Luciana Veras*
Ao ver a relação dos filmes premiados no 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e tirar conclusões só e somente só a partir dela, qualquer pessoa há de inferir que houve uma valorização do cinema feito por mulheres. A febre, de Maya Da-Rin, levou seis “Candangos”, inclusive melhor longa e melhor direção, o que fez da realizadora carioca uma das seletas integrantes do conjunto de mulheres a ser agraciadas com o prêmio máximo no festival – menos de dez em toda a história deste que é um dos mais longevos e politizados eventos cinematográficos em solo pátrio. Os três principais prêmios na competição de curtas-metragens – filme, direção, roteiro – foram dados para três obras realizadas por mulheres – respectivamente, Rã, de Ana Flavia Cavalcanti e Julia Zakia; Alfazema, de Sabrina Fidalgo, e Carne, de Camila Kater. E o prêmio de melhor atriz na mostra competitiva de longas foi para a pernambucana Anne Mota por Alice Júnior, de Gil Baroni, com um relevante detalhe: ela é uma jovem trans em seu primeiro papel.
E então sim, sim, foi uma noite histórica a que transcorreu no último dia 30 de novembro, no Cine Brasília, onde ao longo desta 52ª edição já haviam acontecido episódios de autoritarismo e censura, como relatado aqui, e de agressão e misoginia, como foi noticiado no Papo de Cinema e no Cineweb. Tanto pelo resultado atribuído pelo júri presidido por Cacá Diegues e formado por Bruna Linzmeyer, Carmen Luz, Bianca De Felippes, Jimi Figueiredo, Artur Xexéo, Pablo Vilaça nos longas, e por André Dib, Lorenna Montenegro, Takumã Kuikuro, Kátia Coelho e Carlos del Pino nos curtas, mas principalmente pelo “extracampo” – para além do jogo cinematográfico do campo/contracampo, por tudo aquilo que não se vê no quadro, tudo aquilo de que o plano não dá conta.
Sim, sim, se Piedade, longa do diretor pernambucano Cláudio Assis, levou direção de arte e ator coadjuvante para Cauã Reymond, e o próprio Assis recebeu o prêmio especial do júri e no seu discurso mandou um sonoro “Foda-se” para o atual presidente da República Federativa do Brasil, houve a leitura da Manifesta, texto escrito por várias mulheres (realizadoras, produtoras, atrizes, jornalistas) e declamado por elas no palco. Para lá subiram depois que a cineasta carioca Sabrina Fidalgo as convidou após receber o seu primeiro prêmio por Alfazema, o curta-metragem que lhe daria, ainda, o troféu de direção. Entre outras reflexões, a Manifesta propunha que as produções audiovisuais interrompessem “a exploração irresponsável de nossos corpos nas telas – não precisamos mais de imagens de mulheres violentadas” e lançava uma reflexão à curadoria: “A curadoria de um festival deve pensar a multiplicidade de gênero, raça, sexualidade e territorialidade e não deve validar discursos feminicidas, racistas, lgbtqifóbicos e gordofóbicos” (eis o registro em vídeo da performance).
É possível compor um diagrama a partir de quatro curtas-metragens exibidos e premiados na competição. Angela, de Marília Nogueira; Alfazema, Carne e Rã são obras cujo discurso espelha o cuidado com a representação feminina, obras cuja forma referenda a capacidade de realização das mulheres. Quatro caminhos estéticos distintos, porém unidos por um poderoso liame: é possível, também, enfeixar tais obras à luz dos preceitos defendidos na Manifesta, porém elas, por si só, já se impõem. Como suas realizadoras se impuseram ao falar no Cine Brasília, seus filmes sobressaem, firmes torres alicerçadas em princípios éticos e imagéticos, joias raras na iminência de brotar e talvez se tornar não tão raras assim, sementes prestes a frutificar.
Em Angela, a corroteirista e diretora mineira nos apresenta à protagonista, a personagem-título defendida pela veterana atriz Teuda Bara, de modo impactante: os primeiros planos dão conta de que Angela vive sozinha, contudo enredada em uma trama urdida pela solidão, com dezenas (centenas?) de receitas e prontuários médicos colados à parede, como se fossem fotografias de parentes ou dela mesma. Ouvimos, em off, vozes de médicos, enfermeiras, das pessoas com quem Angela deve ter interagido, mas onde estão tais parentes? E onde está ela mesma nessa rotina?
