Dossiê Raulino – Parte II: Fotógrafo

Raulino, Fotógrafo

Os Residentes

Os Residentes

Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado

Por Fábio Andrade (originalmente publicado na Cinética em novembro de 2010)

Em certo momento de Os Residentes, o grupo de artistas-guerrilheiros que protagoniza o filme faz um treinamento com armas que não existem, esquivando-se de um inimigo imaginário que ele combate com granadas invisíveis. A cena é emblemática pela clareza do ato que se anula na convivência com seu próprio não-ato e que, citando Jacques Rancière a respeito de Édipo Rei em O Inconsciente Estético, “é aquele que sabe e não sabe, que age absolutamente e que padece absolutamente. Ora, é precisamente através dessa identidade de contrários que a revolução estética define o próprio da arte”. É desnecessária, portanto, a cena em que um dos integrantes do grupo picha, em letras garrafais, suas ambições em portas de armário: Os Residentes é um produto da estética.

Muito apropriadamente, o filme se configura no acúmulo de esquetes que, mesmo tendo uma relação vagueante com o todo narrativo, se esgotam em sua própria existência individual. Podemos sair do excesso como estratégia artística de um Leos Carax para conversas que remetem diretamente à economia dos filmes de Andy Warhol; as vinhetas combinam elementos de pop art com deformações da op art; toda uma estratégia de pose é desmontada na auto-ironia de uma pergunta que Melissa Dullius faz a Gustavo Jahn (não à toa, artistas e cônjuges na vida real), em uma cena de diálogo absolutamente admirável: “tu acha que eu sou uma encenação?”;

Essa consciência aguda de seus próprios limites é o que configura Os Residentes como um filme impressionante mas também um tanto irritante em sua coerência: toda afirmação é posteriormente negada, toda postura tomada é debochada na cena seguinte, todo saber é contrastado ao seu não-saber, toda ação é confrontada ao seu próprio padecimento. Os Residentes é, portanto, um produto estético por excelência, flutuante em sua própria latência, coerente a um regime artístico fundado na incoerência de sua própria existência, na ausência de fim que é sua finalidade. É um filme que se joga no futuro com olhos que fetichizam as guerrilhas do passado, mas que, ao mesmo tempo, sabe que fetichizar a luta é a maneira de exterminá-la por completo. Como Édipo, as personagens de Os Residentes fazem da vida e do pensamento uma enfermidade, e de sua impotência uma potência. Os artistas sobem paredes, ocupam espaços, cobrem de terra a geometria dura de um telhado, promovem inversões muito contemporâneas do dentro e do fora (dilema principalmente encarnado na personagem de Dellani Lima)… mas, no fim das contas, a casa vai ao chão, e o artista retoma sua tarefa de Sísifo, empurrando morro acima suas pedras invisíveis. Os Residentes é um longo prólogo de um filme que nunca chega a começar.

Mas se Os Residentes é um acúmulo de imagens, é preciso ir ao encontro delas. É aí que a relação com o filme se complica, pois em todos os seus ditos não-ditos, em toda sua coerentíssima incoerência, em toda sua sofisticada ingenuidade, os planos do filme se instalam na memória, perturbam por sua plasticidade (muito fundada em um trabalho excepcional de fotografia de Aloysio Raulino), instigam pela solidez conferida a tudo que o filme afirma volátil. É aí que o golpe maior se realiza: ao mesmo tempo em que ele se afirma absolutamente ideológico, panfletário até, a força de suas imagens transcende a ideologia. Diante de fragmentos de extraordinária potência, a ideologia que os costura se torna praticamente irrelevante. Sua maneira esquiva de lidar com suas próprias afirmações é contrastada à eloquência de seus planos, à tessitura cuidadosa de cada sequência – mesmo que ela seja ridicularizada no momento seguinte. A despeito das diferenças entre crítico e filme, Os Residentes se espatifa no encontro com os olhos e, como o grupo de protagonistas faz com as casas que aparecem ao longo do filme, se instala no imaginário de quem vê, para seguir se multiplicando após o fim da projeção. E isso é algo que o cinema brasileiro – mesmo em seu melhor – não proporcionava há tempos.

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O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento (2003)

Por Eduardo Valente (originalmente publicado na Contracampo, edição 59)

Sem sua seqüência inicial e sua seqüência final, O Prisioneiro da Grade de Ferro seria um dos mais importantes documentários já feitos no Brasil e um dos filmes mais impressionantes sobre seu tema, em qualquer lugar ou época. Com estas duas sequências que inauguram e fecham seu discurso, o filme passa desta categoria para a de obra-prima indiscutível.

No início, uma imagem aparentemente abstrata vai se revelando uma imensa nuvem de fumaça cor de terra e branca. Esta nuvem se movimenta de forma estranha, e demoramos a entender que a imagem está sendo projetada de trás para a frente. A cada segundo e movimento, aquilo que vemos se torna mais e mais claro: a implosão de um prédio é mostrada no sentido inverso. E aí, com a magia audiovisual que só o cinema poderia captar, ressurge em nossa frente o complexo penitenciário do Carandiru: das cinzas da sua recente implosão, ele volta à existência. Afora o fascínio visual verdadeiro deste momento, muito mais importante é seu significado: implodido (como se isso fosse solução de algum problema), o Carandiru ressurge como uma assombração. Há algo de sobrenatural naquele movimento às avessas, onde do nada surge um prédio que assombra não só a memória brasileira (pelos eventos lá acontecidos), mas cujo significado, como veremos no filme que se segue, é muito maior do que um simples massacre (se existe isso) ou do que um simples amontoado de cimento e tijolos. O Carandiru ter ido ao chão, nos diz a seqüência e o filme, nada faz para resolver ou acabar com os problemas que ele sempre representou. Pelo contrário, só serve para tentar esconder (numa nuvem de fumaça) a realidade que ainda está nos presídios e na organização social-política de todo o país. O movimento essencial deste filme será (e daí a importância desta seqüência inicial) trazer de volta este mundo que se pretende esconder, como o prédio ressurgindo das suas cinzas.

Voltaremos à seqüência final e sua ligação com este início, mas antes é preciso falar do tal filme impressionante que está no meio deste início e deste fim. O maior dos méritos do Paulo Sacramento documentarista, que este filme revela, é sua curiosidade e humildade imensas. Mais importante do que ele é o seu filme, e muito mais ainda, seus objetos de olhar. Tão importantes, mas tão importantes, que de objeto de olhar eles viram co-realizadores do filme. Quando Sacramento (e sua equipe) opta por um formato de realização onde, através de workshops com os detentos, estes aprendem a manejar o equipamento digital e a documentar eles mesmos a sua realidade, a importância deste procedimento não é “humanitária” nem muito menos oportunista. Há por trás deste movimento um reconhecimento do documentarista dos limites impostos ao seu conhecimento de um ambiente tão ao mesmo tempo particular, fechado e cheio de limites quanto é o de um presídio. A câmera “imparcial” do documentarista só poderia ir até um certo ponto, assim como sua capacidade de se relacionar com aquele ambiente, em parte por motivos práticos, e em grande parte pelo excesso de clichês já criados no jornalismo e na ficção sobre a representação deste espaço. Ao passar a câmera para os detentos, Sacramento assume suas impossibilidades. E, mais do que isso, a verdadeira importância da passagem de objetos a sujeitos daqueles homens retratados: eles devem escapar da imagem simplista de marginais tanto quanto da de coitadinhos. Eles são muito mais do que um ou do que o outro, por serem antes de tudo homens, indivíduos que dividem uma realidade comum sem que esta os torne apenas símbolos ou emblemas. Tratá-los como tal seria reproduzir os estigmas que os acompanham desde sempre, e faria muito pouco sentido para quem buscasse revelar algo de realmente nunca visto/ouvido/pensado sobre este espaço.

Mas, além deste movimento significar este reconhecimento de uma limitação, ele também possui outra característica essencial ao melhor documentarista: saber que seu tema, seu objeto, não deve estar previamente entendido ao ponto que se saiba que filme vai-se fazer ao sair de casa. A realidade é de tal modo fluida, inconstante e complexa que qualquer filme que a use como prova de tese pré-construída estará fadado ao fracasso completo ou a irrelevância. Ao entregar suas câmeras aos detentos, Sacramento faz o movimento mais difícil de um realizador contemporâneo: questiona sua própria autoria do material. Entrega a forças fora do seu controle não só a captação de imagens (que, afinal, sua montagem poderia reordenar depois), mas acima de tudo o próprio cerne de seu filme, que deixa de ser apenas seu e passa a ser muito mais do que isso. Esta ideia estaria completamente jogada no lixo se fosse Sacramento um realizador mais ingênuo (ou covarde mesmo) e resolvesse esta separação com créditos ou com uma montagem onde ficasse claro o que no filme foi filmado por quem: onde começa um trecho filmado por um detento, onde volta à documentação realizada pelo diretor e sua equipe. Mas, esta não foi a opção dele: em Prisioneiro da Grade de Ferro as imagens são parte de um mesmo todo, e quem as captou não faz a menor diferença porque todos (inclusive a equipe original, o que é impressionante) assumem a mesma voz, têm o mesmo peso, tornam-se um só. A um ponto em que o diretor de fotografia Aloísio Raulino declarou, em debate, que não consegue, ao ver o filme, saber mais o que ele filmou e o que foi filmado pelos detentos. Esta conclusão é dos fatos mais belos conseguidos pelo cinema em todos os tempos.

A quem duvidasse da validade do procedimento, como lógica e coerência de projeto, o filme responde com a simples força e ineditismo de suas imagens. O que assistimos na tela nunca antes foi mostrado por ser absolutamente impossível sem a voz e as imagens que os próprios detentos criam. Isso vai desde conversas ao pé do ouvido que só se pode ter com um colega de cela, até a revelação de momentos como a desde já antológica seqüência da noite passada numa cela, algo que de fato nunca se viu antes. O contato quase poético com vizinhas do presídio através de jogos de luz, o amanhecer através das grades, o vislumbre do distante mundo exterior, o tempo dilatado de uma rotina. Esta seqüência, já quase no fim do filme, justificaria por si só o procedimento formal adotado. Mas, está longe de ser a única imagem inédita ou assombrosa que veremos no filme: os ratos no pátio, as fotos do hospital, a revelação de armas e drogas, o abuso do guarda do muro com os detentos. Cada nova seqüência descortina aspectos de uma realidade que se mostra tão mais impossível de conter quanto se puder mostrar.

A montagem do filme tem a inteligência de escapar, por isso mesmo, tanto do denuncismo barato e fácil quanto de um esvaziamento do horror das penitenciárias. Assumindo na sua forma a multiplicidade de sensações e experiências que vemos, o filme toma para si o registro do quebra-cabeças formado por fragmentos que fazem pouco sentido em si, mas muito sentido quando vistos em conjunto (embora, neste caso, não haverá jamais uma imagem final única a ser formada). Por isso mesmo, o filme revela desde a alegria do jogo de futebol e das visitas, as realidades da prática do sexo ou religiosa, até as condições sub-humanas de celas super-lotadas e os horrores de um atendimento médico precário e insuficiente. O pagode, o rap, os facões e a pinga produzida ali dentro mesmo têm o mesmo peso, pois são todos partes de um imenso todo, e assim são tratados pela montagem: nenhum deles é privilegiado em detrimento do outro, nenhum deles é mais representativo do que seja “estar preso” do que o outro. Esconder um deles é ser faccioso, é ser desonesto com o espaço e aqueles que o habitam. Um outro trabalho que precisa ser muito destacado, aliás, é o da edição de som (além da captação deste em si, simplíssima, mas muitas vezes prodigiosa). Nas passagens entre cenas, ou quando cria pequenas montagens dentro de temas, o som do filme capta de tal forma a tapeçaria sonora que existe naquele espaço que nos sentimos ainda mais parte dele. Os sons da s TVs, dos rádios, das gritarias, da música, e mesmo o silêncio mortal. Som e montagem nos fazem transbordar pelo Carandiru, o tempo todo.

E, finalmente, voltamos ao já mencionado final do filme. Após reconstruir com tal ineditismo e respeito a experiência dos detentos deste fantasma de concreto, o filme passa a palavra às autoridades. Primeiro, com falas de vários ex-diretores do complexo, numa idéia realmente pouco óbvia e extremamente funcional, pois representam a voz das autoridades sim, mas de autoridades que, em primeiro lugar já não estão mais no poder; e, em segundo lugar, viveram também aquela experiência por dentro. Os depoimentos mesclam desesperança, sensação de inutilidade, e um desespero mais quieto, mas tão pungente quanto o dos detentos. O sentimento onipresente de que há algo de completamente errado num modelo que prega a correção ou a solução quando é, obviamente, muito mais causa e distorção. E, finalmente, a palavra das autoridades atuais, encarnadas no governador de São Paulo que, ao contrário da implosão inicial, discursa na abertura de uma nova cadeia, de uma nova penitenciária. Seu orgulho ao falar dos números de vagas para detentos criados em seu governo, como se falasse de construção de estradas ou escolas, é da natureza mais abjeta do jogo das autoridades, em completo desacordo e habitante um universo distinto de todo da realidade, que acabamos de presenciar. Ali importa menos que seja Alckmin ou qualquer outro nome: o que vemos é a completa distância que separa quem decide de quem sofre as conseqüências. Aquele sorriso grotesco, aquelas palmas submissas, todos contraditos pelas palavras do padre que abençoa a inauguração e lamenta o motivo de estar ali. Como o plano inicial, voltamos a ver nas palavras do governador a certeza de que o horror continua e continuará por um bom tempo. Derrubar paredes de um presídio como se o concreto fosse a causa do que ali dentro aconteceu (e acontece) é parte da mesma lógica segundo a qual número de vagas em cadeias é orgulho para governantes. Esta lógica que circunda e oprime a realidade que vimos aprisionada no filme entre estes dois momentos, e que torna O Prisioneiro da Grade de Ferro um dos mais contundentes e coerentes exemplos do discurso cinematográfico unindo forma a conteúdo e unindo cinema a realidade.

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Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci

Por Fernando Watanabe (originalmente publicado na Interlúdio em dezembro de 2012)

Escrever sobre Serras da Desordem para mim é algo extremamente pessoal, pois tenho uma relação muito próxima com o cinema de Andrea Tonacci. Empolgado com a descoberta de Bang Bang (1970), eu me perguntava o por quê de um cineasta tão talentoso, um artista nato, ter demorado cerca de 35 anos para realizar outro longa-metragem. À época, minhas enormes limitações me levavam a acreditar que haveria uma resposta simples para o que eu considero (mais) uma lacuna irreparável do cinema brasileiro.

Em 2006, além do impacto que foi ver pela primeira vez a Serras da Desordem (no CCBB-SP), tive a chance de conversar com Andrea Tonacci em uma entrevista para o site Cinequanon. Na ocasião ele contou que, além das dificuldades eventuais da vida, que é difícil por si só, desde 1993 ele vinha tentando filmar Serras…, porém o atual esquema de financiamento público não o contemplava nos editais.

Mais significativo que isso, ele contou um pouco sobre os longos períodos que passou morando (e não fazendo trilha ou acampando) nas florestas brasileiras. “Me identifico com o isolamento do índio Carapiru (personagem principal de Serras…), não gosto da loucura urbana, gosto do mato…”

Entendi melhor porque ele retornara com um filme como esse. “Um processo vital”, segundo ele. Um filme de vida, que só ele poderia fazer. Não significa que o cineasta seja necessariamente original, é mais uma questão de espontaneidade: ir direto ao ponto sem concessões, pois o filme é um caminho para o realizador existir.

Um filme cuja uma das maiores riquezas é expor o choque entre dois mundos, o urbano e o selvagem. Ou melhor, o descompasso incorrigível que existe entre eles. Carapiru, o índio selvagem, não sabe comer com talheres, demora para se acostumar a usar roupas. Pequenos detalhes simpáticos que na verdade ocultam a enorme violência que é o processo de “enquadramento do Outro”, e que no caso do filme é representado pelo homem branco tentando civilizar o índio selvagem. A bondade dos brancos e suas ótimas intenções camuflam o aspecto violento que caracteriza toda e qualquer forma de dominação do Outro. O roubo de terras com fins comerciais, o massacre, a oposição entre o aparato tecnológico moderno e o arco e flecha dos índios, isso é tão violento quanto colocar o índio para ver tv. No entanto, o filme não é sociológico. Não se pode vilanizar o homem branco. O que o filme capta de forma sutil, sem discursar sobre o tema, é a violência inerente a tais dinâmicas nas relações humanas. Capta ainda, nas mesmas cenas, nos mesmos fotogramas, o carinho e a tolerância daqueles que cercam Carapiru. Mas isso são leituras, interpretações limitadas.

O que realmente é importante é que o filme, ao acompanhar a saga de Carapiru (não só como um índio, mas principalmente como um ser humano único em descompasso com o ambiente que o cerca), resvala um pouco naquilo que chamamos de alteridade: mostra nossa civilização ocidental, urbana, tecnicista, como algo estranho, muito estranho. Como tudo aquilo que é percebido como estranho denota perigo, a civilização é vista pela natureza como algo ameaçador – vide a forma com que o trem e o avião aparecem no filme, são verdadeiros personagens. Próximos de Carapiru, conseguimos inverter os pólos entre observador e observado, causando assim um curto circuito em noções estanques como civilização e selvageria, conhecido e estranho, segurança e perigo. Aos olhos de Carapiru, o homem branco é o desconhecido que chega com suas máquinas perigosas cometendo atos de selvageria. Todo esse mecanismo de inversão de valores é muito complexo, e nos tempos conservadores de hoje, cada vez mais raro.

Tonacci contou que depois de meses na mata sua percepção espacial mudou radicalmente. Ele teve que se habituar à completa ausência das linhas retas e dos ângulos fechados que caracterizam o nosso mundo urbano. Formalmente, Serras da Desordem é bastante “livre”, ou seja, indiferente às noções clássicas de equilíbrio e composição, tanto nos enquadramentos quanto na montagem. Ele relatou também que, por conta da falta de iluminação no meio da floresta durante as noites escuras, ele foi forçado a aprimorar a audição. Não surpreende que o a edição de som do filme seja extremamente refinada e complexa: cada ruído de graveto, cada pisada do pé descalço sobre as folhas secas é um ato musical e dramático. Com essa analogia entre as histórias pessoais de Tonacci e os aspectos formais de Serras…, não estou almejando “buscar na vida a explicação da obra”, até porque eu acredito que é a obra que explica a vida. Estou apenas fazendo uma tentativa de descrever um pouco da nova língua que o filme cria e sua estreita relação com a experiência real de estar no mato. A segunda levou à primeira: tradução cinematográfica bem sucedida. Misturando o Preto e Branco com imagens coloridas de forma não óbvia, abusando de imagens sobrepostas, abolindo toda e qualquer divisão entre ficção e documentário sem cair no tédio dos “filmes de dispositivo” e trabalhando a trilha sonora e os cortes de forma extremamente intuitiva, não se pode “engavetar” Serras… somente como um filme experimental (o termo é muito redutor). É um filme mestiço.

Logo entendi que o hiato de 35 anos entre os dois longas não era uma questão a ser respondida – por não haver uma única resposta simples e apesar de ser uma questão importante a ser pensada. . Na contramão do atual profissionalismo que dita os rumos do cinema nacional, Tonacci filmou pouco, mas quando retornou realizou um filme mais valioso do que 20 anos inteiros de “Retomada”. Eu já havia escrito pelo menos 2 textos sobre Serras da Desordem, mas sempre soube que nenhuma espécie de intelectualização é capaz de capturá-lo em toda sua riqueza, que só pode mesmo ser experimentada no ato de ver, ouvir e sentir o filme.

Por fim, o cérebro humano aliado à racionalização extrema do mundo de hoje tende a desconfiar tenazmente de qualquer opinião fanática ou dotada de traços de exagero. No entanto, no caso de um filme como o Serras…, cuja desproporção entre grandeza e influência pública é gritante, pensar um pouco com o coração se fez necessário.

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