Roma

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Por Luciano Ramos

A Roma deste filme não é aquela chamada de a “Cidade Santa”. Mas, de fato, um determinado bairro da Cidade do México, que o cineasta Alfonso Cuarón escolheu para ambientar e dar nome a este seu magnífico trabalho. Porque ele teria escolhidos os locais e o nome? O próprio filme vai dizer.

O fato de ter sido finalizado em branco e preto também pode querer dizer alguma coisa: ou seja, a direção de fotografia prefere o brilho à sombra. É mais atraída pela transparência do que pela opacidade. Em termos de dramaturgia, o entrecho revela algumas das diversas “raízes cinematográficas” que lhes deram origem. Uma delas, a mais óbvia é o neorrealismo. Principalmente pela postura de se aprofundar em descrever clara e objetivamente uma situação de gritante desigualdade e até injustiça social, para melhor inseri-la no drama central

O lar que nos é mostrado logo de início, ou antes mesmo da primeira cena, é uma casa de classe média. A primeira imagem do filme é o chão do local, ao ser lavado por uma empregada doméstica que trabalha na residência. Trata-se de Cleo, uma moça de origem indígena que cozinha, lava e passa roupa, além de cuidar dos quatro filhos do casal, todos com menos de 15 anos. Ao final do filme Cuaron vai nos revelar a totalidade dessa residência, que mistura casa grande e senzala no mesmo espaço. Esse é mesmo o fim do filme. No sentido físico e ontológico,

O pai é médico e a mãe editora em uma revista. O marido viaja para o Canadá para uma palestra. O que representa uma mentira planejada porque, na verdade, ele está se separando da esposa. E a viajem serve como desculpa para não chocar o resto da família. Nas primeiras sequências, durante um programa de TV que assistem juntos, todos parecem encenar uma vida em harmonia. O que, a propósito, representa justamente, a função hipnótica e anestesiante da TV naquela época.

Outra possível raiz do filme é recurso ao estilo chamado “cinema direto”, ou cinèma verité, praticado a partir da década de 1960, no qual a expressividade dos objetos e das pessoas filmadas era o que bastava para contar uma história. Note-se a importância da sequencia que ilustra o descompasso entre o tamanho dos automóveis e o da garagem onde eles deveriam ser guardados. Esses vestígios, assim como a quantidade de pontas de cigarro no cinzeiro do carro, indicam algo sobre o desequilíbrio do casal. Acrescente-se como sintoma, numa visão freudiana, a desmedida irritação do dono da casa em relação à sujeira causada pelo cachorro.

Logo nas primeiras cenas, percebe-se a habilidade de Cuaron para reconstituir a vida cotidiana daquela época, com todos os seus detalhes de mobiliário e movimentação urbana. É impressionante a sequencia em que alguns personagens saem de casa para ir ao cinema. Eles passam pelo ruidoso centro da cidade à noite, em meio a um trânsito bastante movimentado, com automóveis, ônibus e até um bonde. Tudo ensaiado e sincronizado, numa coreografia com dezenas de atores e figurantes. De tão complexa, essa seria uma proeza quase impossível, se o cineasta não tivesse enfrentado anteriormente desafios dessa natureza. Foi o que demostrou ao realizar um drama filosófico e existencial em pleno espaço interplanetário. Falamos do elaborado Gravidade, que ele lançou em 2013, com Sandra Bullock e George Clooney.

Aqui vale assinalar a piada que o diretor faz consigo mesmo. Em Roma, ele incluiu uma espécie de breve paródia de Gravidade, exibida no interior do cinema e vista pelos personagens de Cleo e Firmim. Trata-se de um título fictício chamado no filme de “Atrapados en el espacio” (prisioneiros no espaço) no qual vemos dois astronautas enfrentando problemas numa viagem espacial. Isso só para dizer que o humor é outra raiz narrativa adotada por Alfonso Cuarón. O humor quase etnográfico de Cuarón também se manifesta em sua descrição da rua em que mora a família dos personagens. Em geral silenciosa, no filme ela é frequentemente cortada por “ruídos de época”: por exemplo, o apito do amolador de facas e uma banda militar mortalmente desafinada, que passa algumas vezes diante da câmara. Esse aspecto de pantomima surge na sequencia em que o namorado de Cleo aparece praticando artes marciais, sob a orientação de um treinador caricato, ao teorizar a respeito do “domínio da mente sobre o corpo”. A graça está no contrate entre a precisão nos movimentos dos praticantes e as atitudes ridículas do treinador.

Cuaron mantem o seu lado jornalístico fora de cena e bem comportado. Mas o chamado mundo real invade espaços que não eram para ser filmados. A favela de Cleo e Firmim. As greves e manifestações, as tropas armadas e a gritaria dos protestos entrem no filme sem pedir licença. E a violência chega muito perto dos personagens centrais. No entanto, a marca mais poderosa do diretor é a carga emocional, que permanece depositada principalmente na personagem da criada Cleo e em sua relação com as crianças da família. As sequencias da maternidade e de Cleo na praia são recriadas de modo impecável, com credibilidade plena e total.

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