É da solidão da mulher mais velha, de uma mulher mais velha e bem gorda, de que trata Angela. Com sutileza, Marília parece nos lembrar de que não apenas vivemos uma sociedade que não sabe lá como lidar bem com todos os seres que envelhecem, como também parece não abrigar aqueles cujos corpos fogem a padrões – prisões? – de beleza. Angela precisa inventar doenças para se sentir viva, até que um dia sua vizinha Sueli (Gláucia Vandeveld) bate à sua porta e lhe faz um convite, com a mesma delicadeza que nos invade ao ouvir Nara Leão entoar os versos de Tom Jobim e Dolores Duran em Estrada do sol: “Quero que você me dê a mão / Vamos sair por aí sem pensar no que foi que sonhei, que sofri, que chorei / Pois a nossa manhã só nos fez esquecer / Me dê a mão, vamos sair pra ver o sol”
(A música não está na trilha do filme de Marília; foi uma das – múltiplas! – possibilidades de conexões que o curta engendra)
Em Brasília, a realizadora relatou que, dois dias antes de iniciar as filmagens na pequena cidade de Azurita, com cerca de sete mil habitantes (quase todos seus parentes, ou seja, viva a política do afeto e partilha do sensível), descobriu que Teuda não poderia interpretar a personagem tal qual rascunhada no roteiro. “Falei com ela em 2014, para fazer o convite e colocar no edital, e ela estava ótima. Em 2017, descubro que seu problema do joelho está muito pior. Ela não poderia fazer as cenas de caminhadas, e no filme, ela e Sueli se conectavam nas caminhadas. Mas Teuda não tinha condições nenhumas de ficar caminhando para cá e para lá. Precisei pensar em como passar esse conflito narrativo da história, como passar esse sentimento que aconteceria nesse momento, na caminhada, e em como traduzir isso para outro lugar”, relata Marília.
Se ela obteve êxito em sua conversão narrativa? Sim, sim, Angela é atestado disso. Porém, o que Marília Nogueira fez de mais vibrante foi dotar seu curta-metragem de uma “potência”, palavra de que lançou mão ao sublinhar suas escolhas no tradicional debate do dia seguinte no Festival de Brasília: “Queria acreditar em fazer a diferença, em abrir os braços, trazer junto. As mulheres têm o chip da empatia já instalado… Queria essa possibilidade de mudança, que as pessoas saíssem do cinema acreditando que é possível mudar através do acolhimento e da união entre mulheres”. Ela e suas atrizes Alzira Pereira, Antônia de Resende Ramos, Maria José Novais Oliveira (mãe do cineasta mineiro André Luiz Oliveira, falecida há pouco mais de um ano), Glaucia e Teuda nos comprovam que sim, sim, é possível operar transformações via afeto.
O que nos leva a Alfazema e sua vigorosa incursão carnal, afetuosa e policromática pelo Carnaval. É a festa da pele por excelência, disso bem sabemos, e a ela que Sabrina Fidalgo nos convoca, em um recorte bem específico: o que fazer com o boy da folia? Como transcender a uma noite em que tudo o que você, Flaviana (Shirley Cruz), quer fazer é se livrar do cara que insiste em tomar banho na sua banheira – o homem (Victor Albuquerque) cujo pênis adorna o plano inicial do filme. No entanto, a partir daquela locação restrita – um quarto com uma banheira, um falo purpurinado, o espaço exíguo de um cômodo que se revela menor à medida que o encanto carnavalesco se esvai -, o que a realizadora sugere, com a liberdade de um plano-sequência, é a brincadeira com as normas, sejam elas cinematográficas (estaríamos em um filme dentro de outro?), foliãs e angelicais.
“Alfazema nasceu desse jeito: com essa brincadeira da metalinguagem, de rir de si próprio, de confundir um pouco, de falar da brincadeira e da sexualidade do Carnaval a partir do ponto de vista de uma mulher negra. Nos filmes recentes, as mulheres negras estão muito nesse lugar do sofrimento, da violência, e podemos até não falar, mas nós, mulheres negras, gostamos de sexo, de Carnaval, das alegrias”, comenta Sabrina, que aqui erige o segundo episódio da sua trilogia dedicada à carnavália – no primeiro, Rainha (2016), a folia se espraia em uma pequena cidade mineira, onde uma mulher (Ana Flavia Cavalcanti) sonha em se consagrar como rainha da bateria.
