Entre a comprovação e a descoberta no 25o Cine Ceará

O Clube, de Pablo Larraín

O Clube, de Pablo Larraín

Por Orlando Margarido

Em uma edição excepcionalmente boa, senão ótima, o 25º CineCeará deverá ser lembrado no futuro por um equilíbrio importante em curadorias de festivais que buscam captar e refletir o momento de uma determinada produção. No caso, como se sabe, trata-se de uma iniciativa voltada a filmes de origem ibero-americana. Não se limitou contudo a reunir títulos a esmo, representativos apenas de cinematografias ou fronteiras. Também se procurou atentar a tendências, conceitos, diversidade de linguagem, e talvez a condição mais atraente, a experiência de realizadores. Deste tópico entenda-se a inclusão na mostra competitiva de diretores já premiados como Pablo Larraín, Pedro Costa e Lisandro Alonso, e por outro lado de desconhecidos por aqui, quando não estreantes.

O arco permitiu boa sintonia entre filmes de maior exigência narrativa, ou dramática se assim se preferir, e aqueles que se propõem a contar uma história sem abrir mão de algum dispositivo original. Compreensível, no entanto, que a trinca de cineastas citada acima tenha sido a mais contemplada na premiação oficial, o que demonstra, claro, a maior qualidade de seus filmes, sem com isso significar demérito aos demais. Aliás boa parte dos competidores foram lembrados, seja em categorias técnicas seja em menções especiais, o que pode ser um ponto passível de questionamento às decisões do júri.

O fato é que os melhores saíram destacados, e entre eles, o melhor no impactante drama de Larraín, tido como favorito já na noite de abertura, quando foi apresentado. Tem sido assim desde que O Clube estreou no Festival de Berlim deste ano e é possível conjeturar que só não levou o Urso de Ouro, prêmio máximo, pela tradição política da Berlinale reafirmada com a escolha de Jafar Panahi e seu Táxi. O Grande Prêmio do Júri não é nada mal, ainda que com sabor de consolação. Mas o Troféu Mucuripe de melhor longa não deixou também de ser atitude corajosa — eco de outra coragem ao se programar o filme para a abertura — para um estudo de mazelas de dura e sombria reflexão.

Larraín dá exemplo de transição e amadurecimento cinematográfico mas igualmente de continuidade. Permanece, por um lado, na investigação de meandros da sociedade chilena, desta vez voltando-se aos tabus da Igreja como pedofilia e corrupção. Mais propriamente no primeiro, embora os crimes se entrelacem quando cometidos pelos sacerdotes em questão. Também comparecem vestígios de conluio da instituição com o regime militar no país, sabida sangrenta e uma das mais cruéis da América Latina, tema de certo modo obsessivo do diretor e explorado em seus três filmes anteriores. Diga-se que o cineasta prefere não aproximar os contextos, pois pretende que sua leitura da Igreja seja a mais universal possível e nisto reside a guinada para além da fronteira do assunto político mais particularizado da ditadura.

Para tanto, em proposta dramática inversa a ambição, Larraín lança mão de um formato quase de huis clos, ao reunir seus personagens numa casa isolada no litoral onde são assistidos por um jesuíta de vocação psicológica. Ali, confinados, os padres, e há uma freira que faz toda a diferença, se debatem no cotidiano com suas mentiras, ilusões e credos equivocados. A ponto de achar natural o ímpeto sexual ou o ato criminoso. Na articulação desse enredo com subtramas de aparência secundária, como as corridas com cães galgo, está um roteiro afinadíssimo que não deixa nenhuma aresta sem sentido fundamental ao desfecho. Foi outra contribuição lembrada pelo júri, assim como o prêmio coletivo ao elenco masculino, determinante a eficiência dos caracteres em jogo. Ressalte-se ainda que o filme teve igualmente a sintonia da crítica com o Prêmio Abraccine.

Ainda que exigente no modo de ser conduzido e no objetivo de reflexão , O Clube se mantém mais na esfera da linguagem de convenção como drama incômodo a que se propõe. Cerca-se de certa preocupação estética na atmosfera lúgubre apenas para reafirmar o conflito cinzento em andamento. Nesse sentido se diferencia dos outros dois títulos de destaque na premiação, em muito devedores de um preceito autoral significativo, já evidente na forma.

O caso de Lisandro Alonso com Jauja é o mais explícito, na escolha do formato de janela 4×3 de tela, com dobras nos cantos a reviver um tom retrô de cinema. Também de uma fotografia de cores fortes e chapadas. Mas não foi apenas por requerer alguma inventividade formal, inclusive recorrente num determinado segmento do cinema atual, que o argentino mereceu o prêmio de melhor direção. Se é que se pode falar em trama, a sua mescla um partipris realista a um tom fantástico que quebra noções de tempo e espaço. Um explorador em passado longínquo desbrava terras selvagens de região incerta quando tem a filha adolescente sequestrada por nativos. Ao sair a sua procura, passa a interagir com a paisagem desolada tanto quanto uma condição delirante, numa evidente conotação de cunho pessoal, busca afinal também interior. É uma dupla iniciativa desafiadora a ausência de explicações da tênue história e também as opções para as imagens desta, sempre muito elaboradas. Lisandro parece sugerir assim ser mais revelador fruir de suas composições no limite pictóricas do que buscar o sentido racional. Qualquer que seja a postura, é um filme com muito a oferecer na dissonância de outra produção refém de acomodações comerciais.

