“Crumbs” – O Outro lado do Sonho

Crumbs, de Miguel Llansó

Crumbs, de Miguel Llansó

Por Paulo Portugal

Tive a honra e o prazer de integrar o júri Abraccine no 25º festival Cine Ceará. Poderiam estas ser meras palavras de circunstância destinadas a retribuir a simpatia e a sempre saborosa troca de opiniões sobre as fitas – isto se o festival não nos tivesse presenteado com uma muito valiosa dezena de filmes da seleção oficial. Dizia-se que esta fora uma das melhores edições. Não duvido. E acrescento mais, dificilmente recordo um conjunto tão homogéneo, tão forte das propostas apresentadas e tão rico nos conteúdos. Mesmo nas mais vistosas mostras europeias, sem reverência às programações de Cannes, Veneza ou Berlim.

Acabou por vencer um dos premiados este ano em Berlim – El Club, do chileno Pablo Larraín – de resto, seria difícil ou mesmo impossível ignorá-lo, pois trata-se, seguramente, de um do filmes do ano. De forma algo surpreendente, foi selecionado para a sessão de abertura do festival. Mas apesar do choque, difícil seria imaginar o que estaria ainda por mostrar. E a prova de que “até ao lavar dos cestos é vindima”, como se diz em Portugal, foi receber na derradeira sessão a surpresa ímpar chamada Crumbs, um filme tão difícil de classificar como de esquecer.

Se quisermos ensaiar um género poderemos arriscar algo na linha de uma história de amor com fundo épico e ritmo de ficção científica. Arrojado? Só aparentemente, pois nos 68 minutos de fita apenas ficamos com as tais migalhas do que o jovem realizador madrileno Miguel Llansó semeou e que seguramente darão os seus frutos no futuro.

A primeira das surpresas do filme até pode ser a ousadia do título inglês, mas com a ousadia de mantém o original da língua amárica. Assim entramos no ambiente apocalíptico e futurista que quase parece retirado de um Mad Max, em que evocam os tempos idos e onde restam apenas agora os signos e os ícones, encarados como lixo de uma globalização ida.

Aqui seguimos Candy (Daniel Tadesse), uma personagem deformada e atarracada, procura relíquias dos tempos passados, mas sem esquecer a sua paixão pela bela Birdy (Selam Tesfaye). Ele é o derradeiro anti-herói (vê-lo-emos até com um fato de Super-Homem) com o objetivo é encontrar um Pai Natal africano e entregar-lhe os seus desejos.

Entre a beleza natural e agreste, de rochas sulfurosas, temos ainda uma sala de bowling abandonada, bem como a devoção espacial de uma espada de plástico (elogio ao monólito de Kubrick?) ou uma venerada miniatura das Tartarugas Ninja. Tudo temperado por uma música celestial que evoca sonhos de heróis como San Pablo Picasso, Stephen Hawkin III, Justin Bieber VI, Paul McCartney XI, e até um poster do famoso basquetebolista Michael Jordan encarado como verdadeiro objeto de culto.

Andou bem Miguel ao captar uma estranhamente sedutora e onírica realidade na sua estreia em longas metragens. Sem receio de brincar com os géneros, operou uma elegante mescla entre o seu fascínio pela Etiópia, algures entre os mitos locais e uma linguagem pop que não parece estar muito distante de um Terry Gillian, em versão pós apocalíptica de Brazil.

Uma coisa é certa, depois de ver Crumbs/Migalhas por mais de uma vez (graças à amabilidade de um link vimeo) e de bisbilhotar as sua curtas, conferi a razão pela qual Llansó se deixou seduzir pela paisagem natural e cultural deste país encravado no chifre de África. De resto, o próprio realizador nos descrevera a experiência, durante uma noite numa das esplanadas do calçadão de Fortaleza, nesse país distante de Espanha, onde viveu durante alguns anos ligado ao departamento cultural em funções pelo seu curso de Relações Internacionais.

Habilmente fotografado, tal como o trabalho bastante seguro desenvolvido nas diversas curtas, Crumbs surge assim como um trabalho de uma natural maturidade e o caminho certo para voos ainda mais altos. Justíssima, por tudo isto, a nossa menção honrosa. Vamos continuar a seguir Miguel Llansó.

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