31º Cine Ceará: (r)existir na ruína

*Pedro Azevedo

Filmar a ruína não é exatamente um dado novo na filmografia de Petrus Cariry. Em “Mãe e Filha”, filme de 2011, o realizador cearense registra a cidade fantasma de Cococi (no sertão dos Inhamuns) num gesto que se aproxima de uma certa arqueologia dos escombros. Em “A praia do fim do mundo”, seu mais recente trabalho de longa-metragem, premiado pela Abraccine no 31º Cine Ceará, Petrus retoma a ideia da paisagem arruinada como personagem. Ambientado na praia fictícia de Siarema, o filme acompanha o processo de erosão de uma pequena cidade litorânea que assiste o rápido avanço do mar consumir as suas ruas e edificações.

Estrelado por Marcélia Cartaxo (de “Pacarrete”) e Fátima Muniz (de “Pajeú”), “A praia do fim do mundo” narra a relação conflituosa entre uma mãe e uma filha obrigadas a conviver numa pousada decadente à beira-mar. Enquanto Alice – uma jovem ativista que milita pela causa ambiental – deseja abandonar Siarema, sua mãe Helena insiste em permanecer na antiga casa da família. Rigoroso na composição dos planos que apresentam os escombros como paisagens a serem contempladas e percorridas, Cariry (que também assina a direção de fotografia do longa) é especialmente hábil em construir uma atmosfera opressiva por meio de um trabalho de ambiência sonora marcante, fruto da sua parceria criativa de longa data com o técnico de som cearense Érico Sapão.

Tendo assistido ao filme no Cineteatro São Luiz e no Cinema do Dragão, em Fortaleza, penso que “A praia do fim do mundo” é o tipo de obra que se beneficia bastante da situação da sala de cinema, tanto do ponto de vista da apreensão da imagem quanto do som. Trata-se, com efeito, de um trabalho imersivo, onde somos convocados a experimentar a derrocada de uma cidade, na escala macro, e de uma família, na escala micro. Os ruídos de ondas do mar quebrando irrompem de todos os lados e conduzem a narrativa rumo à catástrofe inevitável. Nesse sentido, o filme propõe uma atualização do mito bíblico de Jonas e a baleia à luz das questões ambientais contemporâneas.

Petrus também se utiliza e subverte vários dos códigos comumente associados ao cinema de horror. Neste trabalho de imersão conduzido principalmente pela paisagem sonora expansiva e opressora, o filme também encontra espaço para apresentar alguns planos que poderíamos associar a uma tradição do realismo fantástico ou do terror. A fotografia, aliada a uma direção de arte rica em detalhes (das rachaduras da casa aos múltiplos objetos cênicos), evoca uma sensação de perigo constante. É particularmente interessante perceber como o realizador filma o mar, na contramão da tradição pictórica cearense tradicionalmente construída por figuras como Raimundo Cela ou Chico Albuquerque. Aqui, o mar não é o dado acolhedor de uma paisagem turística: ele carrega consigo o germe da destruição.

Parece uma coincidência feliz que “A praia do fim do mundo” tenha sido apresentado na mesma edição do Cine Ceará em que o festival exibiu o curta “Mar concreto”. Primeiro pelo dado objetivo de que ambos os filmes apresentam imagens da praia de Atafona, na costa do Rio de Janeiro. Segundo pela intertextualidade das duas narrativas que desenvolvem personagens femininas que optam por resistir em meio às ruínas. A erosão da paisagem como mote visual e como tema atravessa tanto o longa quanto o curta de forma bastante íntima, e assisti-los no contexto social do Brasil de hoje evidencia uma série de questões bastante caras ao debate político nacional, onde também resistimos em meio à ruína do presente e à perspectiva de um futuro catastrófico.

Diante do volume massivo de filmes produzidos no contexto limitante da pandemia de Covid-19 no Brasil, “A praia do fim do mundo” parece reunir uma série de virtudes que o posicionam como uma obra absolutamente particular (diferente da grande maioria de filmes que marcam esse período) que se agarra ao tempo presente de uma forma nada óbvia.

*Pedro Azevedo foi júri Abraccine no 31º Cine Ceará

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