
Da esq para dir: Maria do Rosário Caetano, Júlio Cavani, Amin Stepple, Luiz Joaquim e Luiz Zanin. Crédito: Daniela Nader.
Por André Dib (PE)
A relação de proximidade e distanciamento entre realizadores e críticos de cinema em Pernambuco estabeleceu a tônica do 1º Encontro com a Crítica organizado pela Abraccine. Com o objetivo de privilegiar o espaço para a reflexão cinematográfica em festivais e mostras, o evento aconteceu no dia 5 de maio, tarde de terça-feira, no bucólico Hotel 7 Colinas, novo QG do Cine PE, em Olinda. O próximo já está com data marcada: será em junho, durante o Cine Ceará, em Fortaleza, tendo como tema os cem anos de Orson Welles.
“Estes encontros vem para servir de germe, como um estímulo para a discussão”, disse Luiz Zanin, presidente da Associação. “A Abraccine tem como ponto estratégico fomentar o debate crítico. O paradoxo ela foi criada numa época de refluxo da atividade crítica. Estamos na contracorrente. Todos sabem que nas redações os críticos estão sendo demitidos, perdendo espaço. Estamos em época antireflexiva por definição. Por isso temos que ter estratégias claras para fomentar algo que não está na pauta do dia”.
Deste primeiro encontro participaram os críticos Luiz Zanin, Júlio Cavani, Amin Stepple e Luiz Joaquim. A mediação foi de Maria do Rosário Caetano. Stepple abriu os trabalhos. “O cinema pernambucano evoluiu bastante desde ‘Baile Perfumado’. Ganhamos muitos prêmios e editais. Estamos cada vez mais preparados tecnicamente. Agora chegou o momento de quebrar com certa indulgência com relação à esta produção. Como se sabe, onde não há crítica, reina a mediocridade. A fase da indulgência tem que acabar”.
Roteirista e diretor de vários filmes, entre eles, o curta “That’s a Lero-Lero” (1994), ao lado de Lírio Ferreira, Amin Stepple iniciou seu depoimento relembrando o tempo em que era crítico do jornal Correio de Pernambuco, onde mantinha uma coluna e foi demitido por conta de um texto. “Ronildo Maia Leite disse que, até então, apenas dois jornalistas foram demitidos publicamente no Brasil: Millôr Fernandes e eu. Eu trabalhava nesse jornaleco que logo saiu de circulação. Foi ótimo, emoldurei”.
Partiu então para sua visão sobre a crítica contemporânea: “a fase da indulgência tem que acabar. Tem que acabar isso de cineasta e produtor ligar pra crítico e dizer que não gostou. É sinal de autoritarismo, o germe de um fascismo histórico em Pernambuco. A crítica tem que estar à altura do cinema pernambucano, se não vamos ficar defasados com relação à crítica nacional. Nós temos o dever de ter uma postura mais radical e menos indulgente com relação ao cinema pernambucano. O casamento de absoluta fidelidade tem que acabar. Críticos são irmãos que passaram para o exército adversário”.
Repórter e crítico do Diario de Pernambuco, Júlio Cavani, disse que as notícias positivas sobre o cinema feito no estado são tantas que a imprensa local tem que se esforçar para não soar bairrista. “Os filmes estão nos principais festivais do mundo. Parece celebração, mas é algo extremamente objetivo. Essa semana estava no jornal e soube que um curta de Alessandra Nilo foi premiado em Portugal. Cinco minutos depois, um curta de Pedro Severien ganhou em festival nos Estados Unidos”.
Cavani comparou a atual relação entre jornalismo e cinema com o fenômeno do mangue beat, nos anos 90. “Naquele tempo a imprensa ajudou a criar um sentimento de autoestima com o que estava acontecendo na cidade, e isso foi muito importante para a consolidação do movimento. No cinema pernambucano aconteceu algo semelhante, de despertar o leitor a assistir e reconhecer na tela o próprio estado. O desafio é encontrar o equilíbrio entre esse estimulo e o posicionamento crítico”.
Cavani ainda chamou atenção para a “explosão” de críticos de blog em Pernambuco, em sua maioria, estudantes de cinema. “É um momento novo. Às vezes o jornal tem peso institucional que atrapalha e percebo que na internet os críticos não estão nem aí, escrevem o que querem, tem correntes próprias, brigam com cineastas”. E ainda avaliou que em Pernambuco críticos e cineastas estão mais próximos porque convivem nos mesmos espaços. “Uma particularidade do Recife, comparando com cidades maiores, é não existem grupos separados, o que torna a relação entre críticos e cineastas é mais promíscua”.
