Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil
Humberto Pereira da Silva
Os quatro anos de Paulo Henrique Silva à frente da presidência da Abraccine (2015-2019) são marcados pelo impulso e estímulo à produção de livros: nove, no total, o que dá ideia de empenho, dedicação e aposta de que o fortalecimento da entidade passa pela visibilização da atuação crítica (nesse sentido, importante registrar, além do trânsito nos júris de festivais, instante de aproximação entre seus membros). O carro chefe das publicações é 100 Melhores Filmes Brasileiros, que resultou de eleição dos 100 melhores filmes nacionais pelos próprios abraccineiros. Esse livro, creio, simboliza o esforço do então presidente para pôr em cena o assunto cinema: desnecessário dizer que qualquer lista de “melhores” gera controvérsia simplesmente ao ser mencionada.
A Abraccine, de qualquer forma, estimulou e abraçou projetos diversos de listas com os “melhores”. Destes, destaco aqui o que resultou no livro A Trajetória da Crítica de Cinema no Brasil (Editora Letramento, 449 págs.). Trata-se, no que se refere ao esforço de pesquisa, mapeamento de contextos com especificidades locais e aprofundamento de embates ideológicos, do projeto mais ambicioso e de difícil realização. A “trajetória” cobre a produção crítica de 23 estados, incluindo a do Distrito Federal. A se imaginar, portanto, a dificuldade e risco em texto contemplando a crítica de cinema em Tocantins, cuja existência ultrapassa apenas três décadas. A se imaginar, em contraponto, o esforço de concisão para escrever sobre a produção crítica em estados como São Paulo e Rio de Janeiro.
Cabe observar então que Paulo Henrique, organizador do livro, optou por um procedimento no qual cada autor tivesse liberdade para escrever. Ou seja, os textos não são gessados por uma fórmula padronizada. O itinerário e tamanho dos escritos seguem os humores e peculiaridades de seus autores. Cabe observar, igualmente, que a “trajetória” de cada estado foi tratada de modo autônomo, sem que houvesse interconexão entre os autores. Essas opções do organizador trazem vantagens e inevitáveis questionamentos, o que, claro, realça a dificuldade do projeto.
Por um lado, todos os artigos são arejados, livres, descrevem e acentuam o estado da arte em cada estado. O que permite ao leitor acesso a informações e detalhes que estavam opacos num país de dimensão continental, no qual em São Paulo ou Rio se tem pouquíssimo contato cultural, em sentido amplo, com o que se passa no Acre ou no Piauí. Como se estabeleceram salas de cinema nesses estados? Como se deu neles a recepção de filmes e a criação de espaço de discussão? Assim, ainda que de modo indireto, Trajetória da Crítica sinaliza para uma questão de fundo: as relações de dominação entre estados centrais – o eixo Rio-São Paulo –, e o que sociólogos denominam como “Brasil profundo”, a chamada periferia no subdesenvolvimento, para pegar um clichê caro a Paulo Emílio Sales Gomes.
Por outro lado, a falta de conexão entre os autores gera no leitor um inevitável sentimento de fragmentação com respeito aos trajetos estudados. Com isso, a falta de organicidade, que permitiria entender a crítica como um movimento que não se confina a especificidades locais. O ambiente em que se forjou a crítica de cinema em Minas Gerais na década de 1950, e que levou à criação da Revista de Cinema, conecta-se com a produção crítica de São Paulo, Rio e Bahia. Os escritos sobre esses estados, no entanto, não dialogam explicitamente com o que se fez em Minas. Apenas de modo indireto o leitor faz essa interconexão. O diálogo entre os textos, ainda, poderia aclarar a influência que o “paulista” Jean-Claude Bernardet exerceu, por exemplo, na crítica do Espírito Santo. Dessa forma, trazer à tona o sentido profundo das relações entre centro e periferia.
Por que suscita questões dessa natureza, Trajetória da Crítica é um livro que chega para estabelecer um ponto de inflexão. Ele colige um material que estava disperso, restrito a poucos aficionados e com grande possibilidade de se perder nas brumas do tempo (ou se servir tão só para teses acadêmicas lidas por poucos). A esse respeito, assim entendo, oferece dados importantes sobre a formação dos mais variados cineclubes nos mais variados cantos do Brasil, em circunstâncias heroicas, ou românticas, e que expressam profunda paixão pelo cinema. Em decorrência, o livro revela nomes e personagens que merecem toda a atenção pelo impulso que deram a inciativas que, na ordem do capital, podem ser tomadas por quixotescas, mas que dizem muito sobre os caminhos da cultura na periferia do capitalismo.
A se ressaltar, sobretudo, que para mim o grande mérito nesse livro organizado por Paulo Henrique incide sobre a enorme importância de se legar um trabalho de resgate da memória nacional, com foco na atividade crítica em cinema. Não se trata, bem entendido, de uma “história da crítica” em grande parte dos estados, mas de um painel com destaque para momentos capitais em nossa vida cultural. Assim sendo, um registro que nos faz ver que, como nossa própria filmografia, a crítica está sujeita a ciclos, a percalços que geram instabilidades e inconstâncias. O exercício da crítica de cinema entre nós é uma aposta de grande risco, sujeita a injunções variadas. O que Trajetória da Crítica mostra com toda clareza é que, com possível exceção do Estadão, jornal paulista, praticamente não há espaço que tenha sobrevivido por mais de três décadas…, e que se mantenha forte na cobertura de cinema. O livro se fecha com artigo de Bruno Carmelo, a respeito da crítica de cinema na internet. O tom? A enorme dispersividade no momento, o que implica, paradoxalmente (pois a internet oferece a pluralidade de pontos de vista), na diluição de embates que parecem se confinar aos temperos das circunstâncias. O texto de Carmelo traz implicitamente um vaticínio: mais algumas décadas e, como no resgate da crítica nos anos de Belle Époque no século passado, um novo inventário sobre a aventura da crítica nos primórdios da internet.
Para encerrar, além de ver nesse livro o projeto mais ambicioso da Abraccine, pois denso, resultado de pesquisas rigorosas e que propicia espaço para discussão – tanto na organização levada a cabo por Paulo Henrique quanto nos condicionantes internos dos textos -, torço verdadeiramente para que esse calhamaço não sirva apenas à decoração de bibliotecas. Torço, enfim, para que seja lido por jovens que hoje dão seus primeiros passos no cinema, e que conheçam pouco sobre como se constituiu e se desenvolveu o ofício crítico entre nós.