Considerações do júri da Abraccine no 46o Festival de Brasília (I)

Índio não quer apito

Paulo Henrique Silva, Hoje em Dia (MG)

Quem é o mestre? Quem é o divino?

o mestre e o divino2Apesar de, num primeiro plano, serem facilmente identificáveis na narrativa de O Mestre eu Divino, escolhido como melhor documentário do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, esses papéis frequentemente mudam de lado no filme do diretor Tiago Campos, um ex-palhaço que estreia no formato longa sob a orientação de Vincent Carelli (Corumbiara).

O mestre do título é o missionário alemão Adalbert Heide, que participou do processo de catequização dos índios Xavantes, no Mato Grosso, no final da década de 50. Mas também serve para definir o índio que aprendeu com Adalbert a filmar a história de sua aldeia mostrando a realidade como ela é, sem filtros.

Com o alemão, o termo reflete uma designação dada a priori a partir do viés histórico-político-social, em que se manifesta um indisfarçável ar de superioridade, não raro dando ordens de acordo com a sua visão dogmática de mundo e elevando, sem modéstia, seu próprio trabalho na captação das primeiras imagens dos Xavantes.

O índio, por sua vez, representa a conquista, em que a condição de mestre não está atrelada a um grau de escolaridade ou, como podemos supor, de uma cor de pele ou origem, mas sim da vitória sobre as adversidades que mais de meio milênio impuseram aos nativos e da forçada adaptação a esse Admirável Mundo Novo.

Divino é o nome desse índio, mas a palavra ganha no documentário um interessante questionamento na forma como o contato religioso foi imposto, desrespeitando muitas vezes a cultura indígena. Como sinônimo de lindo e maravilhoso, “divino” traz exatamente a concepção edulcorada como Adalbert percebe o mundo à sua volta.

É esse conceito de beleza que traça as fronteiras entre uma visão ultrapassada e preconceituosa e a preocupação em dar voz aos índios, como sobreviventes de nossa civilização. A narrativa, porém, evitar promover um confronto maniqueísta entre o branco colonizador e o índio escravizado, fazendo de Adalbert também um sobrevivente.

Por mais que o missionário queira, já não é mais possível esconder as mazelas sociais, fazendo dele também um elemento excêntrico que orbita a questão indígena nos dias de hoje. Suas tentativas de permanecer fiel aos dogmas resultam em humor, especialmente quando defende as imagens que dirigiu no passado, enaltecendo seu papel de herói.

Como os índios tantas vezes interpretados de maneira debochada no cinema, Adalbert inverte esse papel ao levar a sério o seu personagem de indígena, caindo no ridículo. Apesar da grande abertura para o riso, o objetivo de O Mestre e o Divino não é o escárnio ou colocar um peso maior na balança dos nativos brasileiros.

Nessa receita, não há vencedores e vencidos, brotando ao final um sentimento de respeito mútuo, mesmo quando Adalbert esconde esse olhar de afeto ao seu pupilo. Heidi surge velho e preso ao mundo que tentou recriar, alimentando-se de suas imagens do passado, enquanto Divino vê sua cultura desmoronar, só lhe restando a câmera para denunciar.

Ser gauche na vida – Revolta, utopia e desencanto em três filmes do Festival de Brasília

Por José Geraldo Couto (SC)

riocorrente1Num festival marcado por obras muito fortes e pessoais, uma coisa que me chamou a atenção foi o tema do homem em desacordo com seu tempo e circunstância, presente em pelo menos três longas de ficção radicalmente distintos entre si: Depois da chuva, Avanti popolo e Riocorrente.

No filme de Claudio Marques e Marília Hughes, Depois da Chuva, o lugar é Salvador e o recorte temporal é o período que vai da frustrada campanha das Diretas até a morte de Tancredo Neves (1984-85). Seu protagonista é Caio (Pedro Maia), um adolescente rebelde que não acredita na chamada Nova República e busca afinidades com outros jovens desenquadrados. Acabam criando uma espécie de comuna anarquista, que se reúne num casarão abandonado para produzir arte, afeto e ação política.

Em Avanti Popolo, de Michael Wahrmann, ambientado em São Roque (cidade próxima de São Paulo), estamos no presente, mas os personagens parecem estagnados em outro tempo, ou antes à margem do tempo. Tudo – que é quase nada – transcorre nos poucos dias que um quarentão cabeludo e barbudo (André Gatti) passa na casa de seu pai solitário (Carlos Reichenbach), que ainda espera notícias de seu filho desaparecido na época da ditadura militar, depois de voltar de um exílio na então União Soviética.

Por fim, o paulistano Riocorrente, de Paulo Sacramento, é uma narrativa plenamente colada à metrópole atual, pela qual trafegam seus atormentados protagonistas: um ex-ladrão de carros (Lee Taylor), um jornalista (Roberto Audio) e a mulher que oscila entre os dois (Simone Iliescu). A inquietação da mulher e o impulso insurgente do ex-ladrão alimentam o filho adotivo deste último, Exu (o garoto negro Vinícius dos Anjos).

