ROMA, um filme delicado

roma

Marcelo Ikeda

ROMA é um filme delicado. É surpreendente que um cineasta consiga fazer esse filme depois de HARRY POTTER e GRAVIDADE. Mais surpreendente ainda que uma rede blockbuster online promova um filme como esse. É indiscutivelmente um filme de cinema. Ainda que eu adore o ritual de ver filmes numa telona, não tenho pudor em vê-lo numa telinha. Vi NOSTALGIA do Tarkowski numa TV de 18 polegadas quando passou de madrugada na CNT e chorei e nunca mais fui o mesmo. Devemos lutar pelo ecossistema das salas de cinema mas uma coisa não necessariamente canibaliza a outra, e acredito que se complementam. O cinema sonoro, a televisão, o videocassete, o vídeo não destruíram o cinema mas ofereceram outras formas de transformá-lo. Assim é a internet. Agora a onda é o Netflix. Se não fossem a internet e o computador eu não teria acesso a tantas obras que mudaram a minha vida (viva o MKO!!!).

Não acho que ROMA exotize o trabalho escravo. Não acho que o filme transforme a miséria em espetacularização, voyeurismo ou fetichismo. Vi o filme como a exposição do convívio – paradoxal e complexo – entre exploradores e explorados, mas olhando a partir do seu humanismo e não de manuais de panfleto. A protagonista sofre mas mantém-se sóbria e digna – não é passiva mas zen, como uma personagem de Mizoguchi ou Naruse. O filme não adere a nenhum tipo de revolução mas de observação das nossas contradições como sociedade. A atenção ao percurso do tempo, aos pequenos gestos dos personagens e especialmente a importância dos grandes planos gerais mostram a delicadeza do diretor. Essas opções, para mim, revelam que o filme não é meramente esteticista ou que é simplesmente repleto de adereços ou penduricalhos, mas, ao contrário, há um rigor que se aproxima de um certo laconismo.  Acho que a beleza do filme é razoavelmente discreta (adoro as cenas em que a empregada não consegue limpar os cocôs do cachorro na garagem). Decerto que Cuarón não é um Hou Hsiao-Hsien nem um Bresson nem uma Kawase nos seus primeiros filmes. Mas, por outro lado, ele certamente não é um Dolan, um Aronofsky, um Von Trier (tardio), um Lanthimos ou um Ceylan (ou um Zvyagintsev – acho que acertei o nome rs) – esses últimos, sim, todos esteticistas e narcisistas.

Achei ROMA bonito mas gostei mais de LAZZARO FELICE. Há algo em comum entre as duas personagens que mereceria uma melhor reflexão. Uma forma de resistir que não se dá pela violência mas pela ternura. Parecem indiferentes mas na verdade reagem de forma humana à desumanização, meio como o Balthazar de Bresson. De qualquer forma, acho interessante ver tanta gente na minha bolha social comentando um filme. Precisamos falar sobre cinema, mesmo que não concordemos. Ou sobre música, teatro, sobre arte, sobre vida. Espero que isso gere algum tipo de energia que nos faça mover.

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ROMA e LAZZARO FELICE: dois dos mais interessantes filmes recentes apresentam um panorama político do nosso tempo por meio de protagonistas expressivas. Há algo em comum entre essas duas personagens (Cleo e Lazaro) que mereceria uma melhor reflexão.  Num momento em que muitos se voltam para o ódio, o ressentimento ou a violência como forma de expressão das minorias oprimidas, esses filmes se voltam para uma outra via, ligada à observação de pequenos gestos, de personagens que buscam uma inesperada forma de afeto mesmo quando seu entorno os empurra para a brutalidade. A sua forma de resistir é apresentar uma serenidade estoica, que alguns podem confundir com uma alienação mas na verdade não são personagens passivas mas zen. A beleza do comportamento dessas personagens é que apresentam uma forma de resistir à crueldade do mundo que não se dá pela violência mas pela ternura. Parecem indiferentes mas na verdade reagem de forma humana à desumanização, meio como o Balthazar de Bresson. Os dois filmes optam por expressar a crise de valores de um entorno por meio do curioso ponto de vista dessas personagens e de seu suposto distanciamento em relação ao mundo. Esses personagens resistem porque conseguem viver de outra forma, porque conseguiram não incorporar em seus corpos, em seus olhares ou em suas almas os modos de ser dos opressores. Eles OPTAM em não se deixar contaminar e testemunham o desmoronamento do mundo de seus patrões.

Os dois filmes apresentam uma certa reflexão sobre o sentido da liberdade (a relação entre vontade e natureza). Por isso, citei o estoicismo, pela sua ênfase na ética (vejam que segundo o próprio título Lazaro é FELIZ) Mas isso é uma outra história.

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