É interessante citar Rainha. Não apenas é o filme que principia a trilogia como o início da parceria entre Sabrina e a fotógrafa paulista Julia Zakia. A própria Julia, aliás, reitera a importância de ter embarcado na primeira incursão ao universo carnavalesco (na sobriedade elegante, porém nunca distante, do preto e branco) para depois mergulhar na explosão de cor e liberdade de Alfazema. “Não dá para falar de Alfazema sem falar um pouquinho do Rainha pela nossa conexão, pelo trabalho junto. São muito diferentes, mas na fotografia principalmente, não só pela ausência de cor, mas pela decupagem, pelo trabalho em cada quadro. Alfazema foi uma loucura divertida, uma proposição de ser alegre, de se divertir, de não se estressar: tudo fez parte desse dia e nos deu uma união dentro do que é gostoso de fazer o cinema”, explica a diretora de fotografia, integrante do DAFB – Coletivo de Diretoras de Fotografia do Brasil.
Alegria, alegria… “Escolhi o Carnaval porque, além de ser a manifestação cultural que melhor nos representa, é a nossa grande ópera tropical”, sintetiza Sabrina. E a via do afeto: a diretora recorreu a Juliano Gomes, filho de Elisa Lucinda, seu amigo, para garantir a poeta, atriz e escritora no papel de Deus (“Juliano, pelo amor de Deus, me ajuda. Me coloca sua mãe na fita”). A prece deu certo e Elisa irrompe como Deus mesmo, assim, “a dona da porra toda”. A presença de Elisa em cena é transcendental e, como todo o filme, divertida: ela é um Deus negro que esculhamba aqueles que atrapalham o seu Carnaval (sim, pois Deus também brinca, aliás, talvez seja o que mais brinca!), ela catalisa as tensões entre a diaba (Bruna Linzmeyer) e a anja (anja mesma) vivida por Bianca Joy Porte e ela reconfigura as relações entre Flaviana, o boy e a própria Sabrina, que entra em cena como ela mesma. Alfazema embaralha convenções como quem pega um samba melancólico como Zelão, de Sérgio Ricardo, e o desvia como trilha de uma ode à felicidade, ainda que efêmera, do Carnaval. “O cinema brasileiro quer se afastar da brasilidade, quer ser francês, quer ser blasé, quer ser Godard, mas a gente não é francês, a gente é melodramático, a gente grita, a gente é barroco”, define a cineasta. Não há como duvidar.
Assim como também não se duvida da virtude de Carne, uma jornada pelas fases que atravessam o corpo de uma mulher a partir de uma reflexão sobre os termos usados quando revelamos nossas preferências em um churrasco: crua, mal passada, ao ponto, passada e bem passada. Nessa animação documental, que saiu do 52º Festival de Brasília com o prêmio outorgado pelo nosso júri da Abraccine, as falas de cinco mulheres se entrelaçam com distintas técnicas de animação para falar da vida como ela é. A ativista antigordofobia Raquel Patrício, Larissa Larrau, Raquel Virgínia (vocalista do As Bahias e a Cozinha Mineira), Valquíria Rosa e a atriz Helena Ignez discorrem, vozes sobre tela, acerca de mistérios como os efeitos da menstruação, o climatério, o desconforto propiciado pelo corpo de uma mulher trans e a ameaça que ela sente apenas por existir.
Camila Kater convidou mais outras quatro mulheres para lapidar a animação. A roteirista e diretora não foi para Brasília porque estava na Holanda, exibindo Carne no IDFA – Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, e coube ao montador Samuel Mariani esmiuçar, com muita ciência da “injustiça”, como delicadamente colocou, de falar por um filme “cuja equipe é 95% feminina”: “São cinco capítulos para cinco fases diferentes do corpo da mulher e são cinco técnicas diferentes. Cada capítulo é animado por uma mulher. A primeira técnica foi animada pela própria Camila, com um prato e tinta a óleo, tudo físico, nada de pós; o segundo capítulo foi feito com aquarela, num time lapse em cima de papel, pela Giovana Afonso; a terceira é animação digital, feita pela Flávia Godoy; a quarta é a claymation, a técnica com massa, com argila, feita pela Cassandra Reis; e a última é a animação com película, feita pela Leila Monségur”.
