Gramado 2015, um balanço

"Ausência" (SP), de Chico Teixeira

“Ausência” (SP), de Chico Teixeira

Por Daniel Feix

O Festival de Gramado encerrou sua 43ª edição projetando a 44ª, que só será realizada a partir de 26 de agosto de 2016 – um tantinho depois do período tradicional, para não coincidir com a realização das Olimpíadas. Cobrados por críticos e jornalistas pela seleção irregular, sobretudo de longas-metragens brasileiros, os curadores e a organização do evento prometeram rever o regulamento, que neste ano permitiu incluir na mostra competitiva “O Último Cine Drive-In”, com estreia no circuito comercial marcada para este dia 20 de agosto (cinco dias após a cerimônia de entrega dos Kikitos), mas acabou forçando a exclusão de “Que Horas Ela Volta?”, que entra em cartaz apenas no dia 27 – não pôde competir devido a uma isolada sessão de pré-estreia aberta ao público, realizada em São Paulo no dia 11.

A decisão de exibir hors concours o ótimo longa de Anna Muylaert deixou o caminho livre para a consagração de “Ausência”. Vencedor dos principais prêmios do evento, o filme dirigido por Chico Teixeira foi, de fato, o melhor título da principal competição de Gramado 2015. Mas teve o brilho um tantinho ofuscado pela pulverização dos Kikitos – ganhou quatro, apenas um a mais do que o fraco filme “de mercado” Um Homem Só, da diretora ligada à TV Globo Claudia Jouvin.

Já exibido – e premiado – em outros festivais, “Ausência” narra de maneira delicada as descobertas de um menino de 14 anos (Matheus Fernandes) que busca compensar a falta da figura paterna ao mesmo tempo em que começa a amadurecer sexualmente. Seu tormento é semelhante ao do protagonista de “Ponto Zero”, bom filme gaúcho assinado por José Pedro Goulart que usa imagens oníricas de uma Porto Alegre que “anda para trás” para descrever o pesadelo de um menino da mesma idade (Sandro Aliprandini) criado em meio às disfunções de uma família de classe média da cidade. São filmes de diretores de gerações semelhantes, ambos com poucos longas no currículo (eles têm pouco mais de 50 anos; Zé Pedro é estreante e Teixeira está no segundo longa-metragem ficcional), com premissas semelhantes, porém, execuções muito distintas entre si.

“O Último Cine Drive-In”, do também estreante Iberê Carvalho, foi outro título lembrado pelo júri, com talvez exagerados quatro Kikitos. Nem a maior quantidade de troféus do que de filmes em competição evitou que o veterano habitué do evento, Murilo Salles, saísse de mãos abanando. Curiosidade: seu novo filme, “O Fim e os Meios”, é um thriller político irregular sobre os bastidores de Brasília, mas talvez superior a outro longa seu com o qual chegou a ganhar o Kikito de melhor filme (“Nome Próprio”, em 2007).

Outros temas

“O Último Cine Drive-In” mantém alguma conexão com “Ausência” e “Ponto Zero” ao abordar uma certa crise da estrutura familiar no seio da classe média brasileira. Como se levasse essa crise um tantinho mais adiante, no entanto, o filme de Iberê Carvalho problematiza as relações em torno de um jovem adulto, portanto, um guri mais crescido, na comparação com os protagonistas dos outros dois longas citados. Breno Nina está ótimo como esse guri, que na trama vê a mãe ficar doente e trata de reencontrar o pai, proprietário do negócio descrito no título e um homem… ausente em sua vida.

Monotemático? Não é para tanto. Se a mostra competitiva de longas brasileiros de Gramado 2015 encontrou seus melhores momentos em variações sobre o mesmo assunto, as mostras de curtas nacionais e de longas-metragens latino-americanos foram plurais – e mais regulares. Veio do México aquela que talvez seja a melhor atuação de todo o festival (de Carlos Barraza, premiado com o Kikito), no instigante “En La Estancia”. O filme de Carlos Armella começa como um falso documentário sobre um velhinho e seu filho, os dois remanescentes de um vilarejo abandonado, transforma-se em uma ficção sobre o lugar e, ao fim, em uma grande reflexão sobre o ato de fazer cinema – entre outras coisas –, que tira o chão do espectador a todo instante, em uma fruição rica como poucas outras apresentadas no evento.