Cada um dos três filmes mereceria um estudo (ou muitos) à parte. Quero aqui apenas indicar sumariamente como cada um deles buscou um tom, uma embocadura específica para abraçar seu universo, e o modo como plasmou esse universo em linguagem cinematográfica.

A semente da revolta

No filme baiano, aposta-se tudo no protagonista, com sua mistura juvenil de vigor e fragilidade, inquietação e tédio, para marcar uma posição na contramão das acomodações e arranjos políticos que sufocam os sonhos de liberdade radical. Em torno de Caio, desenham-se, por um lado, a democracia nascente da Nova República, viciada desde a origem – e que se reflete na organização estudantil tutelada pela direção conservadora da escola –, e, no polo oposto, a comuna artística anarquista reunida num casarão que é quase um tempo-espaço à parte.

Impressiona, em se tratando do primeiro longa dos diretores, a fluência com que se integra a notação histórica (de um período, aliás, pouco tratado no cinema) à vida íntima dos personagens, sem o ranço e as referências forçadas que costumam marcar esse tipo de drama de época. O filme tem um frescor e uma autenticidade que passam longe das representações habituais da Bahia e seus clichês. Não por acaso, falou-se em Truffaut, no Bertolucci de Os sonhadores, no Gus Van Sant de Gerry, Elefante e Paranoid Park, no Assayas de Água fria e Depois de maio e em outros retratos marcantes da difusa rebeldia juvenil. Como boa parte dos garotos desses filmes, o Caio de Depois da chuva parece empenhado em “dizer não/ tantas vezes/ até formar um sim”, para citar o belo haicai de Alice Ruiz.

Réquiem gaiato

Em Avanti popolo a clave é elegíaca, quase de réquiem pelos sonhos perdidos, pelas utopias fracassadas, pela vida que poderia ter sido. Nos poucos enquadramentos que se repetem, nos planos longos e altamente pictóricos que remetem ao “esculpir o tempo” de Tarkovsky – com destaque para a caligaresca sala atulhada da casa do velho solitário –, constrói-se um tempo estagnado em que tudo é evocação do que passou: o filho desaparecido, os projetos revolucionários, o cinema desativado, os hinos esquecidos.

Aquilo que, pela descrição acima, poderia parecer um lamento nostálgico é temperado entretanto por um humor próximo do sarcasmo. Wahrmann, como Brás Cubas, escreve seu drama “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”. A presença de cineastas e críticos nos papéis principais acrescenta camadas de significação. Não por acaso, é o próprio diretor uruguaio-israelense que, com seu sotaque característico, atua como locutor de um programa radiofônico de velhas canções revolucionárias e canta à capela o hino Bandiera rossa quando o disco emperra. Sobre a imagem dos escombros de um antigo cinema abandonado, as notas hesitantes da canção italiana constituem um momento de grande contundência cinematográfica.

O tempo é agora

Já em Riocorrente (imagem acima), tudo é atualidade e urgência. Se os outros dois filmes se construíam no pretérito – perfeito ou imperfeito –, o de Paulo Sacramento é escrito no presente verbal. O som e a fúria da cidade se traduzem no nervoso deslocamento de seus personagens, mas também na montagem seca, cortante, e no uso expressionista dos ruídos e da música. Uma cidade que pulsa, caótica e agressiva, e que parece só encontrar algum alívio no sexo, na arte (como na entrevista no ateliê de Marcelo Grassmann) e na música (como na sublime apresentação de Arnaldo Baptista, perto do final).

Mas o que marca Riocorrente como uma das obras mais corajosas dos últimos tempos é seu recurso desabrido à metáfora visual para expressar a violência das ideias e dos gestos. É quase sempre o fogo o elemento dessas imagens marcantes: uma cabeça que explode (lembrando Scanners, de Cronenberg), um carro que se incendeia em alta velocidade, o Tietê que vira um rio de chamas purificadoras.

Dispondo na mesma dimensão dramática e narrativa o “real” e o imaginado, Sacramento nos oferece a potência bruta da imagem, atualizando a célebre frase de Buñuel: “Bastaria à branca pupila da tela de cinema poder refletir a luz que lhe é própria para fazer explodir o universo”. O homem revoltado de Riocorrente põe fogo na tela e no mundo.

Depois da Chuva traz à cena a juventude dos anos 80

Por Humberto Pereira da Silva, da Revista de Cinema, Cinequanon, Filmes Polvo e Digestivo Cultural (SP)

Um dos aspectos notado na 46ª edição do FestBrasília refere-se à diversidade temática, tanto nos documentários quanto nos longas de ficção. Do TecnoBrega em Recife, Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro), à sobrevivência do mundo circense, Os Pobres Diabos (Rosemberg Cariry), um amplo leque do qual destaco Depois da Chuva (Claudio Marques e Marília Hughes), sobre a juventude estudantil em Salvador no período que vai das manifestações pelas Diretas-Já (1984) ao drama com a morte de Tancredo Neves (1985), primeiro presidente civil (eleito indiretamente, vale lembrar) depois do golpe militar de 1964.