Distinto, o estranhamento de Cavalo Dinheiro surge na inversão de preceitos propostos no filme de Lisandro. Aqui, o português Pedro Costa, um dos mais autorais e coerentes realizadores de sua geração, nos impacta primeiro pela fotografia de Leonardo Simões — seu parceiro contumaz — por fim premiada, para quase em movimento simultâneo ressaltar seus personagens. Esses são os mesmos desde o início da carreira documental de Costa, cabo-verdianos de comunidade periférica instalados em Lisboa. Ventura, seu protagonista recorrente, é o centro das dificuldades e marginalização desses imigrantes, inclusive por agora estar doente. Sob um chiaroscuro de remissão também pictórica, mas agora de Rembrandt ou Caravaggio, esses seres desolados ganham uma complexidade quase diáfana, e assim são elevados a um patamar de grandeza. Os diálogos, tristes e solenes, completam em tom monocórdio um quadro de rara exposição humana.

O afinamento desses três longas-metragens de realizadores já reconhecidos, seja pela força dramática seja pelo exercício estético sofisticado, e a maior relevância na premiação, fizeram o contraponto a produções sem credenciais a priori. Nem por isso se mostraram menos interessantes, e em maior ou menor grau, inquietas na linguagem. Como um bom exemplo de transição entre uma ponta e outra, A Obra do Século, do cubano Carlos Machado Quintela, alia a partir de método cada vez mais frequente registro documental e de ficção para recuperar a memória da malfadada tentativa do país em montar uma usina atômica. O projeto não vingou e os equipamentos permanecem na ilha até hoje, ao lado da vila construída para os operários, também praticamente desabitada. Enquanto imagens de arquivo detalham a construção, a vertente ficcional dá conta de uma dessas famílias que ali ficaram, uma geração de pai, filho e neto que se debatem em suas frustrações.

Cordilheiras no Mar, de Geneton Moraes Neto

Cordilheiras no Mar, de Geneton Moraes Neto

Manipulação e inventividade de linguagem estiveram fora do foco, contudo, de outro documentário presente. Clássico, para não dizer convencional, Cordilheiras no Mar — A Fúria do Fogo Bárbaro, do brasileiro Geneton Moraes Neto, se preocupou em dar conta de seu personagem, o cineasta Glauber Rocha, a partir do polêmico aceno de simpatia deste ao regime militar. Um apoio tão desafiador de ser compreendido como a atenção do filme dada a algumas vozes nem sempre adequadas a uma análise equilibrada e sensata. Se o formato não chega a ser um empecilho, o filme se trai pelas opções de avaliação. O júri relevou e outorgou ao filme seu prêmio especial.

Ainda entre os premiados, a produção espanhola rodada na África Crumbs trouxe por certo a mistura de ingredientes mais inusitada da seleção. A combinação de elementos da cultura pop americana, de raízes locais, fantasia e humor busca retratar o depauperamento social da Etiópia, com seus conflitos étnicos e guerra civil. Nem sempre consegue, com registro um tanto ingênuo e infantilizado, mas é valente no esforço de escapar ao previsível de fórmulas convencionais. Conquistou assim um prêmio não oficial dado pelo público universitário e encantou parte do júri Abraccine, responsável por uma menção honrosa.

Por fim, são detalhes significativos e uma carpintaria dramática sujeita a reviravoltas que sustentam em patamar acima da média o simpático Loreak. Na língua basca, ou euskara, quer dizer flores, e são elas os símbolos primeiros de desencontros amorosos nesse raro, se não único, filme exibido no País com diálogos no idioma. Mas não se trata de uma comédia romântica. Estaria mais para o trágico, embora os diretores não forcem a mão, a história da esposa em crise no casamento que recebe diariamente um buquê de remetente anônimo. Quando um colega de trabalho morre, ela descobre ser ele o apaixonado e a trama então passa a ser guiada pela viúva. Esta é interpretada pela atriz Itziar Iurño, responsável em grande parte pela sinceridade de uma situação insólita, e por isso mesmo a escolhida pelo júri ao prêmio da categoria. Como obra exemplar na aproximação entre um cinema de qualidade, inteligente, e ao mesmo tempo com apelo as grandes platéias, Flores pode bem ser eleito também emblemático do acerto entre as variadas tendências abraçadas pelo festival.

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