Outro título conectado com tendências do melhor cinema autoral contemporâneo, o simples e enérgico “Venecia”, de Kiki Álvarez, sobre um dia na vida de três amigas que trabalham em um salão de beleza em Havana (Cuba), também foi lembrado pelo júri. Tanto “En La Estancia” quanto “Venecia” receberam três troféus do júri oficial, contra um do argentino “La Salada” – justamente o Kikito de melhor filme. A estranha composição não fez jus à qualidade superior – e à forma mais instigante – dos longas que vieram de Cuba e México. Também ficou a sensação de subavaliação do bom thriller político (mais um!) “Zanahoria”, do uruguaio Enrique Buchichio, que foi prejudicado pela má projeção no Palácio dos Festivais e acabou ficando sem nenhum troféu.

O Corpo (RS), de Lucas Cassales

O Corpo (RS), de Lucas Cassales

Revolução gaúcha

Já o júri de curtas-metragens conseguiu lembrar aqueles que, para este escriba, foram os melhores filmes de uma mostra competitiva mais regular, na comparação com a dos longas nacionais: “Quando Parei de me Preocupar com Canalhas”, de Tiago Vieira, “Virgindade”, de Chico Lacerda, O Teto Sobre Nós, de Bruno Carboni, e “O Corpo”, de Lucas Cassales. Da mesma forma, acertou ao contemplar uma dupla de atores de performances acima da média – Giuliana Maria (por “Herói”) e Matheus Nachtergaele (“Quando Parei de me Preocupar com Canalhas”).

Os dois principais prêmios entre os curtas, de melhor filme (“O Corpo”) e direção (Carboni), é preciso ressaltar, ficaram com produções gaúchas. Ambas concebidas e realizadas por equipes que praticamente em sua íntegra são formadas por técnicos de pouco mais de 20 anos, oriundos dos recentemente implantados cursos superiores de cinema do Rio Grande do Sul (o primeiro deles, da Unisinos, completou 10 anos há pouco).

É exatamente o mesmo caso de Se Essa Lua Fosse Minha, curta de realização coletiva de alunos da própria Unisinos que faturou o mesmo prêmio em 2014. Trata-se, a saber, da geração que está por trás dos longas Castanha (de Davi Pretto, 2014) e Beira-Mar (Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, 2015), que está provocando uma pequena revolução no cinema local, ainda muito atrelado, em seus longas, a temáticas passadistas e sistemas de produção sob certo aspecto arcaicos. É por reforçar esse arejamento da cinematografia do Estado que a presença de um filme formalmente instigante como Ponto Zero na mostra competitiva de longas, e de outros títulos mais contemporâneos exibidos hors concours à tarde no Palácio dos Festivais (principalmente Errante, de Gustavo Spolidoro, e Nós Duas Descendo a Escada, de Fabiano de Souza), tornaram Gramado 2015 especial para o cinema gaúcho.

Houve discursos políticos durante a cerimônia de entrega dos Kikitos, os mais barulhentos deles defendendo o “Estado democrático de direito, que está ameaçado de golpe”, conforme o produtor Luiz Carlos Barreto. Houve, também, manifestações reiteradas pela consolidação de uma política de editais de cinema no Rio Grande do Sul. Não apenas vindas das equipes de Bruno Carboni e Lucas Cassales, mas de outros curta-metragistas premiados, que manifestaram solidariedade à reivindicação dos colegas ao sul. Pela qualidade que vem demonstrando – O Teto sobre Nós é um filme extraordinário, que ainda merecerá maior atenção da crítica –, essas reivindicações merecem ser ouvidas.

Notas do festival

Prêmios demais – Estava na cara que o bom filme cubano Venecia, sobre um dia na vida de três trabalhadoras de um salão de beleza de Havana, ficaria com o prêmio de melhor atriz latina – dividido entre Claudia Muñiz, Marianela Pupo e Maribel Garzón: a mesma decisão já havia sido tomada pelo júri do mais recente Festival de Guadalajara. As três estão muito bem neste longa, cuja trama se aproxima da trama do drama cômico argentino Las Insoladas (2014), de Gustavo Taretto, neste momento em cartaz em algumas cidades brasileiras. É preciso pensar, no entanto, se faz sentido distribuir tantos Kikitos de interpretação – são dois para os longas latino-americanos e quatro para os brasileiros. O excesso de troféus de Gramado faz com que fique ressaltado o fato de que pouco filmes em exibição tenham saído de mãos abanando – são poucos mesmo! Unificar a competição entre os títulos nacionais e os estrangeiros talvez seja uma solução para essa distorção.