Crítico da Folha de Pernambuco e programador do Cinema da Fundação, Luiz Joaquim afirmou que não existe cinema pernambucano, mas cinema feito em Pernambuco. “Aos olhos do estrangeiro tudo parece igual, mas quando analisamos os filmes de Lírio Ferreira, Kleber, Marcelo Pedroso, o que vemos é uma personalidade própria, forte, que trazem a marca de seus autores. A força da cultura local está em cada realizador, mas o elemento que liga essas produções talvez esteja mais na forma de realizar”.
Quanto à provocação de Amin, Luiz disse que não necessariamente prêmios e festivais definem a qualidade dos filmes. “Diria que o cinema feito em Pernambuco é autolimpante, uma qualidade curiosa. Quando acessamos esses filmes pelos festivais, que acumulam massa crítica, quase sempre nos deparamos com produtos de qualidade, bem acabados. Não é de estranhar que quando estreia um filme local, começamos a ser bombardeados de muitos textos analíticos, em sua maioria, positivos. Mas não há apenas esses filmes sendo feitos em Pernambuco. Há outros, com qualidade questionável, que não saem para o circuito dos festivais”.
Ainda sobre a colocação de Stepple, Zanin reforçou que a atividade crítica deve ser feita sem complacência. “No compadrio não existe progresso. O ambiente cultural é absolutamente hostil ao exercício da crítica. Nos anos 1990 a atitude dominante foi a política de defesa do cinema brasileiro. Acolhíamos maternalmente tudo o que era feito no cinema brasileiro, pois ele foi dado como praticamente morto. Costumávamos dizer que ele era uma plantinha fraca, que precisa ser regada”.
Conceitos e rótulos – “Em 1996, no debate em Brasília sobre “Baile Perfumado”, surgiu o conceito do árido movie e começamos a acompanhar com entusiasmo o cinema de Pernambuco. Desde então encontramos filmes que agradam mais, outros menos. Mas o índice de acerto é absurdamente maior do que se poderia esperar, ou acreditar que foi fruto de um acaso. Trata-se de um conjunto de pessoas que se relacionam e dialogam com um tipo de cultura. Alguma coisa que produz um tipo de cinema absolutamente excitante e que agora entra em fase que pode se tornar perigosa, pois o sucesso pode gerar autocomplacência. A crítica local pode colaborar para que a produção não caia nisso”.
Abrindo o foco para o cinema feito no Nordeste, Maria do Rosário Caetano ressaltou a sensibilidade regional para trabalhar temática e artisticamente com rudeza afiada e roteiros sólidos. “Dos estados, Pernambuco é o mais forte, pois tem uma das histórias culturais mais interessantes do país, um pensamento mais politizado, que ajudou a tirar o Brasil de uma produção muito subjetiva, com um cinema que não tem vergonha de ser brasileiro”.
Aproveitando a colocação de Rosário, Júlio Cavani apresentou sua hipótese para compreender o bom momento do cinema em Pernambuco: “Temos uma tradição artística forte na pintura, arquitetura, literatura. Na década de 1920 tivemos uma produção modernista tão forte quanto a do sudeste, só que a transição econômica do café abafou as manifestações artísticas daqui e Recife passou a ocupar posição subalterna. Nos anos 1990 surgiu ‘Baile Perfumado’ e depois ‘Amarelo Manga’, filmes que reinseriram Pernambuco no mapa. Só que as grandes ideias sempre existiram, mas precisou haver uma mudança conjuntura econômica e tecnológica para que elas pudessem ser materializadas”.
O rótulo “cinema pernambucano” rendeu mais discussões. Luiz Zanin disse que a tentativa de classificar é humana. “No Cinema Novo ou na Nouvelle Vague não há nada que aproxime os autores, a não ser o fato de que são grupos, amigos ligados por relações de afeto, ideias, sensibilidades, e que produzem conjunto de obras que se relacionam”.
Cavani, no entanto, atentou para o fato de que rótulos podem se voltar contra os próprios artistas. “Por exemplo, o manguebeat, que não quer dizer nada esteticamente e foi transformado em marca, com investimento do governo do estado e ficou estereotipado por associar manifestações folclóricas com cultura mundial”.
Luiz Joaquim encerrou o encontro com a ressalva de que é difícil analisar um período estando dentro dele. “Já se vão 20 anos e talvez daqui a 30 possamos fazer uma análise mais precisa sobre o agora. Só o tempo vai permitir entender melhor o que vem acontecendo na produção pernambucana”.
O Encontro com a Crítica durou cerca de duas horas e mobilizou jornalistas, membros da Abraccine e cineastas como Lírio Ferreira e José Eduardo Belmonte. Nada mal para um evento nascente, de primeiras reflexões.