o espectador, com dois deles ganhando os principais louros do festival: “O Vento Sabe que Volto à Casa”, doc chileno de José Luis Torres Leiva, que recebeu o troféu Olhar de Melhor Filme; e “Talvez Deserto Talvez Universo, co-produção Brasil e Portugal, comandado por Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, que venceu a categoria Olhares Brasil, concedida apenas a títulos nacionais. Nós, do júri da Abraccine, também selecionamos como melhor um documentário, chinês, assinado por Shengze Zhu, chamado “Um Outro Ano”. Durante uma semana, foi possível um intenso mergulho na produção de títulos que fogem ao lugar comum e que tem nesta busca pelo inusitado e pelo novo seus principais predicados. Segue abaixo uma listagem dos três trabalhos que mais chamaram a atenção neste quinto Olhar de Cinema, dos títulos da mostra competitiva. Os textos completos – destes e de outros filmes – estão no site Papo de Cinema.

Um Outro Ano, de Shengze Zhu

A fotógrafa e cineasta chinesa propõe um desafio ao espectador em seu primeiro longa-metragem. Acompanhar uma família durante treze meses, em treze refeições (uma em cada mês), com a câmera completamente parada, apenas capturando o relacionamento entre as três gerações que dividem o mesmo recinto. No processo, conferimos conversas corriqueiras, brigas ferrenhas, abuso, problemas de higiene, e um sem número de pequenas coisas que acontecem no seio familiar. Com três horas de duração, o espectador acaba saindo da sala de cinema ou detestando aquelas pessoas ou se sentindo uma pequena parte daquele lar. Por escolher diferentes enquadramentos a cada mês, temos algumas interessantes descobertas no decorrer da história. Somos apresentados aos poucos a todos os ângulos daquele lar, tendo como desviar o olhar para minúcias da casa, da mobília. No mês de março, por exemplo, ficamos muito próximos de pai e filha, com os dois conversando durante seu jantar comprado na rua. Além do papo, somos confrontados com costumes daqueles indivíduos. Existe um ônus e um bônus dessa duração demasiadamente longa de três horas. Por um lado, temos um retrato bastante fiel dos costumes daquela família chinesa, tendo oportunidade de entrar de forma privilegiada naquele espaço e ouvir suas histórias, conhecer sua gente. Por outro lado, a câmera parada durante mais de 15 minutos em cada jantar se mostra um exagero. Um Outro Ano é um filme de proposta ousada, que gera discussões ao seu final, gostando ou não do resultado. Difícil ficar incólume depois daquelas três horas acompanhando uma família real que, mesmo com um dispositivo como uma câmera instalada em sua casa, parece se sentir à vontade o suficiente para mostrar suas facetas menos inspiradoras.

O Estranho Caso de Ezequiel, de Guto Parente (foto)