O filme de Claudio Marques e Marília Hughes saiu do FestBrasília com os prêmios de melhor roteiro, trilha sonora e ator principal (Pedro Maia). Nisso não mais que registro num festival cuja premiação acabou pulverizada. Assim como vale registrar igualmente que premiação não é mais que um termômetro, portanto, diz da temperatura, das paixões de momento. A recepção do público em seguida e o crivo do tempo acomodam erupções e estabelecem a fortuna de uma obra na história. Reavaliações são feitas e muito é esquecido nas névoas do tempo.

Depois-da-Chuva-foto-de-Agnes-Cajaíba5Assim, Depois da Chuva pode bem cair no esquecimento. Mas, no calor da hora, há dois pontos deste filme que merecem destaque: o diálogo com filmes de juventude, notadamente os de Olivier Assayas e Gus Van Sant; o foco num instante de nossa história recente – a passagem dos anos de ditadura militar para a redemocratização do país nos anos de 1980, conhecidos como os da década perdida.

Marília Hughes admite dívida com Água Fria (1994), de Assayas. Por conta do clima que envolve excitação, descoberta e frustração, num contexto de agitação política e enfrentamentos ideológicos, a associação mais forte, contudo, é com Depois de Maio (2013), concebido no mesmo momento que Depois da Chuva. Nele, Assayas situa o espaço de tensão geracional na esfera pública: conflitos familiares e o espaço doméstico são escanteados. O foco é a política, a partir da qual a experiência individual é refletida.

Do mesmo modo que com o cinema de Assayas, Depois da Chuva também dialoga Gus Van Sant. Mas, vale destacar, ao abordar questões geracionais Van Sant faz caminho inverso do de Assayas. Num filme como Paranoid Park (2007), com o qual Depois da Chuva guarda semelhança visual, Van Sant se mantém atento à esfera privada: o que conta é a experiência individual, com seus conflitos e tensões no espaço doméstico. A juventude em Paranoid Park é alheia à política.

Com essas duas referências em mira, Depois da Chuva oferece uma aproximação pendular, ao se equilibrar na tensão entre as esferas pública e privada. Com a abertura política, o regime militar não se sustenta e o povo sai às ruas para exigir a eleição do presidente da república. Foi então encaminhada ao Congresso uma emenda a fim de que a eleição de 1985 fosse direta. É nesse clima de efervescência política que transita o adolescente Caio. Simpático ao ideário anarquista que contagia parte da juventude daquele período, ele é aluno de um colégio de classe média em Salvador. Na escola, como muitos de sua geração, se envolve em política estudantil, participa da reorganização do grêmio e bate de frente com a realidade das concessões políticas. Na vida privada, convive com a separação dos pais e as experiências com maconha e amores de adolescência.

Depois da Chuva traz, então, muito do que foram os anseios de jovens de classe média num momento de transição comportamental e política em nossa história recente. O cinema brasileiro tem sido pródigo com os chamados “anos de chumbo”, período de forte repressão política, em que parte da juventude pegou em armas. Mas a transição política nos anos 80, e as experiências adolescentes diante da nova realidade que se inicia, é carente de atenção. Com isso, a iniciativa de Claudio Marques, que revela levar para o filme muito de sua vida pessoal, instiga a pensar sobre o quanto de frustração da geração dos anos 80 é um dado a ser considerado quando se vê a apatia política dos anos seguintes e, em contrapartida, as manifestações de junho 2013.

Claudio Marques e Marília Hughes olham para o passado, mas por capricho histórico sinalizam para o presente. Inevitável ponderar que o movimento dos jovens nas ruas poucos meses atrás carrega a sensação de déjà vu. Na formula marxista, a história se repete como farsa. Distantes de oferecerem uma obra original ou inovadora, Claudio Marques e Marília Hughes são sensíveis para ocuparem uma lacuna em nossa filmografia. Que sentimentos mobilizavam os jovens nos anos finais da ditadura? Por que, com seu fim, o desencantamento em seguida com a política?

Imerso numa atmosfera adensada por essas dúvidas, Caio transita numa Salvador que pouco exibe postais turísticos, ou a tradicional cultura baiana. O que importa aos diretores é condensar uma experiência que transcende as fronteiras da Bahia e do próprio tempo. Óbvio, o filme não dá resposta às indagações que suscita, mas nos lembra delas. Nisso sua força. Nisso a força de uma obra delicada, atenta a detalhes que instigam a reflexão sobre mudança política, concomitante à inflexão no comportamento juvenil no Brasil.

Um comentário sobre “Considerações do júri da Abraccine no 46o Festival de Brasília (I)

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