Mesmo na sessão em Brasília, houve quem pensasse se tratar de uma ficção, tamanha a coesão entre os depoimentos e os traços animados eleitos para ilustrá-los. “É um animação em documentário, então não houve um roteiro, todos os depoimentos foram captados de maneira documental e as vozes todas daquelas mulheres deram bastante sentido ao nosso trabalho”, completa Samuel. Um dos trunfos de Carne é justamente a fricção entre a ludicidade da linguagem da animação e o peso daquelas falas. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, brada Elza Soares em uma canção já icônica. E a carne negra de mulher trans? E a carne envelhecida de Helena Ignez? E a carne em sobrepeso de Raquel Patrício? Mas o que atingimos ao cotejar a verdade e a pungência desses testemunhos, crus como uma bandeja de bife no refrigerador do supermercado, com a ternura e a gentileza da animação? Algo muito potente.
Se em Carne o cinema consegue ser afável, até, para falar de experiências violentas, em Rã é o amálgama da nossa existência. Ou, nas palavras da codiretora e atriz principal Ana Flavia Cavalcanti, “um pagode, uma carne, um arroz, um feijão, uma dança, uma criança, um nada, uma televisão… um filme bem brasileiro”. Suas palavras são precisas porque apreendem a experiência do cotidiano de uma cidade suburbana qualquer – no caso do filme dirigido por ela e por Julia Zakia, Atibaia, em São Paulo, onde até hoje reside boa parte da família de Ana. O argumento de Rã vem da “vida vivida, que tem outro tempo da vida filmada”, como lembra Ana: ela morava com a mãe, Val, e a irmã Natinha em uma casa de um cômodo só e uma noite todas foram acordadas com o pedido de um vizinho para guardar uma carga qualquer.
No enredo, Ana e Natinha são vividas, respectivamente, pelas garotas Maysa Cavalcanti e Tarsila de Oliveira Maracy, e é a própria Ana quem interpreta Val, personagem calcado na sua mãe. É uma rede de amor: Maysa é sua sobrinha, Julia foi sua namorada por tantos anos, e durante todo o processo de feitura do filme, é a sua história… “O que é o cinema?”, indagava André Bazin, o teórico dos teóricos franceses, em seu antológico ensaio escrito no final dos anos 1950. Algo que nos atravessa, sobretudo na convergência de linguagens, e que nos impele a produzir imagens como a reter – ou nos prevenir d’ – a acutilância da vida, mas talvez uma das mais genuínas frestas para se mirar a tessitura dessa própria vida.
Por meio desse atravessamento que é o cinema, e dos encontros, Ana Flavia e Julia recontam um episódio singelo ocorrido lá atrás, no meio de uma família negra, em uma vizinhança negra, em um filme em que os negros “não matam nem roubam pérolas da senhora”, parafraseando uma argumentação incisiva da atriz e codiretora no debate do festival. Rã, com a sua atmosfera de coletividade, com a naturalidade da fotografia que em certos momentos se dissipa no quase documental (mérito da diretora de fotografia Alice Drummond, ela que, como Julia, também é realizadora) e com a ideia de comunhão expressa tanto no ritual diário de uma Val que cria suas filhas sozinhas como na partilha festiva de um quintal cheio de gente, é um respiro no Brasil que ainda hoje, mais do que nunca, chacina os jovens pretos, um alento para uma era miliciana e misógina porém passível de muita resistência, uma candura para quem possui e mantém, como Val e sua companheirada de um domingo qualquer, a estranha mania de ter fé na vida.
Nas palavras de Julia, “o amor pela família, pela Val, pela casa, pelos cheiros, pelo carinho, pelo sorriso” são o que ela define como “matéria poética” para filmar, mais importante do que festivais, prêmios e afins: “Gosto do cinema, me considero uma técnica cinematográfica mesmo, mas trocaria tudo isso pela vivência do encontro”. E talvez seja essa a melhor chave: Rã, Carne, Alfazema e Angela são filmes sobre encontros, ou mesmo filmes-encontros, que refletem a nós mesmas ao mesmo tempo em que rasgam uma fenda para que possamos, com eles, reimaginar o mundo.
* Luciana Veras é repórter especial e crítica de cinema da revista Continente, faz parte das Elviras – Coletivo das Mulheres Críticas de Cinema e integrou o júri do 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Foto destaque de Thaís Mallon