Quem já viu mais de um filme assinado por Guto Parente, sabe que o diretor tem mão para criar atmosferas. Em “A Misteriosa Morte de Pérola” (2014), o clima de suspense era palpável nas duas partes daquela trama soturna. Agora, em “O Estranho Caso de Ezequiel” (2016), existe uma aura onírica que perpassa toda a trama. O que é real e o que é imaginário ali? Há uma barreira entre esses dois conceitos ou tudo é verdadeiro quando se acredita em algo? Novamente dividindo seu trabalho em duas partes (bastante distintas), Parente concebe uma viagem sensorial cinematográfica e convida os espectadores a partilharem da jornada. Embora exagerado em alguns trechos, temos bons momentos nesta trama fantástica, com os dois pés no surreal. A trama nos apresenta a Ezequiel (Euzébio Zloccowick) que, assim como o personagem bíblico, acabou de perder sua mulher e precisa enfrentar de peito aberto essa morte inesperada. Certo dia, ao ouvir um estranho barulho no seu terraço, Ezequiel se surpreende com a aparição de um ser humanoide (Caio Dias), sempre emanando uma forte luz verde, convulsionando ininterruptamente. Quando sua esposa falecida (Nataly Rocha) surge de volta ao seu convívio, os três acabam construindo uma família liberta de quaisquer amarras. Evitando maiores spoilers, a segunda parte é uma viagem transcendental com música, luz e surrealismo. Basta dizer que estamos mais de 200 anos no futuro e em outro planeta. Se você pensa que tem ideia do que isso significa, pense de novo. Esse trecho é o mais liberto do filme, abandonando conceitos narrativos e se deixando levar pelo sensorial das imagens. Tende a funcionar com quem embarca fácil em produções menos quadradas. Parente emprega um ritmo ágil e capricha em cenas com pegada lírica. A música eletrônica utilizada conversa totalmente com aquele novo momento da história e os atores parecem muito livres para criar naquele ambiente. É importante frisar que, se a metade final do longa funciona, é por causa do alicerce criado na primeira metade. Euzébio Zloccowick se mostra um ator com presença corporal impressionante, traduzindo os sentimentos do personagem de forma muito natural ao longo da trama, sem dizer palavra. Com apenas 70 minutos de duração, “O Estranho Caso de Ezequiel” consegue englobar assuntos diversos, como a perseguição ao diferente, o extremismo religioso, o peso do luto e o poliamor, em uma roupagem pitoresca e longe do óbvio. Se escorrega no exagero em algumas sequências – a presença do “ET” convulsivo é um ponto negativo – ao menos tem a coragem de se expor a tal, o que é sempre interessante em um cineasta que busca o arrojo, escapando do lugar-comum.

A Cidade do Futuro, de Claudio Marques e Marilia Hughes

O cinema do casal Claudio Marques e Marília Hughes é fortemente calcado nos personagens. Se em “Depois da Chuva” (2013), a jornada de Caio era explorada de forma competente e segura pela dupla de diretores, em “A Cidade do Futuro” o desafio é maior, ao tentar desenvolver três fortes protagonistas nas figuras de Milla, Igor e Gilmar, que vivem um romance que abala as estruturas de sua terra natal, Serra do Ramalho, no sertão da Bahia. Com começo titubeante, o longa-metragem logo engrena e cativa pela sensibilidade com que a história é contada. Além de ser uma trama que retrata uma constituição familiar fora dos padrões, existe uma pegada política que é pincelada pelo roteiro. A região em que se passa a história tem um passado difícil, com os moradores ribeirinhos do rio São Francisco tendo sido realocados para uma zona distante, por conta da construção da represa de Sobradinho, na década de 1970. Essa ferida ainda exposta abre o longa-metragem, na apresentação do professor Gilmar (Gilmar Araújo) para seus alunos do colégio. Ele tem um relacionamento com a também professora (de artes) Milla (Milla Suzart), que descobriu recentemente sua gravidez. Os dois se relacionam com o radialista com pinta de cowboy Igor (Igor Santos), que embora tenha medo do futuro e daquela relação, quer um lugar naquele seio familiar. A abertura dessa vivência muito livre, na qual todos têm liberdade para ficar com quem quiser, causa um rebuliço na cidade. Tudo o que o trio quer (em breve um quarteto com a chegada do filho Heitor) é poder viver sem medo seu amor. Porque tão difícil? Algo interessante em “A Cidade do Futuro” é a relação dos atores com seus “personagens”. Eles vivem versões de si mesmos, em uma história criada pelos cineastas, mas com muita influência da vivência daquele trio. Com 75 minutos de duração bem aproveitados, o filme comove e faz pensar, transformando uma história de amor não usual em um manifesto pela liberdade. Em uma época em que ainda vemos massacres irracionais e discursos recheados de ódio, é importante que o cinema apresente algo repleto de amor, sem preconceitos ou barreiras. Se o filme de Claudio Marques e Marilia Hughes as vezes soa didático, é porque ainda se mostra necessária certa introdução a conceitos como o poliamor e relações poligâmicas ao grande público, visto que estamos bem longe desse futuro a que o título se refere.

* Rodrigo de Oliveira é jornalista, membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), locutor e crítico de cinema da rádio Unisinos FM, co-editor do site Papo de Cinema e editor-chefe da revista digital Almanaque21; integrou o júri Abraccine no 5º Olhar de Cinema de Curitiba

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