Ximenes, a surpresa – Em sua “primeira vez” como produtora, Mariana Ximenes comprou o projeto de sua amiga Claudia Jouvin, diretora de Um Homem Só. A atriz teve todo o corpo pintado de sardas e apliques ruivos nos cabelos – processo que chegou a durar sete horas –para interpretar uma jovem pela qual o protagonista do filme, Vladimir Brichta, se apaixona. A narrativa é confusa e a direção, repleta de decisões questionáveis (Brichta interpreta um sujeito em crise pessoal que resolve clonar a si próprio). Mas acabou rendendo três Kikitos à equipe, dois deles de interpretação (Otávio Müller levou como ator coadjuvante). Algo questionável em um festival que apresentou boas performances, especialmente as de Cíntia Rosa (a jornalista de O Fim e os Meios) e Gilda Nomacce (a mãe alcoólatra de Ausência).

Confusão curatorial – Sob certo aspecto, “Um Homem Só” se aproxima a “O Outro Lado do Paraíso”, longa de André Ristum: são dois longas cheios de vícios de TV, com excesso de música e interpretações acima do ponto, que querem o diálogo com o grande público. Ambos ficariam deslocados em um festival de curadoria mais atenta. Gramado tem isso: ao mesmo tempo em que concede espaço para títulos mais experimentais e com força política, não abre mão dos filmes capazes de atrair os astros da televisão à serra gaúcha (não à toa, o estrelado “Um Homem Só” passou na sexta à noite, momento de maior movimento na cidade). O resultado é uma mostra competitiva irregular e, de certo modo, esquizofrênica. A lembrar: foi Gramado que exibiu títulos fundamentais da cinematografia nacional no século 21, como “Serras da Desordem” (2006) e “O Som ao Redor” (2012). Este último, inclusive, perdeu o Kikito de melhor filme para o limitado “Colegas” (2012). Sim, esquizofrenia não é um termo inadequado.

Turismo ostentação – É algo sobre o que o festival precisa refletir: quando se aproxima o fim de semana de premiação,Gramado vira uma cidade de turismo ostentação, repleta de jovens de classe alta vindos para as festas de música eletrônica que, acredite, chegam a ter ingressos custando até R$ 1,5 mil – algo que nem é tão absurdo assim, dada a falta de noção de alguns preços praticados pelos comerciantes da cidade. Grande parte do público que se aglomera em torno do tapete vermelho, transformando-o em um ponto de aquecimento para as raves, estaria ali independentemente da realização de um festival de cinema. É preciso mesmo pensar no turismo ao tomar decisões que afetam a curadoria do evento?

A ausência de Chico – Diretor de “Ausência”, Chico Teixeira não foi a Gramado. O grande vencedor do festival, que está tratando de um câncer em São Paulo, mandou um vídeo exibido antes da exibição do filme, no qual chegou a brincar com a queda de seus cabelos. Foi muito aplaudido –algo que se repetiu quando o ator de seu filme, Matheus Fagundes, recebeu o Kikito e fez uma homenagem emocionada na cerimônia de sábado.

Mais latinidade! – As homenagens, aliás, foram um ponto alto de Gramado 2015: Fernando Solanas, Zelito Viana, Marília Pêra e Daniel Filho compõem um conjunto plural, como o é o cinema latino-americano, contemplando vários tipos de filmes e discursos durante o evento. Solanas é que pareceu tímido: o cineasta de verve política, hoje senador da república na Argentina, falou pouco no evento. Talvez traga, nesse contexto, um sintoma de outro aspecto que faça falta a um festival que se pretende continental: atrair os olhares dos realizadores e da imprensa de fora do Brasil. Uma grande homenagem a Solanas não pode passar batido, da mesma forma que grandes cineastas dos países vizinhos não podem seguir ignorando Gramado como vêm fazendo nos últimos anos. A mostra latino-americana foi boa, mas poderia ter sido ainda melhor.

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