Cultuado e esfíngico: o duplo jogo em Andrea Tonacci

Andrea Tonacci em 2009 (Foto: Juliana Vasconcelos)

Andrea Tonacci em 2009 (Foto: Juliana Vasconcelos)

Humberto Pereira da Silva*

Andrea Tonacci (1944) é um, mas não mais que um… caso revelador de certas idiossincrasias no cinema brasileiro: processo criativo descontínuo, inconstante, exposto a humores distintos, de explícito diálogo difícil além de panelas fechadas, arredio a determinado contexto de produção e à submissão a ritos de conveniências do mercado exibidor, concebido em ritmo de aventura, como se resultasse de desmedida obsessão pessoal… Cada um destes destaques, em si, diz muito do que na realização de uma obra fílmica envolve tanto de perseverança, de desafio às adversidades, mas igualmente de boa dose de insensatez, de empreendimento quixotesco.

Assim como Mario Peixoto com seu mítico “Limite” (1931) – tomando outra referência em que o culto de obra e o culto de personalidade artística cruzam-se num jogo de fronteiras tênues –, Tonacci e sua obra se exibem ao mesmo tempo em que se escondem e se ausentam num lúdico esconde-esconde, no qual se mantêm em evidência, não passam despercebidos. Desta forma, nas opções que fez para se envolver, sobreviver e transitar no mundo do cinema, um cineasta septuagenário, uma das referências marcantes no âmbito do debate, do impulso aventureiro e romântico em nosso cinema. Tamanha relevância foi alcançada, contudo, com apenas e tão somente dois longas-metragens na bagagem: “Bang Bang” (1971) e “Serras da Desordem” (2006).

Separados um do outro por trinta e cinco anos, estes dois filmes são faróis que por motivos diversos iluminam momentos históricos distintos – em certa medida desconectados de linha cronológica que balize a filmografia nacional –: o cinema “marginal”, de ruptura nos anos de chumbo da ditadura, portanto de cunho e pretensões estéticas fortemente políticas; e o cinema “irrelevante”, no contexto recente em que se pauta a discussão sobre o prestígio, a “relevância” de uma filmografia, pois, a partir de resultados nas bilheterias – ou seja, em que a incursão na aventura artística traria um ar de inconsequência, de romantismo démodé em tempos de pragmatismo liberal, ou de impostura contraproducente.

O longa-metragem Bang Bang completa um círculo que se pode despretensiosamente chamar de primeira fase da obra de Tonacci, que começa com o curta-metragem “Olho por Olho” (1966), e segue com o média-metragem “Blá Blá Blá” (1968). Ao lado de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, entre outros, Tonacci e seu “Bang Bang” se inserem no contexto de produção do “cinema marginal” (na pena do crítico Jairo Ferreira será chamado “cinema de invenção”), que vai mais ou menos de 1968 até 1972. A filmografia daquele período foi fortemente marcada, tanto pela ruptura com códigos de linguagem (em grande parte tendo por contraponto determinada monumentalidade épica e alegórica do Cinema Novo), quanto pelo clima de desbunde de uma geração que punha em xeque a conveniência de padrões de comportamento.

Mal-estar, com a conotação devida que lhe é dada em importante ensaio de Sigmund Freud, talvezseja a palavra-chave que caracterize o espírito de época nos realizadores do “cinema marginal”. De fato, os filmes daqueles anos expressam desconforto, certo estado de transe psicodélico que implode fronteiras entre razão e desrazão, delírio e realidade, coerência e absurdo, inconsciência e consciência (o Id e o Eu)… Considerado o jogo entre pulsões extremas, “Bang Bang” não só é um dos investimentos fílmicos mais radicais, e por isso mais marcantes, quanto num paradoxo um dos retratos mais lúcidos e acabados do sentido de desatino em um dos períodos mais terríveis de nossa história política.

