Luciano Ramos*
Memória
(Carlos Drummond, 1959)
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão
Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Ao se aproximar a 20ª Mostra de cinema de Tiradentes – em cuja edição número 19, do ano passado, o mestre Andrea Tonacci foi homenageado pelo conjunto de uma obra de tal modo única, que desafia a atribuição de qualquer adjetivo — lembramos que ele faleceu há pouco menos de um mês. E pode já ter sido esquecido: seu trabalho mais recente “Já Visto, Jamais Visto” não será exibido naquele evento, mas dificilmente deixará de ser comentado naquele que é o Festival brasileiro mais seriamente dedicado ao cinema de invenção.
Concluído em 2013, por conta de um edital que impedia a sua duração de ultrapassar 54 minutos, o filme de fato não foi mostrado no circuito comercial, mas já foi exibido em centros culturais paulistanos, como o CINUSP, Cine Olido, CCSP e outros espaços ligados à empresa pública SPCine. Os admiradores e estudiosos desse criador de obras especialíssimas como “Bang Bang” de 1970 e “Serras da Desordem” de 2006, têm um bom trabalho pela frente, porque “Já Visto, Jamais Visto” ainda não pode ser encontrado, nem mesmo e em sites da internet, como o Youtube.
Trata-se de, no mínimo um desperdício, para não dizer um crime, uma vez que a obra foi desenvolvida e produzida por meio de recursos públicos, ainda que tenha sido elaborada apenas com o que se chama de “material de arquivo”. Mas nada tem a ver com outras experiências como por exemplo “Nós que aqui estamos por vós esperamos”, documentário de longa metragem de Marcelo Mazagão feito em 1999, apenas com trechos colhidos em arquivos. A diferença é que os fotogramas do filme de Mazagão foram gerados por outras pessoas, enquanto as imagens de “Já Visto, Jamais Visto” vieram todas do acervo pessoal de Tonacci e por ele foram filmadas.
Tudo começou com um forte cheiro de vinagre – que é o odor exalado por rolos de filme em decomposição. Como este se espalhava por toda a casa de Tonacci, ele verificou que quase um metro cúbico dos filmes que ele guardava se achava irremediavelmente perdido. E com eles uma parte da sua memória. Eram pedaços de seus filmes que ele preservou ao longo de meio século de atividade cinematográfica. Mas acontece que as memórias e os registros são inevitavelmente transitórios. Tratam-se apenas de fragmentos passageiros na mente e na matéria.
Daí veio a ideia de rever esse material e, quem sabe, aproveitá-lo de alguma maneira. E ao fazer isso, o cineasta experimentou uma angústia tão aguda quanto inesperada. Chegando ali aos 70 anos, a sua memória também tinha adquirido rugas e perdia flexibilidade. Ou seja, ele não se lembrava com integridade e precisão de todas aquelas cenas, mas, mesmo assim lançou-se à tarefa de dar a elas a forma de um filme.
“Já Visto Jamais Visto”, portanto, nos revela um diálogo entre as lembranças de Tonacci e o próprio esfacelamento dessas recordações. No fundo, trata-se de uma reflexão sobre sons e imagens que permaneceram à margem de uma experiência concreta e se encontravam quase à beira do olvido, ou seja, do esquecimento. Num debate, Tonacci afirmou que “este não foi um filme que eu fiz. Mas, um filme que se fez, dizendo coisas sobre mim. Não há um roteiro prévio, porque o filme nasce de uma ausência, de uma busca da pessoa que eu possa ter sido”.
Para um artista com a bagagem de Andrea Tonacci, geralmente um dos pontos mais valiosos de seu acervo é justamente o seu arquivo. Ou seja, o repositório de suas lembranças, bem como dos seus projetos – tanto os já realizados quanto aqueles ainda na condição embrionária de anotações e rascunhos. Quando esse artista é um cineasta, é inevitável que esse memorial adquira a forma de sons e imagens, passíveis de envelhecimento e deterioração. Quem sabe, justamente por causa isso, boa parte de sua atividade foi voltada para o gênero documentário, dentro do qual concebeu obras-primas. Em 2006, ele lançou “Serras da Desordem” – obra que eliminava as tradicionais fronteiras entre ficção e documentário.
Até por conta dessa opção criativa, é inevitável que a mencionada “gaveta” contivesse alguns projetos apenas esboçados, como “A mulher do Mafioso” (1973) e “Paixões” (1994). Foi de lá que veio a matéria prima agora retrabalhada para formar a obra ficcional de 54 minutos batizada como “Já Visto Jamais Visto”, concluída em 2013. O resultado impressiona pela insuspeitada coerência de tantos fragmentos visuais e afetivos reunidos pela habilidade da montadora Cristina Amaral.
A matéria prima do filme se apresenta como um diálogo entre as memórias de um autor e as imagens que filmou e guardou ao longo de 50 anos. Não se trata de uma autobiografia, mas de retalhos de uma vida dos quais emerge uma narrativa feita de imagens que permaneceram “à margem da memória” e de reminiscências à beira do esquecimento.
*Luciano Ramos é radialista e crítico de cinema.