João Batista de Brito *
Nenhum país do mundo mata mais LGBTs que o Brasil. Segundo as estatísticas, só no ano de 2018, foram 320 (trezentos e vinte) assassinatos, quase um por dia. Situação vergonhosa que deve piorar, se considerarmos a linha visivelmente homofóbica e armamentista do governo em vigência.
Daí a importância de um filme como Indianara (2019), exibido (e premiado) entre nós na décima quarta versão do Fest-Aruanda, festival anual de cinema paraibano. Mas não só daí.
Bem roteirizado, bem montado e bem dirigido, o documentário da dupla Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel acompanha o dia a dia dessa líder transgênero Indianara Siqueira que, com heroísmo admirável, mantém, no Rio de Janeiro, uma espécie de ONG para auxiliar toda uma população LGBT a sobreviver ao meio do preconceito e da violência.
A chamada “Casa Nem” acolhe e abriga prostitutas, gays, lésbicas, trans e bissexuais, gente sem recursos para se manter por conta própria ou, se for o caso, para progredir e profissionalizar-se. Muitos deles foram expulsos de seus lares – ou deles fugiram por não aguentar maus tratos – e, não fosse Indianara e seu projeto filantrópico – estariam nas ruas, em condição de mendicância.
Natural de Paranaguá, Paraná, a jovem Indianara saiu de casa aos dezoito anos de idade para fazer a vida e a vida não foi fácil. Sem moralismos, abraçou a profissão de prostituta, que a levou a Santos e de lá ao Rio.
Mas, atenção, o filme não é – nem pretende ser – uma biografia. Mais modesto, ele apenas registra cerca de dois anos (de 2016 a 2018) na vida de Indianara, no caso, misturando momentos privados do seu cotidiano com o esposo Maurício e cenas públicas quando a ativista trans, nas ruas e às vezes de peito aberto (literalmente) enfrenta multidões, polícia e autoridades, com seu inflamado discurso libertário e demolidor de hipocrisias. Tanto é assim que nem direita, nem esquerda, escapam de seus ataques. Seu desentendimento com o PSOL, por exemplo, vem à tona com o mesmo furor com que denuncia o falso moralismo da direita.
Esses dois anos de filmagens coincidiram com o governo Temer e, inevitavelmente, estão registrados os protestos de rua que marcaram essa fase da história brasileira. Como grita Indianara em ocasião de desabafo: “não chamem Temer de filho de puta. Putas somos nós, e ele não nosso filho. Ele é filho de Cunha”. No meio desses protestos, dois momentos são particularmente significativos, pela sua desoladora disforia: a ocasião do assassinato de Marielle, e a vitória nas urnas de Bolsonaro – duas “mortes” recebidas pelo grupo LGBT com profunda tristeza.
E por falar em mortes, a primeira cena do filme já se dá no cemitério, onde Indianara e o pessoal da “Casa Nem” sepulta o corpo de uma amiga LGBT: em dado momento, com um travelling por sobre os túmulos, ouve-se a voz da protagonista, nos lembrando que os vermes não distinguirão entre trans, bis, homos e heteros…
O filme não é, porém, um amontoado de desolações. Ele tem seus momentos de alegria e descontração – por exemplo, nas brincadeiras com os amigos, nas farras, e nos instantes mais privados em que Indianara troca miudezas com o esposo, os dois deitados na sua cama de casal. Dois auges dessa euforia são a comemoração do aniversário da protagonista em via pública e o ritual do seu casamento com Maurício.
Em que pese a cena do anúncio da vitória de um presidente homofóbico, vista na televisão da “Casa Nem” pelos seus residentes em pranto, em que pese esta cena – uma das mais emblemáticas do filme, por apontar para um futuro incerto e temeroso, – acho que Indianara mesmo assim, nos deixa com alguma esperança. Se não for outra, a que brota da força, determinação, carisma, charme e beleza de sua protagonista.
Com sua aisance no andar, seus olhos amendoados, seus lábios grossos e seus seios generosos, a mim, ela (presente no Fest-Aruanda) me soou como uma espécie de Anita Ekberg brasileira. Torçamos para que um dia ela possa banhar-se livremente na sua Fontana di Trevi sem ser molestada. O seu Mastroianni ela já tem.
Indianara concorreu à “Palma queer” no Festival de Cannes deste ano, onde, segundo consta, foi ovacionado em três sessões especiais. Esperemos que o sucesso em festivais de cinema conduza o filme a um público maior, se possível, aos circuitos comerciais. Os parentes e amigos dos 320 LGBTs assassinados o ano passado, com certeza, agradeceriam.
* João Batista de Brito integrou o júri Abraccine do 14º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro