Tiradentes, onde a crítica se avalia
Por Paulo Henrique Silva
A discussão sobre as mudanças na área da crítica de cinema, com a diminuição de espaço dedicado à análise nos impressos e o boom de sites e blogs que se dedicam ao tema, um dos carros-chefe da edição comemorativa de 15 anos da Mostra de Cinema de Tiradentes, mostra que o fosso que separa estes dois universos – o papel e o virtual – é bem menor do que se imagina.
Pelo menos não há, como já foi dito tantas vezes, a desqualificação de um e a supervalorização do outro. Os dois debates realizados na cidade histórica evidenciam que há mais concordâncias do que desentendimentos no que concerne ao papel da crítica, à sua relação com o meio e ao acompanhamento das muitas revoluções (tecnológicas e estéticas) no fazer cinema.
E o é que mais interessante: as diferenças são benéficas para o alargamento do que é conceito de crítica, com cada um (impresso e virtual, em seus muitos desdobramentos) colocando um tijolinho na construção de um pensamento crítico. São complementares. Na fala de todos os participantes percebe-se, em primeiro lugar, uma paixão pela arte e um desejo de expressá-la.
As duas características parecem frequentar o mesmo polo, repelindo-se. Pois todos sabemos como é doloroso retirar a sensação de regozijo do campo sensorial para um organizado agrupamento de palavras, seja no papel ou na tela do computador. Num primeiro instante, a impressão é de estar maculando a obra, sem alcançar o seu status definitivo.
O texto é uma passagem transitória, de algum nervo cerebral afetado pelo impacto do que se viu para uma racionalidade fria expressa numa folha de papel ou em bytes. Aceita esta “briga” interna, que sempre nos coloca na função de opositor (ou afrontador), o que muda está mais no “como” (estilo de texto e espaço físico) e no “para quem” (a codificação que nos põe em sintonia com o receptor).
Quando Luiz Carlos Merten, do Estado de São Paulo, diz ser “mais jornalista do que crítico” não devemos enxergar nisso uma desvalorização, aceitando a ideia que o impresso perdeu seu lugar analítico. Sofreu, na verdade, uma transformação. Merten põe em pé de igualdade os textos publicados na edição em papel e o que escreve no blog. Um não é mais importante que o outro.
Merten chega a escrever 20 mil caracteres num dia sobre filmes e temas diferentes: ocorre nele uma certa ânsia de “se arriscar, de se expor”, como afirmou no primeiro dia de debate. No caminho oposto do impresso, que diminui o espaço para as matérias, o veterano crítico não coloca fotos em seu blog. “Não estou aqui para facilitar a vida de ninguém”.
Risco e complexidade que também são um resumo da experiência do diretor Eduardo Escorel no campo da crítica. No papel de vidraça, não precisava ser também estilingue e arrebentar com uma casa de vidro inteira, inclusive a própria. “Não deixa de me provocar surpresa me ver identificado como crítico de cinema”, assinalou em sua fala inicial.
Escorel defende que não há uma separação entre as duas atividades, jogando por terra outra afirmação antiga, de que os críticos seriam realizadores frustrados. Curiosamente, além de não se ver como crítico, o cineasta se apresenta como um ser solitário em sua interação com o meio. “Minha condição de sobrevivente é contraditória, abrigando felicidade e tristeza”, admite, no entanto.
Ao mesmo tempo em que recebe os sinais da extinção de um processo que acompanhou muito proximamente, com o recém-anunciado pedido de concordata da Eastman Kodak (principal fornecedor de película para o cinema), ele não entende como futuro apocalíptico, mas sim “como algo novo que está se construindo”. E lembra que o You Tube inaugurará mais de 100 canais de TV nos próximos meses.
O You Tube é um claro demonstrativo, segundo ele, do “acentuado processo de fragmentação e especialização do público”. Situação em que a própria crítica de cinema está inserida. Hoje há sites específicos para determinados gostos e gêneros. “A internet nos proporcionou um canal mais aberto com o público”, destacou Francis Vogner, da revista eletrônica Cinética.
Ainda assim preserva-se a essência estampada nas duas características que manifestei acima. Fábio Andrade, também da Cinética, ressaltou que começou a ser crítico sem sabem o que era. “Sem ter certeza para que servia, a quem destinava e o que poderia contribuir. Fiz crítica simplesmente para escrever sobre os filmes, pois gostava de escrever”.
Fábio encontrou sua melhor definição para a atividade na descrição etimológica da palavra crítico, que vem do grego “aquele que serve a um júri e dá um veredito”. A avaliação, de acordo com Fábio, é uma função intrínseca, não interessando para ele se simplesmente a obra é boa ou ruim, mas sim a busca constante de valores muito próprios a cada obra.
Ele também recorre a uma frase de Inácio Araújo, do jornal Folha de São Paulo, que define, em seu blog, a crítica como um compartilhamento de conhecimento. Como este ato só se efetiva de fato com o acúmulo de experiências, reforça, em outras palavras, o que Merten e Escorel defendem como ponto primeiro de sua relação com a crítica.
Cássio Starling Carlos corrobora com esta ideia, “absorvendo conhecimento para compartilhar o que julga importante”, e vê valores tanto no que se faz no papel quanto no mundo virtual, ressaltando que as tão criticadas informações do filme, presenças quase obrigatória nos impressos, têm a função de aumentar o poder de cognição.
Sérgio Alpendre, da revista Interlúdio, destacou que tanta experiência não impede que se faça avaliações errôneas de um filme, mas que é importante o crítico saber reavaliar, podendo mudar de opinião pouco tempo depois. Pensamento que só endossa a maneira de ver a crítica como algo transitório, que coloca este profissional na mesma posição conflitiva, no momento da criação, daquele sobre o qual está escrevendo.
Jovem Saudável
Por Orlando Margarido
Num caso particular como Tiradentes, que se propõe como uma iniciativa mais jovem e aberta à reflexão do cinema brasileiro, os prêmios não devem atribuir maior relevância a um projeto de maior largura. Mas eles indicam algo, um caminho, um pensamento do que se espera dessa nova geração. Em especial, os dois grandes vencedores na categoria longa indicam que há um gosto pela investigação, quebra de gêneros, de linguagem, de uma transição entre propostas que vem beneficiando nosso cinema. Certamente A Cidade É uma Só?, do brasiliense Adirley Queirós, incorpora como poucos essas questões e mereceu o voto do júri da crítica, que é quem escolhe os melhores em Tiradentes. A ponto de confundir a platéia do Cine-Tenda, com sua realidade encenada, na qual até o material de arquivo é manipulado em favor de um fato no mínimo controverso que foi a criação da Ceilândia, periferia de Brasília, em 1971. Queirós nem precisava, mas quer recrudescer o debate se utilizando de moradores locais que assumem personagens de alguma forma atingidos por uma decisão autoritária do governo do DF. É um filme político, na medida em que suscita também outras barbaridades, atuais até, como a recente expulsão do Pinheirinho. Não é improvável que o júri tenha se imbuído também desse manifesto, que, aliás, foi literal dias antes quando o talentoso ator Marat Descartes aproveitou a apresentação de Corpo Presente, do qual é um dos protagonistas, para ler um protesto da diretora Juliana Rojas (Trabalhar Cansa) sobre o episódio.
Não me chamou a atenção naquele momento, mas a atitude perpetrada pelo governo do DF nos anos 70 tem tudo a ver com a aquela na gestão dos militares que mais ou menos no mesmo período inauguraram um elefante branco em plena Ilha do Fundão no Rio de Janeiro. O Hospital Universitário da Universidade Fluminense tornou-se um mamute incômodo e desnecessário dada a megalomania de seus empreendedores. A construção pensada desde o governo de Getúlio Vargas é o objeto de estudo de HU,documentário de Pedro Urano e Joana Traub Cseko. Há, ou havia, dois hospitais em funcionamento, o que atende a população e outro, abandonado e desativado pelas péssimas condições, que acabou implodido em dezembro passado. A câmera dos diretores imerge nesses espaços, confrontando a atividade de um e a falência de outro. Curioso que agradou ao Júri Jovem, formado por estudantes, que concedeu ao filme o prêmio. Talvez justamente por aproximar um período e suas destemperanças de um Brasil atual do qual não se espera mais tamanhos desacertos.
No mais tivemos a manifestação do júri popular, que como o nome diz é formado pelo público que vota em cédulas durante a mostra. Compreensível, e justificável, a preferência por L, de Thais Fujinaga, curta-metragem que vem arrebanhando fãs por onde passa. E não seria em Tiradentes, com jovens a entupir literalmente suas ruas, que a história entre adolescentes que não se enquadram nas normas do universo de convivência da idade passaria despercebida. Popularidade talvez seja o único quesito justificável, no entanto, para a escolha de O Mineiro e o Queijo, o simpático e quadrado (sem trocadilho) documentário de Helvécio Ratton. Estamos em Minas afinal e os personagens falam a língua local.
Com raras exceções, os longas exibidos regularam-se na qualidade e trouxeram boas discussões. Saíram da zona de conforto para dividir platéia e crítica, e mesmo quando o risco tornou-se mais sustentação do que um projeto acabado e bem-sucedido, exemplo maior em As Horas Vulgares, houve boa sintonia entre realizadores e interlocutores para se chegar a um saudável debate. Cada vez mais Tiradentes impõe-se uma arena para se fugir de um mero digladiar entre a certeza de diretores e a dúvida dos especialistas, comum em outros festivais, e se aprofundar nas razões e atitudes do fazer cinema. Por isso também se destrincha a crítica, a produção prática do cinema e outros temas que devem e precisam estar na cartilha do dia entre os novos realizadores. Longa vida a esse adolescente festival.
Por Heitor Augusto (para o Cineclick)
Muita coisa aconteceu na pequenina Tiradentes nos últimos nove dias. Da homenagem a Selton Mello à premiação de A Cidade é uma Só?, torna-se até difícil abarcar em apenas um texto o que aconteceu na 15ª Mostra de Tiradentes, tamanha a intensidade dos debates e a possibilidade de diálogos oferecida pelos filmes exibidos.
Passando pelos longas-metragens que competiram na seleção Aurora, dedicado a novos realizadores comprometidos com um cinema um pouco diferente do que você está acostumado a ver no circuito comercial, percebe-se uma preocupação clara com a cidade e o desenvolvimento urbano. Melhor: por um viés político-cinematográfico.
São os casos de A Cidade é uma Só?, grande premiado da Mostra de Tiradentes, HU, agraciado pelo Júri Jovem, Corpo Presente, As Horas Vulgares e Balança Mas Não Cai, cinco dos sete filmes projetados na Aurora.
Sem a intenção de ignorar as particularidades, mas buscar uma ponta de conversa entre eles, a cidade é peça-chave, seja pela relação temporal (como processos do passado interferiram no presente) ou espacial (um certo mal estar com o estado das coisas). As escolhas que cada um dos filmes faz, porém, é diversa.
A Cidade é uma Só? é um show de humor, mas também de força política e criatividade de dramaturgia. Personagens ficcionais criam um híbrido documental que questionam Brasília e o processo de expulsão dos pobres nos anos 70 que criou Ceilândia. Já em Corpo Presente, apesar do humor e das referências ao cinema da Boca do Lixo, o mal estar com São Paulo é ainda mais incômodo. Três personagens alienados da realidade: há algo mais atual do que falar em alienação quando a cidade é dominada por uma nuvem reacionária?
Mal estar com o estado das coisas é o que também não falta ao capixaba As Horas Vulgares. O registro, porém, é diferente: sua fotografia em preto e branco, o jazz e jovens personagens em busca de esperança nos colocam numa atmosfera de alumbramento. Mas por trás de toda a beleza da fotografia, não há como fechar os olhos para o incômodo.
A Mostra de Tiradentes teve também a felicidade de reunir dois documentários dedicados a … prédios! O carioca HU é um retrato político-cadavérico do descaso com a coisa pública que toma como ponto de partida o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ. Filme que se posiciona politicamente nos enquadramentos, causando no espectador uma profunda sensação de desconforto.
O outro “filme de prédio” é o mineiro Balança Mas Não Cai. Tomando como objeto o Tupis, edifício histórico de Belo Horizonte que atravessou diversas fases e ocupações, o filme pretende uma leitura poética das vidas que por lá passaram. Neste filme, a política vai para segundo plano.
Nessa tentativa de estabelecer pontes entre os longas-metragens que competiram na Mostra de Tiradentes, dois filmes escapolem. Strovengah – Amor Torto nos lembra de uma precariedade típica das produções de Luc Moullet e, cheio de problemas, apresenta um autor engolido por seus próprios personagens fantoches. Já Entorno da Beleza, documentário sobre concursos de miss em Brasília, tem boas cenas, mas seu conjunto é fraco cinematograficamente.
Não há nenhuma obra-prima na Aurora – e nem é o caso de cobrar isso –, mas os filmes exibidos permitem várias possibilidades de diálogo com o processo de formação brasileiro. E não faltam também longas que buscam algo mais do próprio cinema: alguns de resultados mais coesos (A Cidade é uma Só? e HU), outros irregulares, mas com vida pulsante (As Horas Vulgares e Corpo Presente) e também os com menos recheio (Balança Mas Não Cai, Stronvegah – Amor Torto e Entorno da Beleza).
Cinema invisível
Nos últimos cinco anos o festival realizado na histórica cidade mineira de apenas sete mil habitantes se notabilizou por dar espaço a filmes brasileiros que infelizmente ainda andam à margem do circuito de exibição. Pelo evento passaram filmes de baixíssimo orçamento, com pretensões autorais, geralmente resultado de ação entre amigos e coletivos, representando um anseio de fazer cinema driblando canais oficiais.
Após cinco anos desse fluxo que tem como alguns exemplos os premiados O Céu Sobre os Ombros, Os Residentes e Paicific, já está na hora de começar a fazer avaliações. E já passou da hora de encontrar maneiras para que esses filmes cheguem a um público maior: a experiência da produção à exibição precisa ser completa e urge dar a chance ao espectador de se posicionar sobre esses filmes.
O que não pode continuar é a invisibilidade desse cinema: ele existe, está aí e é preciso que chegue a um número maior de pessoas. É preciso sacudir a percepção de que a única alternativa que o cinema brasileiro encontrou à comédia chula como Cilada.com é um filme como o bem-vindo O Palhaço. Há muito mais coisa acontecendo – por enquanto, restrita aos festivais, com destaque para Tiradentes – e urge que o público conheça esses filmes para colocá-los na roda.
A visibilidade restrita dessa produção – que convencionou a se chamar “novíssimo cinema brasileiro” – e a atuação da crítica frente a esses filmes foi um dos temas fortemente discutidos na Mostra de Tiradentes – especialmente nos seminários dedicados a avaliação da crítica de cinema pós-anos 2000 e à renovação do cinema brasileiro.
Com a popularização do digital e redução dos custos de câmeras e equipamentos, a realização cinematográfica se pulverizou. A geração que no final dos anos 1990 se dedicava à crítica de cinema passou também à realização de filmes. Em meados da década passada, estudantes de cinema que saíram dos bancos das universidades conseguiram queimar etapas e passaram diretamente à realização.
O resultado é que hoje, 2012, muito mais filmes são feitos. Os fóruns de discussão também se expandiram – Tiradentes é um dos exemplos. Alguns esforços para ampliar o escopo de exibição foram feitos – como a Sessão Vitrine, projeto que exibiu esses filmes em diversas capitais. Um começo, mas ainda é pouco.
Nesta 15ª edição da mostra ficou explícito também uma certa reticência entre parte dos realizadores e da crítica. Quem faz esse cinema acusa a crítica de não ter descido à Terra para acompanhá-lo e fazer corpo a corpo com essa produção; a crítica argumenta não ter encontrado nenhum grande filme dessa geração que, grosso modo, é agrupada sob o selo de “novíssimo”, e que a imperfeição dos filmes não pode ser escondida sob a justificativa de fortalecê-los.
Todavia, à exceção de festivais como Tiradentes, que tenta e consegue seduzir espectadores turistas de passagem pela pequenina e charmosa cidade, o público ainda não chegou perto dessa discussão. Sequer tomou conhecimento dos próprios filmes.
E isso precisa mudar. Urgentemente. É um crime apenas 4 mil pessoas assistirem a O Céu Sobre os Ombros.
Veteranos cheios de vida
Paralelamente aos debates e à competição de longa-metragem, Tiradentes trouxe em exibições paralelas alguns veteranos cheios de jovialidade, reposicionando também produções que passaram quase silenciosamente por outros festivais.
Um dos exemplos é OHomem que Não Dormia, de Edgar Navarro, veterano realizador do seminal Super Outro que chegou apenas ao segundo longa-metragem. Previamente projetado em Brasília, na mostra mineira ele foi alçado ao posto de filme-evento.
Caso também da obra póstuma de Alberto Salvá, Na Carne e na Alma, último filme a ser projetado em Tiradentes. Imperfeito, mas com uma cara-de-pau e sinceridade que às vezes faz falta ao cinema brasileiro. Exemplo também é Djalioh, de Ricardo Miranda, um dos mais importantes montadores do cinema brasileiro, que dá um nó na nossa cabeça ao propor outro tipo de encenação.
Interessante também foi a exibição de Augustas, de outro veterano realizador, Francisco Cesar Filho, mas que só agora chegou ao formato do longa-metragem. Mesmo com todos os problemas do longa, trata-se de um filme necessário por seu jeitão despudorado.
Fazer um festival de cinema com o perfil de Tiradentes, marcado pela força da curadoria que busca criar diálogos entre os filmes, continua sendo um desafio. A cada ano, a cidade se torna menor para o porte do festival. Após esta 15ª edição, o desafio é que Tiradentes não transborde apenas de gente, mas que as discussões concentradas por lá se espalhem por outros cantos.
Já há alguns anos na estrada
Por Cid Nader
Haveria alguma diferença mais sensível entre a Mostra de Tiradentes deste 2012 e as anteriores que mudaram de forma inequívoca seu perfil – algo que começou a ocorrer desde 2005 ou 2006 -, estabelecendo-a como evento onde se priorizam debates e mesas que discutem o cinema como linguagem (pelas avaliações dos aspectos técnicos e estéticos “tendo” de se impor sobre questões de bastidores ou relativas a expectativas de retorno financeiro), e sessões de onde passaram a brotar obras que indicavam para um país que iniciava a produzir por vieses menos apegados aos comuns até então (principalmente com a valorização dos coletivos que surgiam espalhados para, também, além dos centros historicamente reconhecidos)?
Para além da estabilização climática que nesses últimos dois anos impôs a ela regularidade e pontualidade quase britânica (algo que sofreu demais em outras ocasiões, com a transferência das sessões da praça – sob cântaros – para a Tenda, o que realmente complicava e estendia os programas até boas horas da madrugada), a resposta à pergunta acima, pragmaticamente seria um não: não há diferença sensível no esquema proposto, que deu ao evento cara e forma únicos dentro do nosso “cenário” de Festivais e Mostras.
Tiradentes continuou neste 2012 (ano em que completou adolescentes 15 anos) fortíssima nas suas mesas de discussão (sabendo disso mais por relatos de parceiros que acorreram a diversos desses momentos, já que a enormidade da programação me tem afastado deles, que ocorrem enquanto escrevo a tempo de colocar matéria diária em meu site): sala lotada por público e jornalistas, nos debates que tentavam destrinchar um tanto mais os curtas e longas exibidos; em mesas que discutiram o ator em seus meios; ou noutra que reuniu diversos representantes estrangeiros para que conhecessem a amplidão de nossa produção (algo de importância maior ao ocorrer nessa mostra, que propõe e possibilita “cinemas” fora do padrão mais comum ou acomodado); mas principalmente em dois dias em que se confrontaram quase que totalmente antagonicamente realizadores e críticos (Debate – Panorama Crítico da Crítica I e II). A Mostra deve se orgulhar do interesse que seus debates sempre têm provocado nos últimos anos: só estando lá para perceber que é diferente e mais instigante do os que acontecem na maioria dos outros festivais.
Agora, voltando ao “não pragmático” que poderia ser oferecido como resposta a quanto não haverem diferenças substanciais no modelo proposto – algo que numa olhada geral aparece como um dogma repleto de certezas -, valeria sugerir uma atenção um tanto mais detalhada aos filmes que compuseram a trama da programação desta 15ª Mostra: e antes de simplesmente quantificar a avaliação com notas e critérios de comparação, a evidente mudança na linguagem dos filmes somente confirma que tanto o evento (no seu lado curatorial) quando seus participantes são parte de um “organismo cinema” bastante vivo, e que luta dinamicamente para não estagnar.
É sabido que a curadoria de Tiradentes é um dos motivos fortes para que sua importância tenha se estabelecido de forma praticamente única, pois ao direcionarem seus olhares e atenção ao Brasil como um todo muito maior do que apenas três ou quatro centros difusores ela conseguiu perceber momentos/movimentos nascedouros, se permitindo a escolha de curtas-metragens que dialogavam com a arte com mais apego à forma e estética do que com o narrar comum/linear contador de historinhas, e imaginando que esses movimentos espalhados pelo país tinham força e sagacidade suficientes para que deles se pudessem eleger realizadores novos no universo dos longas, sendo imaginado espaço para suas produções numa mostra dentro da Mostra (a Mostra Aurora, onde são exibidos esses longas-metragens iniciais, e que acabou por estabelecer-se como a marca mais forte). Voltando ao “não pragmático e à necessidade de uma olhada mais minuciosa”, há o que se comentar dos filmes vistos.
Os longas do “Aurora” pareceram mais “palatáveis” do que os do início de tudo lá no ano de 2008: ou não? Ou estaríamos nos acostumando com não sentir tanto na pele o que no início surgiu como paulada contra a “modorrice” – lembrando sempre que mil vezes o estranhamento que nos faça pensar do que as obras que já venham mastigadas com sabor de pipoca-? Talvez o que tenha passado a impressão de uma maior facilidade na apreensão dos filmes dessa programação esteja no fato de três deles serem documentários, pois mesmo com dois desses três transitando por vias mais experimentais (o belo e rigorosíssimo HU, de Pedro Urano e Joana Traub, com sua fotografia tomando as rédeas e ditando o rimo, para contar de um país que “pensa desnecessariamente grande”; e o estiloso, mas dispersivo no excesso de intervenções de teor videoarte, Balança Mas Não Cai, de Leonardo Barcelos, onde havia, a princípio, a ideia de falar de tempos e local de rememoração – o outro, bem mais “comum” no modo de narrativa, era Entorno da Beleza, de Dácia Ibiapina), o fato de se ver dados reais contados em tela costuma desligar o senso crítico mais exigente da atenção, que é usado para se tentar entender um filme como obra de arte obrigatória. Porque, quando se atenta aos trabalhos ficcionais realmente não dá para imaginá-los transitando por salas de cinema comercial num sábado à noite: As Horas Vulgares, de Rodrigo Oliveira e Vitor Graize é belamente lento e um tanto hermético, ainda bem, já que se oferece como possível por várias camadas e várias leituras; Corpo Presente, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori, é bom demais, esperto e reverencial (homenageia a Boca do Lixo e trechos do cinema alemão),mas talvez crie muros por ser muito mais reconhecível por quem já transitou pelos curtas da dupla e para quem vive um pouco mais intimamente setores de bastidores do cinema; e Strovengha – Amor Torto, causou sensação de déjà-vu e mau humor em parte da crítica, mas amadurece muito bem na retina e confirma que o longa é fruto, também, de acúmulo das experiências acumuladas.
Talvez nos curtas essa sensação de aguardada “esquisitice” tenha perdido potência. Não foi tão fácil encontrar trabalhos estimulantes como vinha acontecendo nas mostras anteriores. Pareceu ser mais coisa de safra mesmo, e em boa parte por decorrência de uma perceptível cópia de estilos, que têm entregado às telas e às curadorias muitos filmes que imitam os que criaram marca (e isso de maneira estranhamente regionalizada, já que ando vendo por aí curtas cearenses, pernambucanos, mineiros, que são evidentes frutos de reverência a seus pares “patrícios”). Ficou nítido que houve um “espalhamento” maior na origem dos títulos, e que alguns com narrativa de apelo mais “comum” (bastante premiados por júris populares em outros festivais) também tiveram seu espaço na mostra mineira. Estiveram lá o já veterano e muito bom Oma, de Michael Wahrmann (que reforça o diretor como um “apropriador” de imagens pessoais, que as remaneja, transformando-as em trabalhos belos); a dinâmica animação O Samurai de Curitiba, de Roger Machado e Jorge Padilha (sábia ao utilizar o modelo do caricaturista retratado); O Cadeado, de Leon Sampaio (como um auspício de que a Universidade do Recôncavo – BA – pode estar começando a gerar bons frutos); o divertido e muito bom nas atuações, César, de Gustavo Suzuki (curtas, também podem funcionar bem no tom comédia adolescente); L, de Thaís Fujinaga, outro “comum” que anda arrebatando todos os prêmios por onde é exibido (bastante competente na sua singela avaliação da infância); um típico paraibano (na ideia gerada pelo aprendizado vindo da apreciação de cinematografias não tão usuais), divertido e iconoclasta, que foi Mais Denso que Sangue; e outro veterano espetacular que é o Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, do Rafael Urban (um dos maiores do ano passado).
Mas, marcantes novidades mesmo, ainda entre os curtas-metragens, foram duas: o impactante e forte Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada, dirigido por Eduardo Kishimoto, que através da utilização de diversos mecanismos de captação conta muito do que está se tornando esse embaralhamento entre o ser humano e a tecnologia, que devassa ao som enganador de cantos de sereia; e o infantil O Mundo de Ulim e Oilut, de Karu Alves de Souza, retratando o universo de uma criança (vinda, na vida real, de um mundo muito duro) em todas as suas riquezas e particularidades, com mergulho sensível ao interior de sua imaginação e modo de entender a vida, e confeccionado por rara atenção anímica, além de belíssima construção cênica – uma verdadeira jóia. Sim, alguns curtas bem bons, obviamente, mas destacados de um todo que já se mostrou em outras ocasiões mais instigante: ao menos quantitativamente.
Estreias de filmes aguardados – Billi Pig, de José Eduardo Belmonte; ou Augustas, de Francisco Cesar Filho. Estreia (na realidade uma quase estreia) também de outro aguardado – e este sim bastante complexo, elaborado, investigativo, conclusivo, observador, enfim, muito bom -, e marcante ao extremo, Estradeiros, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro. Além da chance de poder rever (ou ver pela primeira vez) obras que não tiveram o destaque merecido em outros eventos – o incomparável O Homem que Não Dormia, de Edgard Navarro; o belíssimo As Hiper Mulheres, de Leonardo Sete, Carlos Fausto, Takumã Kuikuro; ou ver o genial e engraçado (difícil ser engraçado dentro do contexto desse documentário) A Cidade É uma Só?, de Adirley Queirós – outro documentário(?) pertencente ao segmento Aurora, o qual havia esquecido de citar acima. Um tanto outro de outras sessões, e um bom montante de oficinas.
Uma cidade tão pequena (com 7.000 habitantes que, num milagre, se multiplicam), onde é necessário que seja feito revezamento entre os convidados para que apareçam vagas nas pousadas e hotéis, com uma Tenda sempre lotada (em seus mais de 600 lugares, e três a quatro sessões por dia), e uma tela na praça sob a qual se acomodam cerca de mil pessoas por noite, transforma-se nos últimos janeiros num exemplo de organização (o que o pessoal de lá faz chega a ser inacreditável), e na representação mais específica do que deveria ser o ideal de um festival ou mostra de cinema no nosso país – filmes e discussão ampla. Talvez esteja um pouco acima do ideal na quantidade de trabalhos exibidos: o que para mim conta. Por outro lado, com todas as sessões lotadas, realmente o parâmetro… E, em, se pensando na quase certeza de que somente lá algumas obras poderão ser vistas, ficam mais compreensíveis e justos os crescimentos dos números.
Ei Andrea, só para explicar que o texto não é jornalístico, mas um longo comentário, bastante pessoal, sobre um aspecto que me chamou a atenção nos debates, sem a necessidade de ser um registro completo do que se passou nos dois dias de discussões, que foram muito ricos e devem ser reproduzidos, futuramente, numa publicação da Mostra. Sua fala foi ótima, mas não consegui encaixá-la na linha de raciocínio do texto. Tanto gostei do que você comentou que logo pensei em entrevistá-la para falar especificamente do seu site, que acho bárbaro. Acredito que cheguei a comentar isso com você em uma de nossas conversas. Espero que tenha desfeito este mal-entendido. Cordialmente, Paulo Henrique Silva, integrante da diretoria da Abraccine
Que coisa interessante. O primeiro texto conseguiu fazer a ginástica mental de me retirar da mesa de debates sobre a crítica em Tiradentes. E isto em um evento que foi filmado. É de uma desonestidade intelectual brutal. Pusilânime.