De modo que Bang Bang é simultaneamente louco e coerente painel da ausência de sentido para qualquer ação num momento em que a opção pela criação artística é também metaforicamente pela fixação em um lado da trincheira no campo de batalha (o título do filme a esse respeito não é mera coincidência…). Trata-se, assim, de uma fita em que nenhum fotograma – nenhuma das sequências fragmentadas, disruptivas, desconectadas de construção narrativa – seja ingênuo, ou descolado do contexto político em que foi concebida. Ou seja: sem que temáticas e situações políticas sejam explicitadas de maneira estrita, o tom de deboche, de farsa, de sarcasmo, faz dele uma das realizações artísticas mais politizadas com o que era possível fazer emergir o político naqueles anos.

O que faz do filme um esquizofrênico retrato de época – e que do ponto de vista da pintura guardaria similitude com as telas grotescas do alemão George Grosz, pintadas no conturbado intermezzo da República de Weimar – é a maneira como Tonacci realiza um filme em que não é possível estabelecer um fio narrativo no qual alguma ação seja esperada. “Bang Bang” é composto de ciclos que são sugeridos, mas que nunca se realizam: situações expostas sem desfecho, que não estabelecem relação nem com a situação antecedente e tampouco com o que vem depois. Por isso, os personagens são errantes, surgem sem “quê” nem “por quê”, se deslocando a esmo de um lugar para outro, indicando que alguma coisa aconteceria – mas nada acontece…

Nesse sentido, como reflexo do espírito de época, duas sequências são emblemáticas da filosofia de fundo que acompanha o filme. Paulo Cesar Pereio, o “quase mocinho”, constantemente perseguido por três figuras tão bizarras quanto grotescas, entra num táxi, esbaforido e aos atropelos; ele pede ao taxista para seguir em frente sem dar indicação de destino, ao mesmo tempo em que inicia discussão sem pé nem cabeça com o atordoado taxista. Em outra sequência, novamente esbaforido e atabalhoado, Pereio entra num bar e encontra um bêbado; com este, novamente ele trava conversa sem pé nem cabeça e, sem mais nem menos, da conversa sem direção Pereio se dirige à “quase mocinha”, que estava à mesa do lado; com ela, uma descabida falsa encenação de encontro fortuito – e novamente a conversa não acontece…

Nas duas situações um personagem em fuga, perseguido, esbaforido, e que não consegue expressar minimamente como se sente, o que se passa consigo e como vê os circundantes com os quais tromba a todo instante. Qualquer semelhança com o quadro opressivo da época, portanto de pânico, de paranoias persecutórias, entendo não ser mera coincidência. Sem que tenha tido intenção notadamente explícita, Tonacci – consideradas essas duas sequências ao acaso – captou o espírito daqueles anos com intensidade e profundidade que, com demarcação política explícita, em outros filmes do mesmo período ficou nas intenções.

Depois de fazer “Bang Bang”, e com ele fechar um ciclo em sua carreira – e sintomaticamente do cinema nacional com o provocador cinema de invenção –, Tonacci poderia restar em seu canto, alimentar o culto em torno de sua persona e de seu filme referencial numa posição distante, alheia: não fizesse mais nada, não há como escrever com seriedadee consistência a história do cinema nacional sem incluir “Bang Bang”.

E realmente Tonacci se recolheu e abriu mão do veio inovador, anárquico, vanguardista, passando a se dedicar a filmes institucionais com apoio da Fundação Guggenheim (escolhas são escolhas e nada tão moralizante quanto diante de uma escolha fazer juízo de valor e falar como se fosse conselheiro, indicando o que é certo e errado). De qualquer escolha cabe simplesmente o registro, a fim de que se possa compreender um trajeto e, eventualmente, extrair relações de causalidade: assim, com a opção que fez é como se colocasse uma pedra em sua efervescência criativa de juventude e deixasse para a posteridade, como se fizesse por cálculo prévio, o que cabe à posteridade.

Mas Tonacci, como outros criadores de sua estirpe, não se oferece como artista de decodificação trivial. Sua obra e suas escolhas não se explicam por meio de manuais ou receitas prescritivas para incultos. Se as reais intenções nas ações de personagens de Bang Bang são enigmáticas, esfíngicas…, outrossim, seu temperamento não o é menos. E sorte que, depois de tanto tempo em relativa reclusão, ele traz à luz “Serras da Desordem”. E com este filme um curioso paralelo entre narrativa fílmica e a própria trajetória do criador. No filme, um personagem da tribo Guajá, o índio Carapiru, a fênix que ressurge das cinzas; o criador, o artista que sai de longo período de hibernação e se põe em cena, em novo contexto político, como avis rara, como personalidade hors concours.

Obra singular, em certo aspecto inclassificável (podem-se ver pontos de contato com Nannok, o Esquimó, de Robert Flaherty, ou Les Saisons, do armênio Artavazd Pelechian), “Serras da Desordem” é um documentário que mostra a versão ficcional de Tonacci sobre a vida de Carapiru (a diegese alterna encenações com figurantes, registros de arquivos, depoimentos e sequências com o próprio Carapiru, que interpreta a si mesmo). Os índios da tribo Guajá foram massacrados por grileiros em fins da década de 1970, mas Carapiru escapou ao massacre e vagou perdido na mata por dez anos. Com poucos diálogos, o filme mostra a vida de Carapiru antes do ataque, as dificuldades da sobrevivência isolado, a difícil adaptação com os brancos após ser encontrado e o retorno à sua tribo.

Em entrevistas sobre as razões de levar para a tela a história de Carapiru, Tonacci revela que foi tocado pelo sentimento de perda e do reencontro. Guardadas as diferenças de cultura e civilização é como se, no plano simbólico – algo como as figuras arquetípicas de Gustav Jung –, a história narrada se assemelhasse à sua própria vida; ou, fazendo valer a máxima do dramaturgo romano PúblioTerêncio: “Sou humano, nada do que é humano me é estranho”. Por mais abscôndita que seja uma experiência, dela não se podem esconder resíduos do humano: por isso, nela, uma centelha do que é comum à humanidade.

Projeto arrojado, para o qual foram consumidos vários anos de pesquisa, viagens e reelaboração do roteiro, a par dos sentimentos de perda e de reencontro, com “Serras da Desordem” Tonacci volta à cena e realiza um filme “irrelevante”, e assim lembra aos preocupados com bilheterias que no cinema não há caminho de mão única. Ao adotar a postura de confronto com certa expectativa dominante, portanto trazer embutido neste filme uma patina de romantismo nos moldes de Jean-Jacques Rousseau e seu Emílio, Tonacci coloca em pauta questões caras e invariavelmente postas embaixo do tapete: a tensão desconfiada entre indivíduo e sociedade, história e fábula, vida e representação, natureza e civilização.

Com “Serras da Desordem”, inegável indagar o que este filme retém de “Bang Bang”: o que permitiria identificar marcas que revelassem um estilo, uma constante temática, mesmo longínqua. A resposta não é fácil, e talvez inócua sem reflexão balizada sobre o que está em jogo no processo criativo de um artista cuja complexidade não se encerra em clichês de ocasião. Mas não é de todo absurdo ponderar que certos artistas parecem dotados de capacidade invulgar para lampejos: em condições específicas, conseguem realizar num impulso o que outros – mesmo igualmente tão geniais – carecem de maior ou menor tempo de maturação. Ou seja: deles, apenas fortuitamente se pode falar no conjunto da obra, pois de fato eles são tomados por pulsões que os levam ao essencial de uma situação, de um momento, num coup d´oeil – em decorrência, numa obra única, atingir a excelência.

Entre esses raríssimos artistas geniais eu incluo Andrea Tonacci, “Bang Bang” e “Serras da Desordem”, cada qual com suas inquietações, revelam que à criação não cabe se confinar em formas fixas, em padrões que se repetem e se aprimoram; cada qual em sua época e um foco de luz sobre a realidade do país. Na década de 1970, o quadro opressivo da ditadura e um personagem em fuga; neste início de século, com o infortúnio da tribo Guajá, o ensejo para tratar do enorme hiato que separa populações litorâneas nos meios urbanos de índios que “teimam” viver no interior profundo: qualquer semelhança com o quadro de má vontade diante do Outro na recente eleição presidencial não é mera coincidência.

* Humberto Silva é professor e crítico de cinema; texto originalmente publicado em Cinequanon.

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